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A casa mais vigiada: BBB 20 disputa narrativas na velocidade do Twitter

Virada na trama do BBB aconteceu de madrugada, sendo acompanhada minuto a minuto no Twitter - Reprodução
Virada na trama do BBB aconteceu de madrugada, sendo acompanhada minuto a minuto no Twitter Imagem: Reprodução

Tiago Dias

Do TAB

09/02/2020 04h00

Está difícil viver no Brasil de 2020 sem ouvir algo sobre o que acontece no reality show "Big Brother Brasil", principalmente se você estiver em alguma rede social.

A nova edição começou com a promessa de um "plot" (enredo) amarrado desde o início: a oposição entre convidados (atores e influencers) e anônimos (os anônimos inscritos). Duas semanas depois, a história ali contada era outra, muito mais polêmica, com direito a reviravoltas e vazamento de informações. Tudo para atualizar e dar mais velocidade à disputa por narrativas — elemento que faz girar, há 20 anos, a roda do reality show, e encanta a humanidade desde o início dos tempos.

"A narrativa está presente desde quando se contavam histórias à beira da fogueira. É algo muito forte para o ser humano, culturalmente e psicologicamente falando", explica Débora Cristine Rocha, doutora em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

A história que deixou tuiteiros acordados de madrugada, iluminados pela fogueira virtual de suas telas, tinha a silhueta de um vilão, enxergado pelo público mas secreto para quem estava na casa. O atleta Petrix foi eliminado na última quarta-feira (5) com alta rejeição, após ser acusado de assédio dentro do programa, o que lhe rendeu uma intimação da polícia do lado de cá. Sem saberem disso, os participantes miravam outro alvo e o resultado foi recebido com perplexidade.

A reviravolta veio horas depois. De forma inédita, o entendimento e a visão do público ultrapassaram os muros do Projac através de dois mensageiros: dois novos participantes entraram na casa, após passarem alguns dias em uma casa de vidro, dentro de um shopping no Rio de Janeiro, lendo recados que o público trazia sobre o andamento do jogo.

As revelações chegaram ao elenco pela madrugada (horário em que a transmissão ao vivo é feita só em canal por assinatura) e turbinaram a trama: haveria um complô de alguns homens para que as mulheres se comprometessem moralmente com o público e, dessa forma, pudessem deixar eliminá-las da disputa. Falas e atitudes machistas vieram à tona.

Foi uma fagulha óbvia largada no programa, num momento em que a sociedade se inflama ao discutir feminismo, igualdade de gênero e combate ao assédio. "A forma das pessoas de ver o mundo mudou. Diego Alemão [participante do BBB 7] foi campeão enrolando e namorando duas meninas ao mesmo tempo. Imagina hoje? Seria eliminado na primeira semana", observa o crítico de TV e colunista do UOL Maurício Stycer, que acompanha e analisa há anos o reality show da Rede Globo.

Débora Cristine Rocha fez do BBB seu objeto de pesquisa nos anos 2000 e observa que as mudanças na sociedade obrigam o programa a apostar em elencos mais diversos, para representar o espírito do tempo da sociedade - dos valores mais progressistas aos mais conservadores. Uma das funções desse "Big Brother" ("Grande Irmão"), por fim, é vigiar a sociedade. "Esses programas refletem a sociedade e são um efeito dela", observa a pesquisadora.

Assista pelo Twitter

Saldo da semana: o que aconteceu em ambiente controlado, dentro do cenário construído nos estúdios da Globo, disputou atenção e engajamento popular com as notícias da agenda política brasileira, o arquivamento do impeachment de Donald Trump nos EUA e o avanço do coronavírus pelo mundo.

A hashtag #BBB20 está há dias entre os assuntos mais comentados do Twitter, dando à trama a costumeira turbinada dos tuítes, que ampliam opiniões e flagras da história em tempo real. Isso sem contar as "shippadas" (ato de torcer pelo envolvimento amoroso entre dois personagens), cancelamentos e definições de papéis (Marcela, que soube primeiro sobre o "plano machista", é a Fada Sensata. Bianca, a influencer conhecida como Boca Rosa, duvidou das revelações e foi taxada de omissa).

O link entre mídias sempre regeu esse universo paralelo, mas ganhou mais funções nos últimos anos. Mudou a forma de a Globo narrar (e controlar) essas histórias, e o público, de acompanhá-las. Hoje é comum alguém acompanhar as polêmicas de cada "personagem" apenas vendo trechos de vídeos nas redes sociais, sem sequer ligar a TV. "Isso força a narrativa a contemplar a visão de quem está de fora", observa Stycer.

