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Trap proibidão bomba no Rio com letras com alusão a facções criminosas

Rapper Meno Tody - Divulgação
Rapper Meno Tody Imagem: Divulgação

Amanda Cavalcanti

Colaboração para o TAB

05/03/2020 16h16

Uns usam roupas vermelhas e encaixam na letra a cor característica do CV (Comando Vermelho). Outros fazem várias referências ao número três nas canções, alusão à facção rival TCP (Terceiro Comando Puro). O trap, subgênero mais malandro do rap, criou um novo proibidão no Rio.

Em meados de 2019, duas músicas lançadas na mesma semana angariaram visualizações rapidamente e atraíram a atenção dos fãs de todo o país. "Bailão" foi o terceiro single de Meno Tody, rapper do bairro de Santa Rosa, em Niterói (RJ), conhecido já alguns anos por suas participações em batalhas de rima no Rio de Janeiro. "Love and Choppa", lançada em 4 de agosto, foi a primeira aparição do carioca NGC Daddy, na época YFG Daddy.

Hoje, ambas passam das 22 milhões de visualizações no YouTube. As faixas são bem diferentes esteticamente. A de Tody foi construída num flow cantado por cima de uma batida melódica e com samples de riff de guitarra. Já Daddy investe num tom de voz estático ao longo dos dois minutos de faixa. Apesar das diferenças, os pontos comuns entre os dois clipes — as armas mostradas, as referências à venda de drogas e a narração de conflitos com a polícia — garantiram que "Bailão" e "Love and Choppa" fossem abrigadas por entusiastas debaixo do mesmo guarda-chuva: o "real trap".

O termo implica que um artista ou música de trap só é "real" se falar dos assuntos que embalaram a criação do ritmo: tráfico de drogas, criminalidade e violência. Com a ascensão de Daddy e Tody, outros artistas concentrados no Rio de Janeiro começaram a ser encaixados no termo enquanto narravam situações parecidas: Jovem Alga, Da Babi, Juju Rude, entre alguns outros.

As duas faixas tratam do assunto, cada uma com suas particularidades. Daddy não se associa a nenhuma organização criminosa em específico, mas faz referência à venda de drogas e narra confrontos com a polícia, terminando com um desafio, "quero ver tu vim me buscar nas casinha". Tody, por sua vez, refere-se a si mesmo como o "trapstar do CV" e faz diversas referências diretas e indiretas à facção ao longo da faixa ("eu não sou da gang blood, mas o comando é vermelho"). Já Juju Rude tem refrão com as "três listras", uma referência à marca Adidas e ao Terceiro Comando.

O sucesso de "Meno T", mais rápido e acentuado que o de Daddy, incomodou alguns dos rappers que já estavam na cena. Eles se alfinetaram algumas vezes indiretamente até que, em outubro de 2019, começarem a postar vídeos direcionados um ao outro. A discussão era sempre a mesma: quem era o artista de trap de verdade. "Você achava que era o real trap, não achava? Agora veio o real trap, mais do que você", falou Tody numa live.

Raffa Moreira não foi o único que se incomodou com a marra de Meno Tody. Nem um mês após o lançamento de "Bailão", o rapper carioca QTZ Tivityn lançou a faixa "Foda-se o Meno Tody", identificando-se como parte da facção Terceiro Comando Puro (TCP), rival ao Comando Vermelho. "Apareceu aí vários menor falando que é tudo dois / Falando que é Comando / Eles tão pensando que é brincadeira essa porra", ele fala na faixa.

"Eu não considero essa música como uma diss [letra de ataque]. Foram poucas linhas direcionadas a ele", diz Tivityn em entrevista ao TAB. "A cena nacional estava começando a entender o que é trap de verdade, facção, arma, e eu estava precisando de uma oportunidade para as pessoas ouvirem minhas músicas. Ele falou sobre uma facção. Daí vi a oportunidade de falar de outra facção e gerar o hype que eu queria para me conhecerem."

Tivityn tem 21 anos e mora na zona oeste do Rio. Começou a fazer música há pouco mais de um ano, gravando suas rimas num celular Samsung, e lançou sua primeira faixa, "Trafstar", em setembro de 2018. Apesar de ter falado do TCP, Tivityn nega envolvimento direto com a facção. "Estou pensando em apagar esta música ["Foda-se o Meno Tody"], até porque eu tenho amigos que são das duas facções. Eu não sou bandido, sou músico e frequento favela, e quero que minha música chegue em todas", diz.

