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Ameaças ao STF e incels: comunidades misóginas virtuais estão mais tóxicas

Logan Weaver / Unsplash
Imagem: Logan Weaver / Unsplash

Marie Declercq

Do TAB

19/02/2020 04h00

Nos últimos anos, atentados cometidos por atiradores homens em diversos países têm chamado a atenção para a radicalização na internet, especialmente em comunidades e fóruns virtuais especializados em disseminar discursos de ódio contra mulheres e outras minorias. Esse conjunto de comunidades foi apelidado de "manosphere" ("machosfera", em tradução livre, ou "manosfera") e analisada recentemente por um grupo de pesquisadores de diversas universidades, detectando um crescimento de usuários em grupos mais extremos e hostis com as mulheres.

Os pesquisadores analisaram as conversas em 7 fóruns e 57 subreddits (fóruns no site Reddit), totalizando quase 38 milhões de publicações e dezenas de milhares de usuários nos últimos 14 anos. "É uma análise sobre a história e migração de movimentos nessas comunidades. Não olhamos as causas que atraem pessoas a esses espaços", explica Manoel Horta Ribeiro, mestre em Ciência da Computação pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), doutorando na Escola Politécnica Federal de Lausanne, na França, e um dos responsáveis pelo levantamento.

Além disso, a pesquisa analisou o "nível de toxicidade" de cada grupo usando uma ferramenta do Google chamada Perspective API. Através dela, foi possível detectar que novas comunidades surgidas, em 2017 a 2019, reproduzem ideologias antimulheres e uma visão mais niilista do mundo. No entanto, pelo fato de algumas comunidades possuírem um "léxico" próprio, o algoritmo do Google falha em identificar alguns termos. "Essa ferramenta pega coisas mais explícitas, e deixa passar vocabulário misógino específico de algumas comunidades. Criar algoritmos de detecção de toxicidade que detectem esse léxico em constante mudança é uma direção da pesquisa em que estamos trabalhando."

O termo "machosfera" foi criado em meados de 2009 e consiste em um conjunto de espaços online frequentados por homens de diferentes faixas etárias, origens e classes sociais. A pesquisa dividiu esse universo em quatro tipos de comunidades:

MRA (Men's Right Activists ou "Militantes pelos direitos dos homens"): O movimento surgiu entre as décadas de 1960 e 1970 como uma resposta à segunda onda do feminismo nos Estados Unidos. Na internet, é um dos grupos mais antigos desse microuniverso, e alega que mulheres são privilegiadas na sociedade e homens devem militar a favor dos direitos do gênero.

Pick-Up Artists (conhecido também como PUA ou "Artistas da Sedução"): Movimento surgido na segunda metade dos anos 2000, cujo objetivo é ensinar técnicas de sedução para conquistar mulheres. Isso já existia muito antes da popularização da internet, mas os PUAs conquistaram espaço através de personalidades "controversas" e youtubers especializados em ensinar as "regras do jogo". O movimento foi rapidamente acusado de ser misógino e enfraqueceu relativamente nos últimos anos.

Incels (Involuntary celibacy ou "celibatários involuntários"): Movimento gerado em comunidades virtuais que se popularizou após o Massacre de Isla Vista de 2014 e o atentado de Toronto em 2015. Segundo o artigo, os incels são o grupo mais hostil e mais reativo às mulheres. Seu discurso varia entre celebração da morte de mulheres por feminicídio e apologia ao suicídio. Para o incel, as chances de conseguir namorar são determinadas desde o nascimento. No Brasil, ficou conhecido por conta da atividade de grupos virtuais de ódio que atacam especialmente ativistas feministas. Parte da origem desta comunidade é uma resposta à "farsa" dos PUAs.

MGTOW (Men Going Their Own Way ou "Homens seguindo seu próprio caminho"): Assim como o MRA, os MGTOWs acreditam que a sociedade é injusta para os homens e por isso rejeitam a ideia de nutrir relacionamentos com mulheres.

Níveis de ódio

Esse universo não é centralizado e possui diferentes interesses, mas às vezes atua de forma coordenada em ataques nas redes sociais contra figuras proeminentes do movimento feminista ou ativistas antirracistas. O mais conhecido foi o Gamergate em 2014 (uma polêmica sobre a ética em jornalismo de jogos, marcada por ataques misóginos contra mulheres nas redes sociais). No Brasil, frequentadores de comunidades da "machosfera" costumam ameaçar militantes feministas como Lola Aronovich, jornalistas e políticos progressistas. Nesta segunda-feira (17), a Polícia Federal afirmou que o Grupo Realengo Marcelo do Valle, que vem ameaçando ministros do Supremo Tribunal Federal, tem relação com um grupos misóginos que influenciaram os Massacres de Realengo e Suzano.

Apesar de inteiramente masculino, o perfil dos frequentadores é variado e há uma boa presença de brasileiros em comunidades de incels. Muitos frequentadores compartilham depoimentos pessoais sobre as dificuldades de namorar, fazer amigos, de conseguir um emprego e sobre sua aparência. De certa forma, espaços como esses trazem conforto e, por este mesmo motivo, são mais hábeis em radicalizar seus frequentadores para a extrema-direita. "Cada comunidade possui um apelo diferente", explica Ribeiro. "Nas subcomunidades dos MRAs e dos MGTOWs, há muitos relatos de pessoas mais velhas que se separaram e passaram por divórcios muito complicados, especialmente nos EUA, onde esse processo tende a ser mais dolorido", diz.

O grau de hostilidade no discurso também varia entre os grupos, porém, o ódio ao gênero feminino é uma característica comum. "Direta ou indiretamente, dois assuntos que são debatidos o tempo todo lá são a suposta 'decadência' da masculinidade e o feminismo. Essas duas coisas muitas vezes vêm associadas, no espírito: 'o feminismo castra a masculinidade'", explica.

Terrorismo doméstico

Nos últimos seis anos, os MRAs e os PUAs deixaram de ser populares para dar espaço aos grupos de MGTOWs e incels. O último, inclusive, foi classificado pelo Departamento de Segurança do Estado de Texas (EUA) como uma crescente ameaça doméstica de atos terroristas por conta do volume de atiradores que eram frequentadores de comunidades que disseminam essa filosofia. Em 2017, o Reddit baniu o maior fórum de incels (na época com mais de 40 mil usuários) da plataforma por discurso de ódio contra mulheres.

No entanto, a pesquisa detectou que banir esses espaços nem sempre é eficaz para impedi-los de existir. Após o Reddit banir o fórum, imediatamente foi criado um espaço independente para onde muita gente migrou. O nível de ódio dos conteúdos aumentou. "Tem uma questão aqui bem importante. Seria melhor uma comunidade dessa existir em uma plataforma mainstream, onde há uma certa moderação e visualização, ou mantê-la em um local sem qualquer tipo de regra? Até que ponto expulsar essas comunidades está se provando efetivo? É uma questão difícil, e não sei ainda como respondê-la", afirma.

A pesquisa, publicada em fevereiro de 2020, é uma das mais completas para entender como se subdividem comunidades misóginas na internet e identificar períodos de crescimentos dentre elas. No entanto, o pesquisador afirma que ela está longe de explicar porque cada vez mais pessoas estão se radicalizando em espaços no Reddit, YouTube e redes sociais."Não é possível responder a esse tipo de pergunta com esses registros deixados na internet, mas estamos colaborando para conseguir entender melhor e propor soluções para esse tipo de radicalização."