"Bruna Marquezine fala sobre o programa no Instagram dela, nas redes sociais só se fala do Petrix. As pessoas que não veem são impactadas. Hoje todo mundo grava e joga na rede, e isso cria conversa, que é a favor do programa, para o bem ou para o mal. O BBB acabou ganhando outra dimensão e aumentou a pressão do espectador sobre a direção do reality. Antes, ficava-se dependente do que a edição poderia mostrar", explica.

Para Rocha, já não faz mais sentido o convite para se olhar a intimidade de estranhos pelo buraco da fechadura — praticamente o slogan do programa em suas primeiras edições. Em um mundo narrado em stories e livestreams, intimidade é um conceito que dissolveu-se.

"Exibir o que está acontecendo entre quatro paredes se tornou a lógica da sociedade. Que diferencial você tem nisso? Nenhum. A relação entre público e privado mudou muito. O diferencial está em construir histórias. São histórias de amor, de personagens rivais, pessoas que competem entre si por coisas grandiosas ou pequenas. Apesar das regras do programa, o jogo são os relacionamentos", explica. "E o mundo digital acirra as questões de relacionamentos."

Biofesra 2, no Arizona, uma grande "casa de vidro", infestada de pragas... e tretas - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Intimidade é uma m*

O formato televisivo do reality show "Big Brother" foi criado para antecipar o comportamento do mundo digital e nada teve a ver com o clássico da literatura "1984", escrito por George Orwell. O personagem fictício do "Grande Irmão" apenas emprestou seu nome à nova atração. A inspiração mesmo, conta seu criador, o magnata holandês John De Mol, veio de uma experiência científica frustrada.

Em 1991, quatro homens e quatro mulheres foram enclausurados numa gigantesca estrutura geodésica, em pleno deserto do Arizona (EUA). Era o projeto Biosfera 2 e o objetivo dos participantes ali não era ganhar R$ 1 milhão, mas desenvolver, ao longo de dois anos de confinamento, um meio ambiente autossuficiente com os principais biomas da Terra, mirando a capacidade do ser humano em desenvolver colônias nas futuras viagens espaciais.

Os pesquisadores não conseguiram concluir o trabalho científico por algumas razões: problemas básicos de saúde e alimentação tomavam muito tempo e ainda tinha o convívio. Ninguém se suportou ali dentro.

John de Mol conta que soube das rusgas entre as pessoas após uma noite de bebedeira e ficou interessado não em desenvolver alimentos, mas nas tretas, mesmo.

Após a estreia na Holanda, em 1999, o "Big Brother" virou item de exportação, sendo moldado conforme a cultura de quem se interessava pelo formato. Enquanto na Argentina o "Gran Hermano" ganha tintas melodramáticas, e em alguns países europeus as cenas de sexo são exibidas sem muitos cortes, por aqui o humor precisa estar presente em todos os episódios, e o sexo, apenas na sugestão do movimento debaixo dos edredons.

No entanto, uma coisa se mantém. No jogo de eliminação, o relacionamento humano é visto como competição. "É uma disputa de narrativa, por um lugar de fala, por visibilidade. Tanto é que eles não falam em solidariedade, elas falam em alianças, o vocabulário reflete isso. Os relacionamentos não são só isso, mas essa disputa reflete grupos sociais e culturais que disputam espaço na sociedade", observa a pesquisadora. "Somos um país onde as disputas sociais sempre foram grandes, intensas, nem sempre foram percebidas, mas sempre houve. Veja só quantas revoltas populares já existiram na história."

Essa edição, que levou para dentro da casa influencers, já acostumados a usarem a própria intimidade como ferramenta de trabalho, provou que as celebridades da intenret não estão imunes a isso. "Quando gravam em casa eles estão numa situação confortável, com clima de estúdio. Não existe uma pessoa querendo brigar com ele por causa do café da manhã. No 'Big Brother', não; ele vai estar em interação, e determinadas coisas podem aflorar", ela observa.

Flayslane briga com Felipe durante festa do líder no BBB 20 - Reprodução/Globoplay - Reprodução/Globoplay
Flayslane briga com Felipe durante festa do líder no BBB 20
Imagem: Reprodução/Globoplay

Nessa lente de aumento, sob julgamento de milhões, uma preocupação se sobressai nas redes: Após o "plot twist" da semana que passou, o que vem agora?

Stycer também quer saber. "O BBB tem uma coisa de remoldar, de adaptar o tema. Evidente que isso vai gerar alguma coisa, mas não dá pra dizer o que que vai ser. Agora, eles têm três alvos, três homens. Vão eliminar todos? E depois? Vai ter que estabelecer outro conflito? Tem dois meses ainda para o programa terminar."

Desde a Antiguidade já se sabe: sem conflito não há história. E nessa disputa, em particular, toda treta é pouca.