O que a desconfiança da vacina e o uso de WhatsApp revelam sobre o Brasil
A pergunta se repete em diferentes grupos nos últimos meses: "quando a vacina estiver disponível, você vai tomar?". De um lado, uma maioria que mal pode esperar pela imunização contra a Covid-19. De outro, os anti-vacina. No meio, muitos que repetem: "vou esperar bastante gente tomar primeiro". As mais de 30 mil pessoas vacinadas durante as fases de teste parecem não convencer. É preciso ver algum conhecido imunizado e seguro antes de confiar.
Esse é apenas um exemplo do que os números vêm mostrando há anos: o brasileiro confia muito em quem conhece e pouco nos outros. Menos ainda em instituições, despersonificadas.
"A confiança dos brasileiros em relação às pessoas e instituições em geral é muito baixa. Nós somos um país de relacionamento intensivo, de alta sociabilidade, de alta interação, mas somos um país de baixa confiança", constata Marco Tulio Zanini, professor da FGV-EBAPE (Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas) e estudioso do tema.
Países como Noruega e Suécia apresentam níveis consistentemente altos de confiança no World Value Survey, por exemplo. Em 2011, 60,1% dos suecos disseram que "a maior parte das pessoas é confiável" e 37,2% que "é preciso ser muito cuidadoso", quando a pergunta era "De modo geral, você diria que pode confiar na maioria das pessoas ou precisa ser muito cuidadoso com elas?".
Por aqui, o cenário é outro. Na edição mais recente da pesquisa, feita no Brasil em 2018, 6,5% dos brasileiros responderam que "a maior parte das pessoas é confiável" e 91,6% disseram que "é preciso ser muito cuidadoso".
Mesmo entre nossos vizinhos, somos considerados os mais desconfiados. No levantamento Latinobarómetro de 2018, 94,9% dos brasileiros disseram que "nunca se é suficientemente cuidadoso no trato com os demais". Na Colômbia, a porcentagem de pessoas que concordou com a frase foi 78,1% e no Uruguai, 77,1%, por exemplo.
Diga-me com quem andas
É naturalmente necessário ter em quem confiar, afirma ao TAB a psicóloga Josie Conti. "Tanto que nós somos seres sociais e criamos as religiões. Se você desfizer todas as religiões de hoje, daqui a pouco tem alguém construindo um templo. O problema é que, quanto mais perdida, desestruturada ou vulnerável, maior a chance de a pessoa acreditar em um salvador da pátria."
Nas sociedades de baixa confiança institucional, esse papel é relegado aos mais próximos, ao que Zanini chama de clã social: seja a família, os amigos, os fiéis da mesma igreja ou os frequentadores de um mesmo grupo.
E isso se reflete em dados. O Índice de Confiança Social (ICS) de 2019, medido pelo IBOPE, mostra que a família tem 85 pontos de confiança (de 0 a 100) e os amigos, 67. Bombeiros (88), policia (72), igreja (71) e forças armadas (69) são as únicas das 20 instituições da pesquisa que se equiparam. Isso que em 2018 elas se recuperaram aos olhos da população. Em anos anteriores, os números eram ainda mais baixos.
Origens e consequências
E de onde vêm esses traços do brasileiro? É difícil apontar apenas um fator, defendem os especialistas. Para termos algumas pistas, Conti explica que o desenvolvimento de confiança pressupõe alguns pilares básicos: "Proximidade (você faz um laço), estabilidade (a pessoa precisa manter uma coerência de comportamento), reciprocidade (estabelecer uma relação), e isso tudo gera intimidade. Se você gera intimidade, você tem liberdade e confiança", afirma ela.
É, portanto, a soma de diversos fatores que nos coloca nessa posição de distanciamento tão grande das instituições e aproximação forte com nossos clãs. "Nós somos um país de alta desigualdade, somos um país que tem diversos traços de cultura e uma história que nos trouxeram a esse tipo de construção de vínculos", diz Zanini. Ele aponta, entre outros fatores, os anos de autoritarismo, a corrupção em nível governamental e privado, a falta de transparência e a conquista ainda recente do voto como pontos que nos deixam ainda com um pé atrás. Isso tudo reflete em falta de estabilidade.
Já a falta de proximidade é vista, por exemplo, no descrédito à ciência e na consequente circulação de notícias falsas. Se uma entidade que eu não conheço nem entendo muito bem me diz uma coisa, mas o vizinho do meu primo passou por uma situação oposta, eu posso estar mais disposto a confiar em quem faz parte do meu clã.
"Como eu não consigo ter certeza de quem está falando a verdade, como eu não sei profundamente sobre o assunto, eu mobilizo atalhos que possam filtrar um pouco e trazer alguns atores que tenham características similares às minhas e em quem eu posso confiar", explica João Guilherme Bastos dos Santos, pesquisador do INCT.DD (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Democracia Digital).
Ele cita o conceito de racionalidade de baixa informação, que entende que as pessoas tomam decisões com base nos que elas sabem sobre determinado assunto, mesmo que seja muito pouco. "Em todo o ambiente em que você tem uma falta de segurança com relação ao que é ou não verdade, esse tipo de estratégia funciona. A gente vê muito isso em períodos eleitorais, e não é diferente na pandemia", diz ao TAB.
Não significa necessariamente que os clãs sejam de todo ruim, lembra Conti. No entanto, eles podem ser manipulados politicamente. "Se você constrói uma milícia digital, você consegue atingir milhões de pessoas desconstruindo o pouco de intimidade e confiabilidade que elas tinham com determinado tema", diz a psicóloga.
Portanto, é fácil perceber como as notícias falsas encontram terreno fértil para se espalhar no Brasil. Santos destaca o papel do WhatsApp, que funciona em rede por conta dos grupos. "Esse fluxo de informação que passa pelos conhecidos, que passa por alguém que é uma referência e parece ser bem informado, toda essa dimensão da racionalidade de baixa informação e o fato de as pessoas confiarem mais nos próximos do que nas instituições ganha uma materialidade no aplicativo", defende ele.
Pouca identificação com as instituições, boa confiança nas pessoas próximas e ferramentas que trazem essa proximidade se combinam nessa mistura, que leva a ainda mais instabilidade e desconfiança. "O que a gente percebe é que o Brasil está vivendo um processo de desconstrução, mas ao mesmo tempo não sabe o que colocar no lugar", pondera Zanini.
No entanto, nem tudo são más notícias. O professor da FGV vê com otimismo a aproximação de algumas instituições com a sociedade. Ele cita, por exemplo, o STF (Supremo Tribunal Federal). Se há uma década era difícil encontrar alguém que soubesse listar o nome dos ministros da Corte e apontar sua função, hoje é mais comum conhecê-los nominalmente e até mesmo saber como votam.
Para ele, esse é o caminho correto. "Acho que a gente tem que dar uma resposta, hoje mais do que nunca, de transparência dos critérios, de como as instituições escolhem, promovem, premiam, como as instituições elegem. Esse processo tem que ser muito transparente e criterioso", defende.
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