Topo

'Vou transformar o luto em luta', diz mãe da ciclista morta em SP

Da esq. para a dir., Maria Cláudia Kohler, a filha Marina Kohler Harkot, Paulo (o pai) e Fabio, o irmão - Maria Cláudia Kohler/Arquivo pessoal
Da esq. para a dir., Maria Cláudia Kohler, a filha Marina Kohler Harkot, Paulo (o pai) e Fabio, o irmão Imagem: Maria Cláudia Kohler/Arquivo pessoal

Paulo Sampaio

Do TAB

14/11/2020 04h01

A bióloga Maria Claudia Kohler, 56, está reagindo com bravura à morte brutal da filha, a socióloga Marina Kohler Harkot, 28, atropelada no domingo (8) quando andava de bicicleta em uma ciclofaixa da avenida Paulo VI, no Sumaré, bairro da zona oeste de SP.

Inconsolável com a perda, mas com voz firme, Maria Claudia diz que pretende honrar a memória da filha, dando seguimento à luta dela. Marina fazia doutorado em mobilidade social na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo), e era ativista pelos direitos das minorias, incluindo os ciclistas.

O corpo de Marina foi velado no Pacaembu, em São Paulo, com presença de ciclistas que queriam homenageá-la. Depois, seguiu para Niterói.

"Eu não quero que a morte da minha filha me enfraqueça. Vou transformar o luto em luta, continuar a batalha dela", disse a bióloga ao TAB, em entrevista pelo telefone, do Rio, na sexta (13), pouco antes de participar da Missa de Sétimo Dia da filha, na igreja da Matriz Nossa Senhora da Glória, no Largo do Machado.

Apesar da disposição de enfrentar o "descaso e a impunidade", ela diz que não é a favor de cultivar o ódio.

Casada há 30 anos com um oceanógrafo, ela tem mais um filho com ele, Fabio, 24, que se formou em um curso da EFOMM (Escola de Formação de Oficiais da Marinha Mercante) e vive em um veleiro. "Lá em casa, a gente é muito alinhado intelectual e culturalmente", diz.

Leia os principais trechos da entrevista de Maria Cláudia com a reportagem:

Maria Claudia Kohler, mãe da socióloga Marina Kohler Harkot, morta num acidente no último domingo (8) - Arquivo pessoal/Facebook - Arquivo pessoal/Facebook
Maria Claudia Kohler, mãe da socióloga Marina Kohler Harkot, morta num acidente no último domingo (8)
Imagem: Arquivo pessoal/Facebook

Como você soube da morte da Marina?
Maria Cláudia Kohler: Uma amiga da minha filha nos ligou às 4 da manhã, dizendo que ela tinha sofrido um acidente, e perguntou se a gente podia estar em São Paulo ainda naquele dia. Fiquei muito assustada, meu marido pegou o telefone. Aí, já falaram que ela tinha ido a óbito. Me desesperei. Ele teve de fechar a janela porque eu tive um impulso de me atirar. Um primo que é médico veio aqui para casa e nos embarcou em um táxi. Não tinha voo, e também a passagem seria uma fortuna.

Como foi essa viagem?
MCK: Não foi tão ruim quanto se pode imaginar. Eu e meu marido viemos nos apaziguando, lembrando de tudo, choramos, ficamos em silêncio, você fica meio sem ter onde se amparar.


Você tem mais filhos?
MCK: Sim, um menino de 24. Ele também não mora conosco, mora em um veleiro. Fez escola de formação da Marinha Mercante. Nós moramos em São Paulo até os onze anos da Marina. Ela é muito urbana, tem uma questão forte com a cidade, quis ficar. Mas passava todas as férias na casa dos avós, em Angra dos Reis.

Ela militava pelo respeito aos ciclistas, às ciclofaixas, e acabou sendo vítima da estupidez enquanto pedalava. Isso parece ainda mais absurdo.
MCK: Pois é. O discurso dela era por uma cidade mais amável, gentil. Acreditava muito na possibilidade de melhorar. Batalhava por isso. Ela fez sociologia, na USP, era muito engajada, inclusive porque conviveu conosco, foi criada por pai e mãe muito envolvidos com a questão ambiental. Nós, a família, sempre fomos alinhados intelectual e ideologicamente. O pai está acabado. Mas é mais racional.

Com que ela trabalhava?
MCK: Com movimentos ligados à defesa das minorias, estava superenvolvida com a mobilidade de gênero. Quando falava disso comigo, para eu não ficar muito atrás, começava do feminismo, e ia evoluindo para assuntos "cabeçudos", até chegar no universo LGBTQI+, na questão de identidade de gênero, no quanto os direitos dessas pessoas são menosprezados. O que mais a indignava era o desrespeito com que o governo atual trata essas minorias; com esse presidente enlouquecido, com as declarações estapafúrdias que ele faz. O deboche dele com a pandemia, com a vacina, isso a deixava transtornada. Durante a quarentena, ela era rigorosa comigo e com o pai. Patrulhava qualquer movimento nosso para fora de casa, ainda que fosse uma volta no quarteirão, para espairecer, com máscara. Ela sempre foi muito ativa, participava de reuniões, passeatas, e as pessoas demandavam a presença dele nesses eventos.

Ela dirigia?
MCK: Sim. Na autoescola, ficava ensinando o instrutor a respeitar os pedestres e ciclistas. A parar à passagem deles. No fim, quando recebeu a carteira, ela disse: "Toma mãe, pode jogar isso fora". Eu disse: "Deixa disso, filha, você pode precisar para uma emergência". Ela era militante pela redução da velocidade nas marginais, dirigir era algo fora do dia a dia dela.


O que você diria ao homem que atropelou Marina?
MCK: A gente não pode cultivar o ódio. Eu vou carregar uma dor eterna. O condutor daquele carro vai carregar a culpa.
Tenho muita pena dele, porque tem tudo para ser um sujeito infeliz.


Como era a sua relação com ela?
MCK:
A gente se comunicava incrivelmente bem, tínhamos o que chamam de interlocução feminina. Minha filha era parceira, meu ouvido, meu alento. Eu ligava pra ela, falava, falava, falava, ela ouvia, ouvia, ouvia, e no fim dizia: "Tá mais calma, mãe?" Em 2019, a gente fez uma viagem para a Califórnia, só nós duas, foi maravilhoso. Nós éramos mãe, filha, e amigonas.


O que você acha que vai mudar na sua vida?
MCK: Eu não vou permitir que isso me enfraqueça. Vou transformar o luto em luta, honrar a memória da minha filha, continuar a batalha dela. Marina é uma menina da zona oeste de São Paulo, um lugar de gente remediada, ou mesmo rica. Ela tem o marido, que é um menino articulado, leva para a mídia a questão da impunidade, do descaso, fala disso com clareza. E quem não tem? Quero levantar a bandeira de pessoas desfavorecidas, que não têm voz, que perdem filhos nessa situação e veem a tragédia cair no esquecimento.

Como você acha que sua filha gostaria que vocês tratassem o caso dela?
MCK: Marina não era legalista. Não tinha um discurso de punição, mas de construção de uma sociedade mais educada, civilizada. Mas, claro, a gente vai entrar com um processo na Justiça. Em respeito ao feminismo, que ela sempre defendeu, estamos contratando uma advogada -- não um advogado.