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Legião Negra: como a Revolução de 1932 possibilitou a afirmação do negro

A Legião Negra, que atuou durante a Revolução Constitucionalista de 1932 - Ricardo Della Rosa/Acervo pessoal
A Legião Negra, que atuou durante a Revolução Constitucionalista de 1932 Imagem: Ricardo Della Rosa/Acervo pessoal

Edison Veiga

Colaboração para o TAB, de Bled (Eslovênia)

12/07/2020 04h02

Em setembro de 1931, menos de um ano antes da eclosão do movimento armado que entraria para a história como a Revolução Constitucionalista de 1932, foi fundada em São Paulo a primeira organização negra do país: a Frente Negra Brasileira.

Quando começou o levante paulista contra o então presidente Getúlio Vargas (1882-1954), em 9 de julho de 1932, houve um racha no grupo. Parte de seus integrantes decidiu pegar em armas e ir para os fronts de batalha. Assim foi fundada a Legião Negra, um batalhão étnico que chegou a reunir 2 mil voluntários durante os meses de combates.

"Muitos dos batalhões de voluntários foram criados por esportistas, professores, funcionários públicos, ferroviários, universitários, comerciários, operários. A população negra, atendendo ao chamado de suas lideranças no estado, já em 14 de julho, cinco dias após a eclosão do movimento, criou uma unidade específica, chamada de Legião Negra de São Paulo", contextualiza ao TAB o historiador Sérgio Marques, tenente-coronel da reserva da Polícia Militar do Estado de São Paulo.

Segundo pesquisadores, no decorrer da revolução, a Legião Negra adquiriu boa fama entre os combatentes. Seus integrantes eram considerados aguerridos, destemidos e dotados de força acima da média. "Um orgulhoso combatente de 1932, pertencente à Legião Negra — o oficial Francisco Salgado —, dizia que 'nenhum batalhão entra em fogo sem a Legião Negra'", comenta Marques.

"Apesar do treinamento bisonho que todos tiveram, os integrantes da Legião Negra eram conhecidos por serem 'bons de briga', fortes no combate", confirma ao TAB o pesquisador e colecionador Ricardo Della Rosa, autor do livro "Revolução de 1932: A História da Guerra Paulista em Imagens, Objetos e Documentos". "Sabe-se que as tropas que já estavam no lugar, quando sabiam que a Legião Negra ia chegar, ficavam muito felizes. Eles tinham essa fama de bons combatentes."

O comandante militar da Legião Negra, Gastão Goulart (de bigode e capa preta) - Acervo de Ricardo Della Rosa - Acervo de Ricardo Della Rosa
O comandante militar da Legião Negra, Gastão Goulart (de bigode e capa preta)
Imagem: Acervo de Ricardo Della Rosa

Deus, Pátria e Família

Conforme conta o historiador Petrônio Domingues, no livro "Dicionário da Escravidão e Liberdade". obra organizada pela antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e pelo historiador Flávio dos Santos Gomes, a Frente Negra Brasileira foi fundada em 16 de setembro de 1931 como "uma tentativa por parte da população negra de se unir, organizar-se em torno de uma entidade que lutasse pelos seus direitos e, finalmente, contar com um local onde pudesse exercer a sua sociabilidade".

Não há dados oficiais que comprovem quantos se associaram à agremiação. Estimativas variam entre 8.000 e 50 mil pessoas. Havia um departamento jurídico que auxiliava os membros em questões de violação de direitos e os associados também contavam com assistência médica. O grupo tinha um time de futebol, o Frentenegrino Futebol Clube, um jornal, A Voz da Raça, e chegou a montar até uma milícia, um grupo paramilitar — que nunca entrou em ação, mas funcionava como demonstração de capacidade de atuação.

No espectro ideológico, a Frente Negra estava à direita, semelhante ao integralismo. "A entidade preconizou um projeto nacionalista, de viés autoritário. Advogava um governo forte, centralizador e de obediência à figura do seu líder", explica Domingues, no livro.

Historiador e PM Sérgio Marques - Acervo Pessoal - Acervo Pessoal
Historiador e PM Sérgio Marques
Imagem: Acervo Pessoal

O slogan do grupo, impresso junto ao cabeçalho do jornal A Voz da Raça, era "Deus, Pátria, Raça e Família". Ou seja: exatamente a divisa da Ação Integralista Brasileira, com o acréscimo da palavra "raça".

Domingues relata que o presidente da Frente, Arlindo Veiga dos Santos (1902-1978), mantinha relações com os líderes do integralismo brasileiro e não pestanejava em declarar, publicamente, "sua admiração pelos movimentos fascistas na Itália e na Alemanha". O historiador, contudo, ressalta que esse discurso não era hegemônico na instituição: "ali militavam negros e negras de múltiplos matizes político-ideológicos (monarquistas, integralistas, socialistas, comunistas)".

Esse contexto, não raras vezes, provocava cisões. E foi o que ocorreu com a Revolução de 32. Após aquele 9 de julho, a entidade posicionou-se, em nota pública, adotando a neutralidade na contenda.

"Como era meio voltada a [apoiar] Getúlio Vargas, a Frente Negra ficou um pouco em suspensão nesse período, não tomou parte na Revolução", comenta Della Rosa.

