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Xenofeminismo pretende acabar com a noção de gênero através da tecnologia

Manifesto Xenofeminista defende a apropriação da tecnologia para a subversão de seus viéses e a conquista de um novo tipo de humanidade - Ilustração de Josan Gonzalez
Manifesto Xenofeminista defende a apropriação da tecnologia para a subversão de seus viéses e a conquista de um novo tipo de humanidade Imagem: Ilustração de Josan Gonzalez

Lidia Zuin

Colaboração para o TAB

22/04/2020 04h00

Criado em 2014, o coletivo Laboria Cuboniks reúne artistas, escritoras e programadoras interessadas em discutir e pensar o xenofeminismo: um movimento em constante transformação e definição sobre modelos políticos que englobem o presente e o futuro da tecnologia e da ciência, bem como das questões de identidade de gênero. Conectado a braços filosóficos contemporâneos como o aceleracionismo de esquerda, o anarcotransumanismo e o realismo especulativo, o xenofeminismo chegou a ser intitulado como o "Manifesto Comunista do século 21" pelo comentarista cultural Mark Fisher.

Apesar de trazer novas provocações ao cenário filosófico, o xenofeminismo (XF) não é, necessariamente, um movimento com ideias inéditas. Em 1984, a socióloga Donna Haraway já havia publicado o "Manifesto Ciborgue" no qual propunha o uso da tecnologia como forma de superar as noções de gênero a partir da figura do ciborgue como uma criatura didática, moldável. No caso do xenofeminismo, porém, mais do que isso, a estratégia é criar uma abundância de gêneros para levar a ideia ao absurdo e torná-la, por fim, obsoleta.

Em "Xenofeminism" (2018), uma das integrantes do Laboria, Helen Hester, fala brevemente sobre essa possibilidade que remonta a uma estratégia também proposta pelo aceleracionismo, uma vez que este visa a "aceleração dos efeitos alienantes das forças do capitalismo para incitar os tipos de transformação social radical necessários para superar o status quo político de uma economia de exploração desmedida", como define o filósofo Martin Hauberg-Lund, autor do Spekulativ realisme En introduktion.

Nesse sentido, o aceleracionismo pode ser visto tanto como um movimento niilista e que compactua com a perversidade tecnológica atual, ou mesmo uma visão de mundo contraintuitiva quando pensamos que sua finalidade é levar o capitalismo ao extremo para que o capitalismo seja, por fim, destruído.

Para Rodrigo Petrônio, professor da FAAP e doutor em literatura comparada pela UERJ, a ideia de que os impasses do capitalismo apenas possam ser superados dentro do capitalismo parece fazer sentido, como propôs Gilles Deleuze, Félix Guatarri, Maurizio Lazzarato e demais autores. No entanto, em termos conceituais, o pesquisador acredita que o aceleracionismo pode ser um pouco ingênuo por se basear em uma teleologia integral. "Não há mais nenhuma epistemologia contemporânea forte que se baseie em uma teleologia integral, apenas em finalidades locais, contingentes e parciais. Assim, o aceleracionismo acabou assimilando todos os problemas das doutrinas de um progresso linear e não-contraditório." Em outras palavras, a realidade é mais complexa do que o aceleracionismo consegue prever.

Mas o xenofeminismo busca aplicar essa lógica ao contexto do gênero, o que muda um pouco o foco da estratégia. Diante disso, Petrônio é mais otimista, em especial porque o XF é mais assertivo e pragmático do que o aceleracionismo. "Se a proliferação de gêneros negativar o valor distintivo dos gêneros em si, o valor de hierarquização contido na categoria gênero deixa de funcionar. Entra em inoperosidade, como diria Giorgio Agamben. Há uma desativação da lei da heteronormatividade. Gosto da ideia pelo valor pragmático e pela lógica que ela possui."

Já Beatrys Rodrigues, pesquisadora especializada na intersecção entre tecnologias e questões de gênero e sexualidade, é um pouco mais cética quanto a isso. Para ela, a proposta abolicionista de gênero é algo utópico, uma vez que só a equidade de gênero já é algo que caminha de forma lenta em todas as suas esferas — econômica, social e epistemológica. No entanto, assim como Petrônio, Rodrigues também vê no pragmatismo do XF algo positivo e já sendo posto em prática.