O crime é meu trabalho

O trap só existe da maneira que foi criado pela ligação ao crime. O termo "trap" significa, ao pé da letra, "armadilha" e faz referência às "traphouses", casas onde acontece o tráfico de drogas. O termo nasceu em Atlanta (Georgia), grande centro do comércio ilegal no sul dos EUA. Seu primeiro uso comercial foi em 2003 como título do álbum "Trap Muzik", do rapper T.I.. Em faixas como "Doin' My Job", ele explicava como o tráfico de drogas era apenas um modo de ganhar a vida para ele e seus colegas: "Temos vidas, queremos viver bem também / Temos mães, pais, esposas, filhos como você / Mas nossas opções são poucas".

Desde então, em duas décadas de história, o gênero já foi das traphouses para os grandes estúdios e palcos ao redor do mundo na mão de rappers, grandes artistas pop (como Justin Bieber e Taylor Swift) e DJs que embarcaram na popularidade do som. Mas não é como se aquela realidade houvesse deixado de existir: em janeiro de 2020, o rapper californiano Roddy Ricch chegou ao primeiro lugar da Billboard nos Estados Unidos discutindo os mesmos temas de violência e criminalidade no single "The Box".

A repórter norte-americana Christina Lee, que cobre hip-hop em Atlanta há 10 anos, conta que é difícil não fazer cobertura criminal em suas reportagens, mesmo que o foco principal não seja esse. "Quando escrevi a primeira entrevista nacional com o trio Migos, um dos membros [Offset] estava preso. Eu resenhei e falei no rádio sobre "The Autobiography of Gucci Mane", que ele publicou depois que foi libertado da prisão federal. Tive que checar as alegações de Young Dolph de que alguém atirou 100 balas em seu SUV personalizado (a polícia contava "não mais que 50") para um artigo do [jornal britânico] The Guardian. Esses conflitos costumam aparecer", fala a jornalista.

Muitos dos rappers que chegaram ao topo das paradas dos Estados Unidos nos últimos anos lidaram com acusações ou sentenças criminais, inclusive alguns que tiveram suas carreiras disparadas pelos crimes que cometeram. O rapper XXXTentacion, por exemplo, falecido em 2018, viu seu primeiro hit ("Look At Me!") ganhar atenção após ser acusado pela ex-namorada de violência doméstica e preso e solto consecutivas vezes. O advogado Kenneth J. Montgomery, que representou rappers como Bobby Shmurda, deu uma entrevista ao podcast de música do The New York Times, em que liga parte do sucesso astronômico desses artistas à "fascinação dos norte-americanos pela narrativa do jovem rapaz negro e perigoso".

"É importante ressaltar, porém, que nem todas as músicas que discutem crime e violência são glorificação desnecessária", fala Lee. "O hip-hop nos Estados Unidos também é uma prova de como o Movimento dos Direitos Civis da década de 1960, protestando contra a injustiça racial, não resolveu tudo."

A esse respeito, é possível comparar o trap norte-americano a outro movimento que temos no Brasil: o funk proibidão, que narra o tráfico, a violência e a criminalidade nas favelas do Rio de Janeiro desde os anos 1990. Se Meno Tody fez referências ao Comando Vermelho em "Bailão" no ano passado, MC Orelha já falava que era "Vermelhão desde pequenininho" em 2009, na música "Faixa de Gaza".

Para a pesquisadora Carla Mattos, doutora em Ciências Sociais pela UERJ e autora da dissertação "No ritmo neurótico: cultura funk e performances proibidas em contexto de violência no Rio de Janeiro", é impossível entender o funk proibidão sem pensar nos processos históricos que o precederam. São eles a hierarquização de territórios no Rio de Janeiro (divisões entre "a favela" e "o asfalto"), práticas governamentais e policiais anti-negritude, e, por fim, as tentativas de pacificação dos conflitos armados nas favelas cariocas.

Analisando a popularidade tomada pelos proibidões que, segundo a pesquisadora, "estão em todas as periferias do Brasil atualmente", Mattos comenta que a apreciação neoliberal pelo que é estereotípico e visto como exótico pode justificar parte de seu sucesso. "[Esses artistas são] retirados de um lugar demonizado e underground [pelo público] para terem suas diferenças exageradas e radicalizadas. São sensibilidades que nos deixam entrever que as diferenças e diversidades são transformadas em commodities no capitalismo."

Para Jacqueline Muniz, professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF), essa exotização da ligação ao tráfico pode ser atribuída a um discurso que explora a ligação ao tráfico de drogas como uma questão ideológica, e não como o que ele realmente é para parte de uma juventude popular: como disse T.I., um trabalho. "Mesmo que ilegal, perigoso e precarizado, ainda é um trabalho", fala. "Essa lógica preconceituosa também visa criminalizar essas expressões artísticas, como por exemplo vemos que no Rio de Janeiro existem várias legislações que de alguma maneira criminalizam o funk."