Topo

O que dá para aprender sobre o Brasil vendo vídeos famosos no YouTube

Alguns dos vídeos que estiveram na lista Em Alta durante os dez dias da pesquisa - Montagem/YouTube
Alguns dos vídeos que estiveram na lista Em Alta durante os dez dias da pesquisa
Imagem: Montagem/YouTube

Luiza Pollo

Colaboração para o TAB

26/11/2020 04h00

Como o brasileiro tem passado tempo no YouTube? Bem, dá para fazer uma grande generalização, em duas partes. Primeiro: gostamos de comédia, Free Fire, música sertaneja e jovens e crianças falando abertamente de suas vidas pessoais dentro de mansões com piso de porcelanato, paredes brancas e grandes jardins com piscina. E, na mesma proporção: futebol. Mais especificamente, Flamengo.

Em 10 de novembro, decidi abraçar uma causa que já imaginava árdua, só não sabia o quanto: assistir aos dez vídeos da seção "Em Alta" do YouTube Brasil por dez dias seguidos. O objetivo era, quem sabe, entender um pouco melhor o que o brasileiro consome na plataforma. Assumi o espírito "é pro meu TCC", respirei fundo e mergulhei no que achei que seria uma série de banheiras de Nutella. Eu estava enganada. Por partes.

Objetivos

Sem grandes pretensões, a ideia era compreender a plataforma que parece querer substituir a TV, oferecendo uma programação aparentemente infinita, montada pelo usuário para ver a hora que ele quiser.

O próprio YouTube conta o placar de sua disputa com a televisão no Brasil e, segundo pesquisas encomendadas por eles, as emissoras abertas têm motivo para sentir ciúme. Nas casas dos brasileiros que veem vídeos online, a caixa preta serve mesmo é para se conectar à internet. Mais de 40 milhões de brasileiros usam a TV para ver vídeos do YouTube, de acordo com uma pesquisa realizada em agosto de 2020. Além disso, o tempo de exibição dos vídeos nesse aparelho cresceu 120% quando comparado ao mesmo mês de 2019.

São 105 milhões de brasileiros conectados à plataforma por mês, então dá para imaginar que os conteúdos mais assistidos por lá podem nos ajudar a espiar um pouco dentro da cabeça do brasileiro. E, de largada, a constatação é a seguinte: brasileiro gosta de ver brasileiro. "É muito difícil ver um criador internacional no Em Alta do Brasil, por exemplo", contou ao TAB Bruno Telloli, Gerente de Cultura e Tendências do YouTube Brasil.

Certos temas já eram de se esperar: futebol, sertanejo, reality shows. Outros, como 15 minutos de pescaria silenciosa ou horas a fio de conversas entre três marmanjos ao vivo, me pegaram de surpresa.

(Primeiro vídeo da lista Em Alta no primeiro dia: 10/11)

Metodologia

Foram dez dias assistindo aos dez vídeos que estivessem disponíveis na seção Em Alta, assim que eu me conectasse. Para tentar manter alguma constância, escolhi assistir aos vídeos em algum momento entre 11h e 17h.

Essa seção que escolhi para zapear reúne vídeos que estão bombando naquele momento, em determinado país. O temido e secreto sistema de recomendações do YouTube tem sido tema de debate nos últimos anos, principalmente depois de ser acusado de facilitar acesso a conteúdos falsos e teorias da conspiração. Aliás, números divulgados em 2019 pela Hootsuite mostram que 70% do que as pessoas assistem no YouTube é recomendação de algoritmo. No entanto, há algumas regras para entrar na lista Em Alta, além de filtros para evitar conteúdos violentos e com linguagem obscena excessiva, por exemplo.

Preferi o Em Alta em vez dos vídeos mais vistos, pois essa segunda categoria é mais estática — reúne recordes de audiência difíceis de bater. Já os da primeira são sempre atualizados e indicam uma tendência de interesse no momento.

Resultados

Ao abrir a lista do primeiro dia, um dado salta aos olhos: o tempo de duração dos vídeos. Estamos habituados a ouvir sobre a falta de paciência do público para conteúdos muito longos — apesar de saber que, quando o tema o interessa, o leitor ou espectador investe alguns minutos a mais para consumir.

Eu nunca chutaria que vídeos de duas, três e até quatro horas de duração bateriam milhões de views. E esse foi logo o caso dos dois primeiros da lista no dia 10: uma transmissão ao vivo da Copa NFA (do jogo online Free Fire) de 3 horas, 6 minutos e 55 segundos, e também o streaming de um episódio do podcast "Flow", em que três homens conversam, comem e bebem em um papo pessoal entre amigos — não fossem os mais de dois milhões de cliques — durante 4 horas, 17 minutos e 21 segundos.