Tecnologias alienantes

O manifesto xenofeminista já propõe, desde seu slogan, a aposta em "uma política de alienação". Alienação aqui, contudo, não trata do sentido literal de estar isolado e desconectado do mundo, mas faz menção à ideia de alienação defendida por Marx e Engels no "Manifesto Comunista". Na obra publicada em 1848, os autores alertavam sobre o perigo da alienação advinda do processo de industrialização na Europa, isto é, o efeito colateral de os trabalhadores não poderem usufruir dos insumos de seu trabalho, gerando assim não apenas um círculo vicioso de exploração, mas também um contexto de desconexão do indivíduo com sua própria humanidade. Em outras palavras, no modo de produção capitalista, o trabalhador invariavelmente perde sua habilidade e possibilidade de planejar seu destino, bem como sua liberdade por estar preso nesse ciclo de produção de capital que, por sua vez, sustenta a exploração.

O que o XF sugere é que essa alienação, de fato, é inevitável, mas que talvez possamos subvertê-la após aceitá-la como uma realidade. Como escreve Macon Holt em artigo para o Arkbooks, usamos a própria linguagem e racionalidade para expressar nosso questionamento e reflexão acerca da linguagem e da racionalidade, então, por que não poderíamos utilizar a tecnologia como ferramenta para a crítica e a subversão da tecnologia?

Em suas palavras: "não é através de tecnologias — como os antibióticos agindo nos corpos — que muitos de nós fomos capazes de viver tão longamente que, para continuar lendo, precisamos modificar nossos olhos com tecnologia baseada em lentes e lasers. Já não seria esta uma criatura alienada? Talvez algumas formas de alienação não sejam totalmente ruins. Talvez ainda mais alienação nos libertará de qualquer forma injusta de natureza culturalizada que nos castiga com o patriarcado. Se esse é o caso, o xenofeminismo é, então, corajoso o suficiente ao fazer a seguinte pergunta: o que podemos fazer caso abracemos nossa alienação e a proliferemos ainda mais? Pode ser essa a nossa forma de nos emancipar?"

Gynepunk propõe ativismo queer, biohacking, e o desenvolvimento de hardware para autodiagnóstico e autocuidado com código aberto - Coletivo GynePunk - Coletivo GynePunk
Gynepunk propõe ativismo queer, biohacking, e o desenvolvimento de hardware para autodiagnóstico e autocuidado com código aberto
Imagem: Coletivo GynePunk

É a partir desse ponto que o XF, então, conecta-se com o transumanismo em sua vertente esquerdista e encontra, por exemplo, conexão com movimentos como o biohacking quando este busca reforçar o pensamento do "faça você mesmo". Em "Xenofeminism", Hester dá exemplos claros de tecnologias como o Del-Em — um método de sucção uterina para retirada do material menstrual e que, ao ser reapropriado, tornou-se um mecanismo mais seguro para o aborto.

Este dispositivo surgiu em meio a uma manifestação dos anos 1970 conhecida como "self-help" ou autoajuda, no qual mulheres (brancas, cis e heterossexuais de classe média) se reuniam para compartilhar recursos e conhecimentos médicos entre si de modo a ganhar autonomia e escapar de procedimentos impositivos do sistema médico. É sabido que naquela época, por exemplo, processos como o ligamento de tubas eram feitos sem o consentimento da mulher, assim como histerectomias eram feitas sem necessidade e métodos anticonceptivos não-testados eram aplicados.

Nesse sentido, o XF usa o Del-Em como um símbolo de uma tecnologia simples, porém significativa no que diz respeito ao empoderamento feminino no movimento self-help. Na contemporaneidade, Hester vê um desdobramento dessa combinação em iniciativas como o Gynepunk, que propõe ativismo queer, biohacking, e o desenvolvimento de hardware para autodiagnóstico e autocuidado com código aberto. Exemplos são a especula impressa em 3D — que possibilita o autoexame e a coleta de material para papanicolau, bem como outros equipamentos usando lixo eletrônico como motores de disco rígido e webcams.

