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Com sucessos sobre facada, vírus e vícios, Tierry faz 'pré-sal da poesia'

Tierry na gravação do DVD em Goiânia: Baiano tem roubado a cena sertaneja - Augusto Albuquerque/Divulgação
Tierry na gravação do DVD em Goiânia: Baiano tem roubado a cena sertaneja Imagem: Augusto Albuquerque/Divulgação

Tiago Dias

Do TAB

16/11/2020 04h01

O melô do momento começa com um sax romântico. Numa pegada que mistura arrocha e sertanejo, o personagem implora para que uma tal de Rita volte. No refrão, o ápice da sofrência: "Volta, desgramada / Volta, Rita, que eu perdoo a facada / Oh Rita, não me deixa / Volta, Rita, que eu retiro a queixa".

Em plena pandemia, "Rita" se tornou uma música de alto contágio. Não sai das rádios e está entre as músicas mais ouvidas em streaming. O temperamento agressivo da personagem também emplacou nas redes sociais, onde o brasileiro parece exorcizar suas desgraças com memes.

Autor da música, Tierry acredita que a música toca a alma do brasileiro no humor e no drama. "Existem várias formas de fazer drama. Tem gente que vai falar que vai se matar, tem música que o cara fala que vai virar morador de rua se a mulher o deixar", exemplifica. "Gosto desses exageros. Sou uma hipérbole ambulante.".

O exagero capturou as atenções no TikTok e já rendeu as mais divertidas dublagens e dramatizações — até os bolos decorados, hits no Instagram, aparecem decorados com o tema de "Rita".

A "facada" em si também está nas resenhas, nos botecos virtuais. Esses dias, Tierry descobriu que sua letra era usada em uma aula de Direito. "Os professores queriam saber dos alunos se, naquele caso, era possível retirar a queixa", ele conta, divertido com a repercussão.

Antes que a coisa desemboque num programa policial, o compositor explica: "A facada tem sentido figurado. Perdoar a facada é perdoar a traição. E queixa é gíria na Bahia. Aqui a gente fala 'várias queixas' quando tem coisas que a gente não gosta nas pessoas."

Só assim para a Rita se safar. "Nesse papo todo, descobri que eu só poderia retirar a queixa se fosse agressão corporal leve."

Tierry diz que é uma mistura da sofrência da Marília Mendonça e a loucura de Rogério Skylab - Augusto Albuquerque/Divulgação - Augusto Albuquerque/Divulgação
Tierry diz que é uma mistura da sofrência da Marília Mendonça e a loucura de Rogério Skylab
Imagem: Augusto Albuquerque/Divulgação

No pré-sal da poesia

Com a saga de Rita, Tierry pode até ser considerado uma revelação, mas o baiano de 30 anos já figura na lista dos maiores hitmakers da geração. Nascido em Salvador e criado em Nilo Peçanha, na chamada Costa do Dendê, sua formação musical é a união de dois universos. No interior, cresceu vendo o avô tocar acordeão, embalado pela discografia de Luiz Gonzaga e Chitãozinho & Xororó. Na capital, pulou muitos Carnavais e integrou o grupo de pagodão baiano Fantasmão, sensação na cidade no final dos anos 2000.

Vivências que fizeram dele uma espécie de coringa na indústria dos hits. Nos bastidores, ganhou o apelido de TieHit. Seja na pipoca do Carnaval ou numa festa de rodeio, você com certeza já ouviu uma música de Tierry.

É ele o compositor dos maiores hits de Carnaval recentes de Ivete Sangalo ("Dançando" e "Pra Frente") e Claudia Leitte ("Cartório", "Baldin de Gelo" e "Taquitá"). E é também dele os versos que embalam a galera sertaneja, seja "100 mil", de Gusttavo Lima, "Os Anjos Cantam", de Jorge e Mateus, ou "Te Assumi pro Brasil", de Mateus e Kauan. "Isso sem contar as músicas que servem para preencher discos", ele observa. O mercado sertanejo o adora e seu novo DVD, "Acertou na Mosca", foi gravado em Goiânia, meca do gênero.

Fantasmão: No ritmo do pagodão baiano, grupo de Tierry foi sensação na Bahia nos anos 2000 - Divulgação - Divulgação
Fantasmão: No ritmo do pagodão baiano, grupo de Tierry foi sensação na Bahia nos anos 2000
Imagem: Divulgação

Como cantor, ele está na estrada desde 2015, mas conta que levou um tempo para encontrar sua própria identidade. Ele cita Chico Buarque, Zezé di Camargo e Carlinhos Brown. "Eu queria ser como esses caras, mas percebi que tinha que criar uma tendência pra mim, senão eu seria só mais um compositor falando coisas bonitas", diz.

Na procura da sofrência certa, estourou com uma música chamada "Cracudo", sobre um cara tão viciado em alguém que não levanta mais nem pra tomar banho. Sabe o fundo do poço?, ele pergunta na música. "Eu tô lá."

E segue, no estilo que o público já reconhece: "Se eu virar cracudo / Eu vou fumar esse seu coração de pedra nem que eu venda tudo / Se eu virar manguaça / Eu vou pegar esse seu coração de gelo e tomar com cachaça."

"Eu chamo isso de pré-sal da poesia, sabe", diz Tierry. "Lá no fundo, eu busco o que ninguém falou ainda. As músicas estão cansadas de falar das mesmas coisas."

A inspiração, ele diz, vem também de dois extremos: uma mistura da sofrência da Marília Mendonça com a loucura do Rogério Skylab.

As músicas de Skylab, cheias de escatalogias e niilismo, como "Matador de Passarinho" e "Dedo, Língua, Cu e Boceta", tocavam tanto quanto o sertanejo e o pagodão baiano nos fones de Tierry. "Sempre assisti às entrevistas dele no Jô [Soares]. Acho ele um gênio incompreendido, é um cara extremamente hilário sem fazer força." Já com Marília, ele lança agora a próxima aposta, "Hackearam-Me" — sofrência com metáforas mais... suaves.

Soro de 51

Quando o Brasil resolveu se fechar dentro de casa para evitar pegar o novo coronavírus, Tierry já cantava ironicamente: "Coronavírus nunca me assustou / Eu já peguei coisa pior e ainda chamei de amor".

"Deveria ter passado álcool gel no peito / E evitado sentimento que acabou comigo / Tem gente que é pior que vírus / Quando ela me traiu em fiquei de cama / No buteco UTI mais de uma semana / Com soro de 51 na veia".

Este verso foi escrito meses antes da pandemia chegar por aqui. "Não achava que ia acontecer tudo isso. Achei que ia rolar algum fármaco, como chegaram a falar da cloroquina ou da ivermectina, que não ia precisar de uma vacina", relembra.

As músicas estouraram, mas ele não pode fazer shows. A quarentena, ele conta, o desafiou emocionalmente. Como alguns brasileiros, ele conta que também se separou durante a pandemia. E como muitos outros, entendeu que está na alma do brasileiro fazer piada desses momentos. "A gente já ri da nossa própria desgraça. É muito isso. Por que não cantar nossa própria desgraça?"