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'Abracei Suzy e vou continuar abraçando': projeto beneficia pessoas trans

Maquiadora e ativista dos direitos humanos dá curso de maquiagem para mulheres trans encarceradas - Coletivo Quarta Pessoa/Reprodução
Maquiadora e ativista dos direitos humanos dá curso de maquiagem para mulheres trans encarceradas Imagem: Coletivo Quarta Pessoa/Reprodução

Marie Declercq

Do TAB

13/03/2020 04h00

A reportagem exibida no dia 1º de março no Fantástico sobre a realidade das mulheres trans cumprindo pena em presídios masculinos gerou uma comoção entre os brasileiros por destacar a transfobia na sociedade, os desafios em conseguir uma colocação profissional e a relação complexa entre os presos homens cisgêneros que dividem cela. No geral, foi uma reportagem positiva para entender até que ponto as prisões estão sendo eficazes na ressocialização de condenados por crimes.

Uma das entrevistadas, Suzy de Oliveira, chamou a atenção. Após contar ao médico Dráuzio Varella que não recebia visitas há anos, recebeu um abraço do médico. A repercussão da reportagem foi intensa e, após uma campanha nas redes sociais, a detenta recebeu dezenas de cartas do Brasil inteiro. Uma semana depois, foi revelado que Suzy cometeu um crime hediondo: estuprou e matou uma criança, foi condenada e cumpre pena no presídio. Varella e a Rede Globo pediram desculpas — e disseram não saber sobre os crimes que cada entrevistada cometeu.

Suzy foi uma das entrevistadas. Grande parte, no entanto, participou de uma aula do projeto Beleza no Cárcere, um curso profissionalizante de maquiagem realizado na Penitenciária José Parada Neto em Guarulhos. Quem ministra o curso é Juliana Zaroni, maquiadora e ativista dos Direitos Humanos que presta trabalho voluntário em cadeias desde 2016.

#tbt de uma das nossas primeiras aulas...

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Zaroni é jornalista de formação e está terminando sua graduação em sociologia política. Em entrevista ao TAB, conta que sempre foi envolvida em questões LGBTQ+ e passou a se envolver com pastorais carcerárias quando estava na faculdade de sociologia política. A maquiadora começou dando cursos de automaquiagem para mulheres cisgêneras e mulheres trans em diferentes presídios, mas foi em 2019 que o projeto certificou sete pessoas presas, dentre elas homens gays, mulheres trans e travestis.

"Meu trabalho é instrumentalizar a maquiagem para acessar outras questões. No caso das mulheres trans, a maquiagem serve como uma afirmação de gênero, estimular o autocuidado, a autoestima, a humanização", explicou Zaroni. "Confirme o curso foi acontecendo, estive em contato com a diretoria do presídio e fui informada que o número de brigas diminuiu, o número de confrontos diminuiu, de automutilação também — algo que é muito comum entre mulheres trans encarceradas . Com o curso, se melhora o ambiente como um todo".

Formatura do curso Beleza no Cárece na Penitenciária "José Parada Neto" em Guarulhos - Reprodução - Reprodução
Imagem: Reprodução

A maquiadora não acredita na eficácia das prisões, mas atua diretamente em uma ação para trazer não só uma perspectiva profissional para pessoas presas, mas também um pouco de humanidade. "Há algum tempo, o Brasil vive um momento de pensar em só construir cadeia. (...) Eu não acredito que cadeia seja um caminho para a ressocialização, parece contraditório, mas entendo que a sociedade tem que pensar novas formas de evitar a violência", conta.

O Brasil possui mais de 720 mil pessoas presas, sendo o 3º maior país do mundo em população carcerária. Fora as condições precárias nos presídios, a superlotação e a desumanização, os LGBTQs sofrem ainda torturas específicas por conta de sua orientação sexual e identidade de gênero que envolvem violências emocionais, físicas e sexuais — como a descaracterização ao terem os cabelos cortados e a obrigatoriedade de usar roupas masculinas, além de não terem seus nomes sociais respeitados.

O caso de Suzy representa uma pequena parcela dos crimes cometidos pela população trans nos presídios, mas Zaroni afirma que o intuito do projeto é enxergar além dos crimes cometidos, levando humanidade para estas pessoas. Segundo a maquiadora, a orientação é nunca discutir os crimes dos alunos, até por uma questão de segurança — orientação que também foi levantada pelo Fantástico ao se desculpar pela reportagem.

"Eles [a reportagem] não sabiam do crime da Suzy, eu não sabia e nem o Dráuzio sabia. (...) Quem tem essa missão, porque não é todo mundo que segura a onda, não pode ter esse tipo de pensamento. Tenho um grupo de voluntários que levava comigo no presídio e o procedimento de segurança padrão é não perguntar, em hipótese alguma, sobre os delitos. Porque não é o nosso foco e interfere no trabalho. Eles podem falar, mas você não vai comentar. Porque não é o objetivo, o objetivo é humanizar", explica.

Suzy não fazia parte do curso de Zaroni porque trabalha no presídio, mas ela conviveu com a presa diversas nos meses que passou na unidade ministrando o curso. Apesar do crime, Zaroni atenta que Oliveira foi julgada pelo que fez e está cumprindo sua pena como determinado. Para a maquiadora, o ato de abraçá-la não é um perdão pelos seus atos. "Eu também abracei a Suzy. Provavelmente, abracei muito mais vezes do que o Dráuzio e vou continuar abraçando. Sabe por quê? Porque aprendi que, a cada gesto de afeto e de carinho, estou nutrindo um lado melhor delas. Isso não tem nada a ver com o horror que tenho ao crime que ela cometeu", diz.

As aulas de maquiagem se provaram um desafio também porque as presas não podem praticar fora da sala de aula. Voltar maquiada para cela ou levar um item de beleza é proibido, além de gerar revolta entre os presos masculinos que estão na mesma unidade. Muitas delas também estão sem receber visitas. "Ouvi ali que era a única visita delas", relata a maquiadora.

Após a revelação do crime de Suzy, entidades e ativistas LGBTQ+ também denunciaram a transfobia presente nos discursos contra a reportagem. Em nota, a ANTRA (Associação Nacional de travestis e transexuais) repudiou a exposição do nome de registro de Suzy e questionou os motivos de tamanha revolta, visto que ela já está cumprindo pena. "É preocupante a ideia de que a vingança tome o lugar da justiça por pessoas incapazes de entender a complexidade do processo punitivo, para que se destile todo racismo e a transfobia contra a nossa população", afirmou a nota.

Suzy representa uma minoria da população trans que responde por crimes hediondos. Como demonstra a pesquisa encomendada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 38,5% das presidiárias trans respondem por roubo, 34,6% por tráfico, 15,4% por furto, 7,7% por homicídio e 3,8% por associação ao tráfico. A realidade da população trans nas cadeiras brasileiras foi levantada à pedido do próprio ministério e gerou o relatório "LGBT nas prisões do Brasil: Diagnóstico dos procedimentos institucionais e experiências de encarceramento".

A repercussão da reportagem não abalou o projeto de Zaroni ou a experiência que tirou dele. "Foi muito bonito. Passei por uma transformação brutal. Foram seis meses ali, toda semana, vendo que existe a humanidade, sim. Não somos completamente bons e muito menos completamente maus. Saber que minha presença ali nutriu o melhor das pessoas já valeu."