Com Rennan da Penha, festival em SP reúne obras culturais alvos de censura
A programação de verão da cidade de São Paulo começa nesta sexta-feira (16) ao som da batida frenética do funk. À frente da missão, o DJ Rennan da Penha, nome que há pouco menos de dois meses circulava nas páginas policiais.
O responsável pelo Baile da Gaiola, maior festa de favela do Rio de Janeiro, tinha sido preso, acusado de associação com o tráfico de drogas — o que é visto pelo movimento como mais um episódio de perseguição contra o gênero que nasceu nas periferias.
Hoje, ele joga no centro da cidade, a convite da própria prefeitura, o 150 bpm que o fez se tornar um dos produtores mais influentes do funk. Definitivamente, a cara e o som do verão.
Mas Rennan não abre os trabalhos da agenda cultural da cidade apenas para celebrar a estação. Na arte de divulgação do evento, cores quentes até remontam à imagem de um sol nascendo, mas o nome carrega uma palavra de tom grave, que assombra o Brasil há décadas: Verão Sem Censura.
Além de convidar o DJ, os organizadores (a própria prefeitura) construíram uma programação que abraça praticamente todas as manifestações culturais que foram oprimidas nos últimos tempos, por diversas instâncias. É como uma grande reunião de rejeitados, perseguidos e polêmicos.
Arnaldo Antunes, que também se apresenta na sexta, antes de Rennan, teve o clipe da música "O Real Resiste" vetado pela TV Brasil, emissora estatal. A gravação trazia cenas de violência policial e a letra cita milícias, torturados e fundamentalistas. No festival, a canção está garantida na íntegra, ao lado de outros sucessos do compositor.
O filme "Bruna Surfistinha" — que o presidente Jair Bolsonaro usou de exemplo para anunciar futuros vetos contra filmes "ativistas" — ganhará exibição pública, seguida de um debate com a atriz Deborah Secco e sua inspiração, Raquel Pacheco. Na sequência, eventos que deixariam a claque mais conservadora de cabelo em pé: desfile de moda da Daspu, grife do movimento de prostitutas do Brasil, e a festa paulistana Desculpa Qualquer Coisa, criada e protagonizada por mulheres lésbicas.
O recado do line-up é bem direto, nas palavras do secretário municipal de Cultura, Alê Youssef: "O principal curador do festival foi o governo federal. Foi só absorver o que estava sendo censurado".
"Diante de tantas ações sem sentido, pareceu importante fazer uma ação para acolher todas as expressões culturais que estavam com problemas", explica. De olho no capital que a cultura movimenta em São Paulo, o secretário cravou essa bandeira em defesa da liberdade de expressão nas ações de toda a programação cultural de 2020. "A gente aqui não vai tolerar esse tipo de coisas."
Youssef explica que o festival nasceu como desdobramento natural de uma ação da pasta em absorver espetáculos teatrais que estavam sendo cerceados pelas instituições em 2018. O maior exemplo foi a peça "Res Publica 2023", da Companhia Motoserra Perfumada, sobre ditadura e desigualdade social. Em setembro de 2019, sua exibição foi vetada pelo então diretor da Fundação Nacional de Artes (Funarte), Roberto Alvim — ele se tornaria secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro, até ser demitido nesta sexta (17), após associar trecho de um discurso nazista em um pronunciamento.
A peça acabou agregada à programação teatral da cidade. A inspiração final veio meses depois, também por causa de Alvim, depois de ele chamar publicamente a atriz Fernanda Montenegro de "sórdida".
"Depois disso, houve muitos questionamentos e frases polêmicas e agressivas dirigidas aos artistas. Acho que tudo isso, dentro de um contexto de criminalização da cultura e do artista, é uma narrativa que vinha do processo eleitoral e acabou virando uma espécie de diretriz de governo", observa Youssef.
Que censura é essa?
Apesar do tom de celebração, o evento aposta em encontros para discutir a censura no Brasil a partir de uma perspectiva histórica. O jornalista e escritor Mário Magalhães fala, no dia 29, sobre o ativista Carlos Marighella, que enfrentou a censura tanto em vida quanto depois de morto. O filme baseado em sua biografia ganhou recentemente data de estreia, após seu diretor, Wagner Moura, denunciar que o projeto era alvo do governo. "A Ancine [Agência Nacional do Cinema] censurou o filme. É uma censura diferente, que usa instrumentos burocráticos para dificultar produções das quais o governo discorda. Não tenho a menor dúvida de que 'Marighella' não estreou ainda por uma questão política", disse Moura ao jornalista Leonardo Sakamoto, para o UOL.