Hester comenta que além de ajudar comunidades marginalizadas na prostituição, imigrantes ou pessoas trans, o GynePunk também rompe com o gatekeeping medicinal. Isso não significa que se trata de um movimento anticientífico ou com resquícios de uma comunicação próxima dos antivacinas, por exemplo. Na realidade, o que o XF propõe é romper com o monopólio capitalista da saúde, algo que faz bastante sentido no contexto americano em que os exemplos se inscrevem. Enquanto nos EUA, há grupos de trans biohackers que produzem seus próprios hormônios, no Brasil, o SUS passou a oferecer, em 2019 , cirurgias de transição para pessoas de 21 a 75 anos. Mas é também no Brasil onde vemos falas polêmicas como as de Damares Alves, que hoje ocupa o cargo de ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Para Rodrigues, a categorização binária proposta por Damares é problemática e já sabemos o quanto ela pode causar violência e incongruência na sociedade atual, porém, ainda é necessário pensar em políticas públicas que fortaleçam e protejam as mulheres. Apesar de o XF propor a superação do binarismo de gênero, a pesquisadora acredita que ainda levará um bom tempo até conseguirmos chegar nesse patamar enquanto sociedade. "Espero que, mais do que 'importar' manifestos, nós consigamos desenvolver críticas latinoamericanas sobre esses tipos de tecnologia, em especial no nosso contexto brasileiro", opina Rodrigues. "Principalmente, falta conectar tal crítica de forma tangível e prática no nosso contexto colonizado para que a sociedade civil, agentes públicos e empresas com interesse em impacto social consigam utilizar esses conhecimentos de forma acionável. Estamos na infância da discussão de gênero, ainda mais na discussão de gênero e tecnologia. Eu gostaria de ver emergir manifestos feitos pelos nossos próprios coletivos, ou que surgissem mais 'Haraways' tupiniquins."

Futuro, um tempo propositivo

Manifestantes vestidas de personagens da série "The Handmaid's Tale" em frente ao Congresso - UOL - UOL
Manifestantes vestidas de personagens da série "The Handmaid's Tale" em frente ao Congresso
Imagem: UOL

No Brasil, há um maior apelo para a questão racial do que ao feminismo em si. Apesar de o país ainda contar com uma desigualdade entre homens e mulheres, por exemplo, a nível econômico, há uma disparidade ainda maior quando se considera a questão racial nesta equação: mulheres negras ganham menos que mulheres brancas — apesar de ocuparem os mesmos cargos. Além disso, sofrem de isolamento não apenas por seu gênero, mas também por sua raça. Quando falamos de pessoas trans, a situação fica ainda mais desequilibrada: cerca de 90% dessa população acaba se prostituindo por falta de espaço no mercado. É por conta de dados alarmantes como esses que Rodrigues sente um certo pessimismo a curto prazo, porém o xenofeminismo talvez esteja mirando em um futuro mais distante e também mais positivo do que conseguimos visualizar hoje.

Para Rodrigo Petrônio, o XF engloba os aspectos mais potentes do feminismo: "Ele combate a melancolia e as epistemologias da negatividade, a defesa da alienação, o abolicionismo dos gêneros e a valorização da potência emancipatória das tecnociências e do transumanismo." Para o professor, é possível que estejamos apenas no começo de uma das maiores revoluções do sapiens e mesmo de toda vida na Terra. "A dupla chave de compreensão dessa revolução são a ciência e a tecnologia. Dentre as alterações radicais e paradoxais que devem advir dessa revolução, a emancipação dos gêneros parece ser uma das mais cruciais. E mesmo se pensarmos em uma indiscernibilidade entre gêneros que impliquem a construção de novos corpos e de novas subjetividades, acredito que essa mudança esteja apenas começando. O xenofeminismo é uma proposta extremamente inteligente e sintonizada com essas demandas coletivas de sentido e de transformação propiciadas pelas tecnociências e pelo transumanismo."

Esse cenário, para Beatrys Rodrigues, poderá ser conquistado através da intersecção da análise comportamental massiva proporcionada por dados minerados das plataformas sociais e aliados à manipulação genética e hormonal. "O manifesto XF prevê tudo isso: precisaremos criar novas palavras, novos símbolos e novas histórias para esses seres híbridos e manipulados quimicamente", defende a pesquisadora que, por fim, acredita que será necessário que a sociedade toda participe dessa conscientização e criação de novas narrativas virais e contagiantes que nos permitam adentrar nessa nova era.

Em tempos de sucesso da série "The Handmaid's Tale" e da música viral "O estuprador é você", o xenofeminismo vê nas narrativas e nas tecnologias que hoje podem nos cegar em bolhas de conteúdo ou nos manipular em algoritmos invasivos uma forma de redefinir o curso da história. Ao se preocupar com questões como privacidade, tecnologias de reprodução e assédio sexual virtual, o XF propõe, assim como no Manifesto Ciborgue de Haraway, questionamentos não-essencialistas e que pedem por tecnologias não-patriarcais para se pensar novas ontologias, novas formas de relação homem-máquina e até por um futuro que, a princípio pode parecer utópico, mas que um dia venha a ser agênero.