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Por que a discussão sobre abuso sexual infantil precisa evoluir no Brasil

O combate à exploração e ao abuso sexual contra crianças e adolescentes é um campo de disputa política no Brasil, porém pouco ajuda as vítimas - iStock
O combate à exploração e ao abuso sexual contra crianças e adolescentes é um campo de disputa política no Brasil, porém pouco ajuda as vítimas
Imagem: iStock

Marie Declercq

Do TAB

23/06/2020 04h00

A discussão sobre abuso sexual de crianças movimentou as redes sociais desde a denúncia envolvendo o youtuber PC Siqueira. A história surgiu como mais um caso de exposição nas redes sociais iniciado pelo perfil de Twitter e Instagram #ExposedEmo, que também divulgtou conversas antigas mantidas pelo baterista do CPM 22 com uma internauta que, na época da troca de mensagens, era menor de idade. Segundo a denúncia do perfil, Siqueira recebeu uma foto mostrando uma criança de 6 anos em um contexto sexualizado, e compartilhou o material com um conhecido por mensagem privada no Instagram. O caso está sendo investigado.

4ª Delegacia de Proteção à Pessoa da DHPP, em São Paulo, ... - Veja mais em https://entretenimento.uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/16/pc-siqueira-presta-depoimento-em-sp-apos-ser-acusado-de-pedolifia.htm?cmpid=copiaecol
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Ocorrências que envolvem abuso sexual de menores são sempre complexas e exigem extremo cuidado por parte de todos os envolvidos nas investigações. Ao longo dos últimos 30 anos — desde a promulgação do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) e a divulgação mais intensa de casos de abusos sexuais —, sociedade, imprensa e autoridades incorrem nos mesmos erros ao tratar do assunto, falhando em proteger o elo mais fraco das histórias: as vítimas.

Pedofilia e abuso de menor: tem diferença?

Ao contrário do estampado em manchetes de jornais, campanhas institucionais e até em algumas leituras acadêmicas, pedofilia não é crime, mas um transtorno mental reconhecido pela OMS (Organização Mundial da Saúde) desde os anos 1960.

O assunto é delicado, mas cabe uma diferenciação entre os termos. A pedofilia é caracterizada como um transtorno sexual em que o portador da doença sente interesse sexual compulsivo por crianças abaixo de 13 anos. Dentro dessa classificação, há os pedófilos predadores (que são aqueles que abusam de crianças) e há os que não abusam, mas mantêm esses pensamentos.

Não existe cura para a pedofilia. Por isso, é preciso acompanhamento médico constante -- terapia e, em alguns casos, medicação hormonal para inibir o desejo sexual -- para tratar dos impulsos. O tratamento não é só importante para o pedófilo como também o impede de fazer vítimas. Quando um pedófilo comete abuso sexual, aí sim ele passa a ser um abusador e deve responder pelos seus atos perante a Justiça. No entanto, nem todos os abusadores de crianças são pessoas portadoras do transtorno.

"O principal problema é que o uso indiscriminado do termo obscurece a verdadeira questão: a pedofilia é classificada no conjunto de uma desordem mental; ao passo que o abuso sexual infantil (a pornografia infantil) se refere ao perpetrador de abuso sexual e não implica, necessariamente, doença mental, mas crime", explica Herbert Rodrigues, sociólogo, professor da Missouri State University (EUA) e autor do livro "A pedofilia e suas narrativas" (Editora Multifoco). "Portanto, a pedofilia seria uma doença mental que poderia ser classificada sob o termo de molestador infantil. Mesmo que pedófilos sejam classificados como molestadores infantis, nem todos os molestadores podem ser considerados -- ou diagnosticados -- como pedófilos."

Na mesma linha, psiquiatras especializados entendem que a banalização do termo "pedofilia" é uma das causas que impedem pessoas com essa doença de procurar ajuda e evitar algum tipo de abuso contra crianças. Além disso, nem sempre os casos de abusos sexuais contra menores são cometidos por pedófilos, mas muitas vezes por pessoas que se aproveitam de uma situação de vulnerabilidade da vítima para agir. O psiquiatra Danilo Baltieri, coordenador do ABSex (Ambulatório de Transtornos da Sexualidade da Faculdade de Medicina do ABC), avalia que cerca de 30% a 40% dos agressores sexuais de crianças são, de fato, pedófilos.

Se grande parte dos agressores sexuais não é doente, o que explicaria o grande número de abuso sexual de menores no Brasil? Para o sociólogo, a resposta está na construção de nossa identidade. "Grande parte dos abusos sexuais contra crianças acontece em casa, na família. Isso ocorre por causa do modelo patriarcal de família, que ainda persiste no Brasil. A cultura do estupro de menores corresponde historicamente ao poder dos homens adultos, que ignoram as normas sociais de respeito ao ser humano e perpetuam, assim, atos de dominação e naturalização de violência real e simbólica contra indivíduos vulneráveis", diz Rodrigues.

Pedofilia é crime?

Pelas leis brasileiras, qualquer ato que atente contra a dignidade sexual da criança é tipificado como crime, como o estupro de incapaz (artigo 217-A do Código Penal) e a pornografia infantil (prevista nos artigos 240 e 241 do ECA).

Não só no Brasil, mas também no resto do mundo, não existe qualquer dispositivo legal que criminalize a pedofilia. "Do ponto de vista jurídico, a definição mais comum de abuso sexual se caracteriza pela ausência de consentimento. O estupro é justamente considerado crime por se tratar de ato sexual não consentido pela vítima. Logo, o sexo entre adultos e crianças deve ser considerado crime pelo fato de não haver consentimento", explica Rodrigues.