No encontro, Magalhães pretende destrinchar as ações que impediram o lançamento de "Marighella" até agora. "A estreia, agora remarcada para 14 de maio, será uma enorme vitória da liberdade contra a censura", ele comenta.
Em seu mais recente livro "Sobre lutas e lágrimas: Uma biografia de 2018, o ano em que o Brasil flertou com o apocalipse", Magalhães observa que a censura é uma sombra que nunca se dissipou totalmente no país.
Se a liminar que pedia a suspensão do especial de Natal do Porta dos Fundos por atentado "à honra e à dignidade de milhões de católicos" pode ter chocado, vale lembrar que, em 1986, já na abertura democrática, o governo de José Sarney usou da mesma justificativa para proibir a exibição do filme francês "Je Vous Salue Marie", dirigido por Jean-Luc Godard. Até 1988, todos os filmes, capítulos de novelas, minisséries, peças de teatro, livros e jornais ainda deviam ser submetidos à censura federal.
"A questão central é que a censura cresce com Bolsonaro, mas o marco do recrudescimento é 2018. Foram alvo de censura judicial, do Executivo e da iniciativa privada as artes plásticas, o teatro, o jornalismo, as universidades etc. Não se entende a volta da censura sem entender 2018. Com Bolsonaro, o obscurantismo se revigora, e a censura se expande ainda mais", observa Magalhães.
Momento de atenção
Se a Constituição de 1988 proibiu o governo de censurar o conteúdo das obras, como é possível, em pleno 2020, estarmos às voltas da mesma ameaça?
A historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz explica que, diferente da ditadura, não estamos vivendo em um estado de exceção. "Mas podemos dizer que estamos vivendo sob uma onda conservadora, uma onda retrógrada e um governo muito autoritário, um governo que censura", explica a autora do livro "Sobre o Autoritarismo Brasileiro", que também participa do Verão sem Censura. "É um momento que pede nossa atenção, que pede a nossa energia e nossa urgência."
Para Youssef, essas ações antidemocráticas seguem um discurso ideológico, mas foram transportadas da campanha eleitoral de Bolsonaro para a gestão pública. "Você abre mão de todo potencial que a cultura tem do ponto de vista estratégico, como eixo principal do desenvolvimento econômico e social do país, e a confunde como uma espécie de inimigo político. É daí que vem essa censura", observa.
Schwarcz também participa do evento para discutir o clássico livro de George Orwell, "1984", sobre as ações de um governo totalitário. E não importa se estamos falando de nazismo, ditadura ou das ações voltadas a costumes conservadores, o primeiro alvo é sempre o mesmo: a cultura. A associação ganhou outros contornos após Alvim usar trechos do de Joseph Goebbels, ministro da Propaganda de Hitler, para anunciar o Prêmio Nacional das Artes, voltado para obras conservadoras.
"O que me preocupa muito não são apenas as loucuras do governo, mas o que ele 'avaliza': pessoas que namoram com um sistema como o nazismo, pessoas que não têm responsabilidade pois dizem e depois desdizem, pessoas que querem aparelhar o governo e sabem que a cultura é um farolete". Hora de tomar esse caso e a demissão do secretário como um farolete e não como caso isolado. É anticonstitucional fazer editais de cultura com pressupostos desse tipo", explica a antropóloga.
Por isso mesmo, ela celebra o festival e o destaque para Rennan da Penha: "É uma forma de a programação legitimar o lugar de Rennan e também não se associar às acusações que ainda não foram comprovadas sobre [envolvimento com] tráfico de drogas", observa. "O funk historicamente sofreu repressão justamente por ser um tipo de música, em geral, tocada por negros. Nós sabemos o quão racista o Brasil é."
Ainda assim, Schwarcz diz que a história nunca se repete. "Mas nos serve como alerta, não permitir que a gente esqueça", diz. "Lembro da frase do escritor irlandês James Joyce: 'A história é um pesadelo do qual estou tentando acordar'. É bom que a gente acorde."
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