"A Legião Negra é resultante dessa ruptura ocorrida no interior da Frente Negra", explica Marques. "A Frente Negra Brasileira colocou-se em neutralidade no início das hostilidades, porém concedeu a seus membros liberdade de ação e pensamento."

Um advogado negro, baiano, ex-diretor do departamento social da Frente, tornou-se o chefe civil da Legião Negra: Joaquim Guaraná Santana. Capitão da Força Pública — antecessora da Polícia Militar paulista —, Gastão Goulart incumbiu-se da chefia militar do grupo.

O curioso é que, conforme aponta Della Rosa, Goulart não era negro. "Era branco. Mas era da Força Pública. Isso foi comum durante a Revolução: colocavam um oficial da Força Pública como comandante de batalhões voluntários."

A Legião Negra fez de sua sede a Chácara do Carvalho, casarão que até hoje existe no bairro da Barra Funda, em São Paulo — atualmente funciona ali o Colégio Boni Consilli, mas na época era um QG militar.

Foto atual da Chácara do Carvalho, hoje Colégio Boni Consilli - Wikipedia/Creative Commons  - Wikipedia/Creative Commons
Foto atual da Chácara do Carvalho, hoje Colégio Boni Consilli
Imagem: Wikipedia/Creative Commons

Afirmação racial

"A Legião lançou uma 'Proclamação a todos os negros do Brasil', na qual expressava seus ideais de liberdade associados aos direitos, à cidadania e à participação", escreve Domingues. "Lutar em prol da Constituição significava, para os negros, opor-se à opressão e defender o regime da lei, da democracia e, no limite, defender a própria pátria."

Segundo o historiador, o discurso em voga era que, "como sujeito ativo na construção da nacionalidade, o descendente da 'raça negra' deveria honrar o exemplo de luta de seus maiores" e, assim, cerrar "fileira nessa cruzada cívica". "Esse sentido de pertencimento e de participação nos destinos da nação sinalizava o desejo de reconhecimento, a afirmação racial e a necessária inclusão social", enfatiza Domingues. Nesse contexto, a luta realmente era constitucionalista, afinal, "cumprir a Constituição era pré-requisito para assegurar" aquilo que jamais deveria existir: "a desigualdade entre negros e brancos".

Não significa, entretanto, que a participação do negro na Revolução de 32 estivesse restrita à Legião. "Todos os batalhões do exército constitucionalista — Força Pública, exército nacional e voluntários civis — possuíam, em suas fileiras, cidadãos negros, pardos ou mulatos", pontua Marques.

"O negro já estava muito bem integrado à Força Pública. Isso a gente vê em fotos antigas", confirma Della Rosa. "A Legião Negra se formou porque havia o desejo de negros que gostariam de combater ao lado dos irmãos."

Os combatentes da Legião Negra foram apelidados de "pérolas negras". "E as famílias tinham muito orgulho em dizer que 'meu filho é um pérola negra'. Isso pegou mesmo", diz Della Rosa.

Mulheres e índios

Em geral, o trabalho das mulheres na Revolução de 32 ficou relegado a funções de retaguarda, do cerzimento de uniformes à enfermaria dos feridos em batalha. Na Legião Negra, contudo, pelo menos cinco soldados femininas engrossaram o front. A de história mais notável foi a de Maria José Barroso (1895-1958), conhecida como Maria Soldado.

"Sendo empregada doméstica, quando estourou a Revolução se voluntariou como enfermeira na Legião Negra. Deslocada para o setor sul de combate, não apenas cuidou dos ferimentos de seus irmãos de armas, mas também empunhou um fuzil nas fronteiras do sul", conta Marques. "Ferida em 17 de agosto no campo de luta, em Guapiara, no mesmo mês, dia 28, perfilou-se novamente nas trincheiras com os demais soldados da Legião Negra."

Em 1957, Maria Soldado acabou escolhida, em cerimônia comemorativa aos 25 anos do movimento, como a "mulher símbolo da Revolução de 32".

"A Legião foi também composta de indígenas, dentre eles, das nações guarani e cainhauguis", conta Marques. De acordo com o jornal Correio de São Paulo, em artigo publicado em 23 de agosto de 1932, estes foram "aproveitados nos serviços de ligação e reconhecimento", pois possuíam "grande resistência" e eram "conhecedores de inúmeros ardis, utilizáveis em missões arriscadas".

Dos cerca de 2 mil combatentes da Legião Negra, oito morreram em batalha. Alguns, como Maria Soldado, estão sepultados no Obelisco Mausoléu aos Heróis de 32, também conhecido como Obelisco do Ibirapuera, em São Paulo.

O mesmo ocorreu com outro ilustre integrante da Legião Negra, o jogador de futebol Arthur Friedenreich (1892-1969), apelidado de El Tigre e considerado a primeira grande estrela do futebol brasileiro. "[Foi] um dos principais atletas da época, jogador do São Paulo, filho de mãe negra e pai alemão", conta Marques.

Comandante militar da Legião Negra, Gastão Goulart virou rótulo de vinho argentino. Depois da derrota paulista na Revolução, o militar acabou preso pelas tropas getulistas. Em seguida, exilou-se na região de Mendoza, Argentina, onde montaria uma vinícola e escreveria seu livro "As Verdades da Revolução Paulista".

Goulart voltou ao Brasil, onde morreu em 1964. Mas em 1997, sua neta Erika Goulart decidiu refazer o negócio do avô. Fundou então a vinícola Bodega Goulart.