(Segundo vídeo da lista Em Alta no primeiro dia: 10/11)

A tendência se manteve, e em quase todos os dias havia pelo menos um vídeo com mais de uma hora de duração. Em 19 de novembro, por exemplo, quase 200 mil pessoas assistiram à transmissão de Celso Portiolli jogando o game sensação "Among Us", por três horas e meia. Impossível ver todo o conteúdo do Em Alta na íntegra: tirando os clipes de música, mesmo os vídeos mais curtos dificilmente ficavam abaixo de dez minutos.

Quem assiste a esses vídeos? A resposta já foi cantada em samba: eu e a torcida do Flamengo. Os conteúdos com melhores momentos de jogo, treinos completos, novas contratações ou apenas comentários sobre a situação do Mengo são praticamente obrigatórios na lista Em Alta. Peguei uma onda de popularidade do time, claro. A chegada de Rogério Ceni como técnico rendeu notícia quase todos os dias. Todos os conteúdos oficiais da FLA TV traziam sempre apresentador e entrevistados de máscara, considerando o surto de Covid-19 no futebol brasileiro. Outros vídeos reuniam pessoas que ignoram o uso de máscara ou distanciamento.

Canais de torcedores que comentam o desempenho dos times também aparecem com frequência. Segundo Telloli, outro sucesso na plataforma são criadores compartilhando o dia a dia, como a cantora Simone (da dupla Simone e Simaria), que criou um canal em 2020 e está dividindo sua vida com os fãs.

O brasileiro também gosta de ver demonstrações públicas de afeto. Pedidos de casamento e de namoro, anúncios de gravidez e surpresas românticas também chegam ao topo. Tudo isso bem planejado, com o público quase como um cúmplice da surpresa feita para o parceiro ou à parceira do (a) youtuber.

(Segundo vídeo da lista Em Alta no segundo dia: 11/11)

Brasileiro também gosta de uma ostentação. Uma menina de 12 anos exibe a casa para onde se mudou com a família, em um vídeo intitulado "ENTREI NA PISCINA SUJA DA CASA NOVA"; um marmanjo de mais de 30 faz um tour pela mansão que comprou para hospedar os amigos com quem produz lives de jogos; uma jovem exibe a casa de onde vai se mudar após o término de um relacionamento. É um grande "o que fazem, como se alimentam, onde vivem".

Tutorial de maquiagem para superar a bad do fim de um relacionamento, campeonatos de jogos online e clipes sertanejos para curar (ou curtir) a fossa também apareceram em alta aqui e ali durante os dez dias. Notícias, como a agenda do programa "Roda Viva" e debates entre os candidatos à prefeitura de São Paulo também pipocaram, mas timidamente.

Na onda "vida real", a modelo Ana Hickmann e seu marido, Alexandre Correa, compartilham a descoberta e o tratamento do câncer de garganta do empresário, em um vídeo onde Correa revela que as sessões de químio e radioterapia têm sido difíceis. Ambos aparecem emocionados.

O vídeo revelação mais surpreendente foi o de uma garota de 18 anos que descobre estar grávida (em frente à câmera, claro). Sozinha, em um vlog gravado ao longo de vários dias, ela fala primeiro sobre contracepção e revela que esquecia de tomar pílula anticoncepcional. Depois, faz um teste de farmácia e mostra, supostamente em tempo real, a cara de surpresa e desespero ao descobrir que deu positivo. Meio milhão de visualizações em menos de 10 dias. "Eu vou chorar um pouquinho ali no meu quarto. Estou dando risada aqui, mas já sabe, né, minha mãe e meu pai?", diz ela no fim, enquanto faz um gesto de cortar o pescoço.

A invasão de privacidade é flagrante, e me vi comemorando quando a lista do dia era composta de sertanejo, k-pop e Flamengo. Quando comentei que faria esse experimento, um amigo chegou a perguntar, brincando: "tem certeza que você quer encarar o Brasil de frente?".

(Oitavo vídeo da lista Em Alta no segundo dia: 11/11)

O ponto alto veio no oitavo dia (17). Um título sensacionalista me pareceu fora da curva. "A VERDADE TAMBÉM PRECISA SER MOSTRADA", assim, em caixa alta, como costuma ser o caso em boa parte dos conteúdos na plataforma.

Não se trata de um vídeo de teorias da conspiração ou papo político alucinado. Para a minha felicidade (e surpresa), eram 14 minutos de um vídeo de pescaria. O autor filma um passeio silencioso pelo que parece ser um mangue ou um riacho. Ele recolhe lixo preso entre as plantas na água, relaxa e vez ou outra pega um peixe. Os poucos sons que ouvimos são as reclamações sobre a quantidade de plástico, o barulho da água e algumas comemorações como "Que coisa linda no mundo!" ou "Que monstro! Monstro!", quando algum peixe é fisgado. Logo ele devolve os animais à natureza.

Em meio ao oversharing, às casas, looks e maquiagens padrão, em meio à desinformação e às horas intermináveis de streaming, me senti menos sozinha ao ver que, pelo menos 600 mil vezes, outras pessoas também preferiram escapar da realidade espiando a natureza.

(Oitavo vídeo da lista Em Alta no oitavo dia: 17/11)