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Gotham City é aqui: "Coringa" devolve à sociedade a violência que viveu

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Imagem: Divulgação

Kaluan Bernardo

do TAB, em São Paulo

28/09/2019 04h00

No quadrinho "A Piada Mortal", o Coringa diz que basta "um dia ruim" para transformar alguém saudável em um lunático. Em "Coringa", que estreia em 3 de outubro, o diretor Todd Phillips mostra que é necessário muito mais para criar um vilão tão monstruoso como o antagonista de Batman.

Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), um palhaço que sonha ser comediante, sofre diversas violências físicas e psicológicas ao longo da vida. Ele é um ser solitário que cuida da mãe, não tem dinheiro, amigos, amores, nada além do desprezo da sociedade. Também tem doenças psiquiátricas e neurológicas, incluindo uma que o faz rir compulsivamente.

O perfil descrito tem sido muito associado aos chamados "incels" -- celibatários involuntários, que convertem sua frustração sexual em ódio contra mulheres. Muitos autores de massacres são considerados incels. Nos Estados Unidos, o FBI chegou a alertar o exército sobre possíveis ataques violentos provocados pela estreia do filme e a proibir a entrada de pessoas com máscaras nos cinemas.

A temática de "Coringa" não é exatamente nova. Filmes como "Taxi Driver" e "Clube da Luta", por exemplo, também narram a história de homens que chegam ao fundo do poço e procuram saída na violência. Por que, então, "Coringa" causa tanto temor, mesmo sem ter estreado? A resposta, talvez, esteja mais relacionada ao momento em que vivemos do que à obra em si.

Arthur Fleck - Divulgação - Divulgação
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A violência social de "Coringa"

Associar o Coringa aos incels é contar uma história incompleta. Tampouco é possível dizer que seus impulsos violentos nasçam apenas de suas doenças psiquiátricas ou ainda que ele seja mero fruto de uma sociedade violenta. Há um complexo quadro de fatores que impele o personagem de Joaquin Phoenix ao seu desfecho.

"A violência é sempre um fato social. Ela só pode ser compreendida e explicada dentro do seu contexto econômico, político e cultural", diz Jacob Goldberg, advogado, doutor em psicologia e autor de livros como o "Direito no Divã".

E o contexto que transforma um homem falido em serial killer e símbolo de revolta contra o sistema é o de uma Gotham City marcada pela sujeira, violência e abandono. Embora a cidade seja fictícia, ela reflete contextos urbanos de 1981 - momento histórico em que o filme se passa e os EUA sofriam grave depressão econômica.

Um dos vetores para a transformação de Arthur Fleck em Coringa é a negligência e estigmatização da saúde mental. "A pior parte de ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse", escreve o falido palhaço em seu caderno.

Em seu apogeu, o Coringa discursa que a sociedade criou um monstro como ele, justamente por ter ignorado suas patologias. No filme, o personagem chega a tomar sete remédios psiquiátricos, mas fica sem o tratamento porque o Estado corta os subsídios ao tratamento.

A desigualdade, a selvageria, o culto à violência também são fatores que não só afetam a jornada do Coringa, como também o transformam em um símbolo na decadente Gotham City. Antes de ser causa, Coringa é sintoma da doença social.

Para Goldberg, o Coringa é a representação de alguém que retorna à sociedade a brutalidade que viveu. "Ou a pessoa devolve na mesma linguagem do crime e da agressão, em um mecanismo sádico de usar o sofrimento que inflige para reparar o que viveu; ou consegue uma saída psicanalítica, cultural, religiosa, artística, para sublimar o que viveu", comenta. Na primeira cena de "Coringa", o personagem é violentado. Na última, violenta alguém.

A complexa relação do protagonista com o sexo feminino também acaba se tornando um dos vetores que o leva a uma explosão violenta - e fomenta os debates sobre os incels. As relações entre masculinidade e violência são pontos-chave.

Quando houve um massacre na escola Raul Brasil, em Suzano, o psicanalista Christian Dunker falou ao TAB sobre como, na masculinidade, a violência acaba se legitimando. "Espera-se que a atitude de um homem diante do conflito seja recorrer a meios violentos. A violência pode ter um valor erótico. Isso torna a coisa mais complicada, mais complexa, de tal maneira que a violência adquire um sentido de autolegitimação".

Coringa dançando - Divulgação - Divulgação
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Na mesma reportagem, a psicanalisa Amanda Mont'Alvão propôs raciocínio semelhante: "A masculinidade é transmitida em nossa cultura como antítese da vulnerabilidade. É pretensamente fálica, potente, imune a qualquer ameaça. Daí os meninos, em sua formação como homens, vão se deparando com as contingências da vida e os efeitos das relações: rejeição, tristeza, decepção, fraqueza. A noção de masculinidade a que foram sujeitados não comporta esses sentimentos, mas eles estão ali, pulsando, pressionando por um escape. E a via escolhida pode ser terrivelmente agressiva".

É pela violência que um personagem como Arthur Fleck tenta encontrar sua identidade e tornar-se alguém notável. "A psicologia trata muito a questão do pertencimento. Todo ser humano quer ser importante - se ele não conseguir por bem, ele vai ser por mal. O Coringa tenta fugir do anonimato e da insignificância", diz Goldberg. Novamente, isso só é possível em uma cultura que tem a agressividade como expressão. "E a sociedade moderna é uma sociedade que ainda não superou a linguagem da violência", afirma.

No fim do dia, Coringa é um vilão que parece reunir e concentrar diversos problemas sociais. Sua decadência é a da sociedade. O mérito de "Coringa" está em construir um vilão que, individualmente, é distante para que cidadãos se reconheçam nele; mas que funciona como alerta sobre sociedades violentas. Gotham City é tão importante e tão doente quanto Arthur Fleck.

E o filme causa temor justamente porque vivemos em sociedades violentas. "Espero que o Brasil não se torne uma caricatura de Batman e Coringa. Corremos esse risco, basta olhar para o Rio de Janeiro", diz Goldberg.