O uso do termo "pedofilia" pela imprensa, pelas autoridades e pelo público em geral acabou se normalizando na última década. Alas progressistas e conservadoras vêm debatendo se seria mesmo necessário ser tão fiel à terminologia, visto que a doença envolve um desejo tão repulsivo a ponto de se tornar imperdoável e dispensar qualquer garantia de direitos básicos.

A casa de um dos acusados no Caso Escola Base em 1994, foi alvo de depredação por conta do clamor midiático da história - Jusbrasil - Jusbrasil
A casa de um dos acusados no Caso Escola Base em 1994, foi alvo de depredação por conta do clamor midiático da história
Imagem: Jusbrasil

Faz diferença parar de usar o termo?

Para muitos, usar a palavra "pedofilia" como um termo guarda-chuva pode não fazer diferença na prática. No entanto, criminalizar uma condição médica impede de que pessoas realmente doentes busquem cuidados médicos para tratar do transtorno. Também há, conforme aponta Rodrigues, a criação de uma imagem monstruosa do abusador, como se ele fosse um indivíduo descolado da sociedade, um pária. Ao analisar perfis de quem abusa de crianças no Brasil -- em grande parte, pessoas próximas da vítima --, esse estereótipo está longe de corresponder à realidade.

O senso comum, com auxílio do saber psiquiátrico, normalmente traça um perfil do abusador como um sujeito louco e moralmente desqualificado. Na prática, o que se observa é algo diferente. O abusador é alguém da própria família, ou uma pessoa que pertence ao círculo íntimo da vítima: pai, padrasto, tios, namorado da mãe, amigos, professores, técnicos de esportes, padres, enfim, pessoas que possuem acesso às crianças e suas casas. Pode-se afirmar que o abusador infantil é geralmente um indivíduo respeitável, cumpridor da lei, um 'cidadão de bem', que pode escapar da punição exatamente por essas razões
Herbert Rodrigues, sociólogo

Disputas de poder

Ao estudar o assunto para sua tese de doutorado que gerou o livro, Rodrigues buscou entender quando o termo "pedofilia" começou a ser usado indiscriminadamente pela imprensa e pelo Poder Judiciário lendo julgados no TJSP (Tribunal de Justiça de São Paulo) dos últimos 30 anos. Nessa pesquisa, descobriu dois fenômenos: a banalização do termo e, simultaneamente, uma maior especialização da Justiça Penal no campo da psiquiatria forense.

É porém a CPI da Pedofilia, iniciada em março de 2008, que explica como a sociedade brasileira passou a lidar com casos de abuso sexual contra menores, incluindo a pornografia infantil. O presidente da comissão era Magno Malta, na época senador eleito pelo PR (Partido Republicano) do Espírito Santo.

"Composta apenas por membros do sexo masculino, de perfil predominantemente conservador, com enfoque criminal e punitivo, e alguns pertencentes à chamada bancada evangélica do Congresso, essa CPI pode ser considerada o marco inaugural do recente combate à exploração sexual infantil no Brasil. Presenciamos, nos últimos anos, uma disputa entre discursos que ora tendem a ser mais progressistas, ora mais conservadores, e pretendem empenhar uma cruzada moral contra a exploração sexual infantil na sociedade brasileira", explica.

Para o sociólogo, o embate político pouco beneficia quem mais se prejudica nesses casos: a própria vítima. "Percebe-se, nessas disputas, o uso de uma retórica extremamente conservadora, de matriz religiosa e criminalista, apoiada em um suposto clamor popular para desencadear comoção em torno da cruzada moral em defesa da infância. Na prática, são grupos conservadores interessados meramente na autopreservação, com poucos resultados efetivos na vida das crianças, que continuam vulneráveis e sofrendo abusos de toda natureza."

Clamor público não resolve

Os efeitos da CPI da Pedofilia, elogiada na época como um grande esforço do Senado em combater redes de abuso sexual infantil naturalizadas em diversos cantos do país, recaíram sobre Luiz Alves de Lima, ex-cobrador de ônibus em Vitória (ES).

Acusado de abusar sexualmente da filha, na época um bebê, Lima foi encarcerado durante 9 meses e torturado por agentes policiais. Após provar sua inocência, Lima vive com sequelas irreparáveis da acusação e hoje processa Malta, que conduziu pessoalmente sua prisão.

Em 1994, o Caso Escola Base também mostrou problemas da imprensa e das autoridades ao lidar eticamente com acusações de abuso sexual. A história em questão envolveu acusações de abuso sexual contra crianças matriculadas em uma escola infantil na capital de São Paulo, enterrando a vida dos acusados -- os donos da escola e um motorista de Kombi escolar. Meses após o escândalo, foi provado que não houve nenhum abuso. Hoje a história é usada em cursos de Jornalismo como exemplo de erros cometidos pela cobertura da mídia.

O clamor público e a disputa política em torno do assunto não garantem que o problema do abuso sexual infantil seja de fato combatido no país, especialmente em regiões mais remotas, onde há intensa subnotificação às autoridades de abusos cometidos por membros da família.

Estima-se que 70% das vítimas de estupro no Brasil são crianças e adolescentes, de acordo com o levantamento feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) em 2014. Em geral, a maioria dos agressores são do sexo masculino, maiores de idade e próximos à vítima — por sua vez, em grande parte, do gênero feminino.

Para o sociólogo, falta mais estrutura estatal da base ao topo da pirâmide, como programas de educação sexual nas escolas para conscientização sobre o que é violência sexual e capacitação de agentes policiais, membros do Judiciário e do próprio sistema público de saúde. "A responsabilidade de combater o abuso sexual infantil é de todos, dos políticos, dos profissionais do sistema de justiça, da saúde e da educação, e também das famílias", argumenta.