Língua também é política: como o vocabulário influencia na polarização
Máscara ou focinheira? Vacina chinesa ou CoronaVac? #ficaemcasa ou #obrasilnaopodeparar? Na internet, parece que falamos coisas diferentes na hora de defender uma visão de mundo, e uma nova pesquisa aponta que isso pode mesmo ser verdade.
Usando os mecanismos das inteligências artificiais que fazem tradução entre diferentes idiomas, pesquisadores da Carnegie Mellon University, nos EUA, descobriram que direita e esquerda usam termos diferentes para debater as mesmas notícias em comentários no YouTube. A pesquisa foi feita em inglês, mas é fácil transpor para o Brasil — além dos exemplos acima, dá para pensar em golpe versus revolução de 1964, ocupação versus invasão de terras, confronto versus violência policial, e por aí vai.
A Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV DAPP) tem diversos estudos que mostram como os discursos online são polarizados. Apesar de não produzir dados específicos sobre o vocabulário usado pela direita e pela esquerda, os pesquisadores identificam que um mesmo tema recebe tratamentos completamente diferentes em contas atreladas a cada lado do espectro ideológico.
"Quando a gente pesquisa um tema específico, como pandemia ou isolamento social, a gente observa qual foco cada espectro vai dar. Se eu penso em pandemia, vai ter essa dicotomia entre 'fique em casa' ou 'o Brasil não pode parar'. Vacina ou cobaia. Posturas diferentes acabam recorrendo a um vocabulário diferente", afirma ao TAB o pesquisador Dalby Dienstbach.
Isso reflete como as discussões nas redes são polarizadas. Dienstbach comenta que os pontos de contato entre os dois lados do espectro ideológico aparecem no início de uma discussão sobre um tema online. Mas, à medida que ele vai se desenvolvendo, os discursos se distanciam cada vez mais um do outro.
E isso não fica restrito à internet. Nossas posições discursivas se refletem nas mais diversas situações do dia a dia — e sempre foi assim, defendem linguistas. Flavio Biasutti Valadares, professor de sociolinguística no IFSP (Instituto Federal de São Paulo), por exemplo, diz que a construção da língua é sempre uma tensão de estabelecimento de poder. "A escolha de palavras e expressões vai caracterizar aquele grupo de alguma maneira."
José Luiz Fiorin, professor aposentado de linguística da FFLCH-USP (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo), disse ao TAB que "todo uso do vocabulário reflete sempre uma visão de mundo". Ele aponta que diferentes grupos desenvolvem diferentes vocabulários, e que indivíduos com visões opostas podem se apropriar desse léxico em seu próprio discurso, subvertendo o valor original das palavras.
Para se ter uma ideia de como essa apropriação da linguagem não é nova, Fiorin cita um discurso de 1965 do militar Castelo Branco, primeiro presidente da ditadura militar brasileira:
Nessa estranha linguagem, aqueles que desejam o desenvolvimento econômico, na moldura de uma sociedade democrática, pregando a cooperação entre as classes e não a luta de classes, e aberto à cooperação internacional para evitar a repressão do consumidor, são chamados 'reacionários' e 'entreguistas'; os que almejam implantar o totalitarismo de esquerda, muito menos benéfico à grande massa trabalhadora do que à oligarquia burocrática do partido, se intitulam 'forças populares de vanguarda', quando não pretendem, com trágica ironia, ser paladinos da 'democracia popular'.
Humberto de Alencar Castelo Branco. Discursos: 1965. Rio de Janeiro: Departamento de Imprensa Nacional.
O texto segue com diversas menções ao léxico da esquerda, por vezes ironizando termos que exaltavam ideias contra a ditadura, e, por outras, buscando ressignificar palavras pejorativas para o regime. "Eu leio o discurso do outro a partir do meu discurso. Portanto, o que num ponto de vista contrário ao meu é positivo, vira negativo na minha leitura, e o que é negativo vira positivo", explica o professor. Isso seria, nas palavras do linguista francês Dominique Maingueneau, uma "interincompreensão recíproca". "Maingueneau dizia que nós nos entendemos apesar dessa inter-incompreensão, que é um fato constitutivo da linguagem", diz o professor da USP.
A língua da gíria
Enquanto algumas escolhas vocabulares são fruto da convivência em determinado grupo — ou mesmo nas bolhas das redes sociais, formadas por pessoas que pensam e se expressam de forma parecida —, outras são mais propositais. As gírias, por exemplo, costumam ser vocabulários próprios de grupos que as utilizam quase como códigos secretos.
Valadares, do IFSP, cita o linguista e autor Dino Preti ao definir, em artigo: "quanto maior o sentimento de união entre os membros do pequeno grupo, tanto mais a linguagem gíria servirá como elemento identificador, que diferencia o falante na sociedade e serve como meio ideal de comunicação, além de também ser uma forma de autoafirmação".
Pense nos adolescentes, por exemplo. As gírias usadas nessa faixa etária ficam bastante restritas a ela. Tanto que causa estranhamento — e vergonha alheia — ouvir um tiozão tentando usar uma palavra da moda. Esse é um exemplo inofensivo, mas há casos em que o vocabulário serve para atacar outro grupo em uma conversa pública. É o caso, por exemplo, de algumas expressões usadas pela comunidade misógina incel, que por vezes usa os ternos "cuié" ou '"cvlher" para se referir a mulheres, e "Grifinória" para falar de alguém da esquerda.
Mas o contrário também é verdade. Em entrevista ao TAB em outubro, Hioló Werreria, indígena Iny e estudante de medicina na Universidade Federal do Tocantins, afirmou que a língua pode ser também uma forma de proteção de um povo oprimido. Há um certo empoderamento em trocar informações em "código secreto" com seu grupo.
Polarização e aproximação
Usado para proteger um grupo ou atacar outro, o léxico é, portanto, arma de batalha. Fiorin lembra que Castelo Branco chegou a dizer que era necessário "fazer uma limpeza semântica no país, acabar com a 'subversão semântica'", cita o professor da USP.
No entanto, ele lembra que a língua se desenvolve em um movimento dialógico, ou seja, pelas contradições entre os discursos. Vale lembrar, portanto, que o contraditório é essencial para a construção do discurso e da própria forma de pensar.
"A formação social na qual estamos inseridos apresenta diferentes posições discursivas, e nossa consciência é formada de posições discursivas que nós vamos incorporando ao longo da vida", explica Fiorin. "Só que eu incorporo uma posição discursiva desde coisas como 'menino não chora'. Desde essas coisas, até uma posição política, uma posição religiosa. Ao receber esses discursos, eu recebo também as relações de contradição entre esse discurso e outros."
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