De 15 a 2 mil euros: tênis de supermercado vira objeto de desejo na Europa
Era para ser uma brincadeira de 1º de abril, mas a coisa ficou séria. O tênis da rede de supermercados alemã Lidl, com cores contrastantes e uma logomarca bem grande, virou febre em vários países da Europa.
As prateleiras esvaziaram em poucas horas em lugares como Holanda, Suíça e Irlanda. Como se tratava de uma edição limitada, agora quem deseja um par precisa buscá-los em sites de leilão pela internet, com o preço inflacionado. Parece até mentira, mas no auge da loucura, o tênis chegou a custar 2 mil euros (cerca de R$ 12.500). Nas lojas da rede, custava em torno de 15 euros (cerca de R$ 90).
Quem classificou o preço como "exorbitante" foi o departamento de comunicação do próprio Lidl, rede popular de supermercados. Contudo, não revelou quantos pares foram vendidos, limitando-se a informar à reportagem do TAB que os produtos da "Fan Collection" — que inclui chinelos, meias e camisetas — foram lançados para atender aos desejos dos clientes de forma "democrática e acessível". Questionada se pretende produzir mais tênis ou novos itens, a empresa preferiu fazer suspense: "está sendo analisado", respondeu. Na prática, talvez nunca chegue a ser acessível a todos — e talvez aí esteja grande parte da receita de sucesso do tênis.
"Quando somos avisados que um produto é limitado, acende em nós um senso de urgência. Essa urgência elimina uma segunda etapa de ponderações. Você deixa de considerar coisas como: preciso disso, tenho dinheiro? A decisão tem que ser agora, o que nos deixa mais irracionais", explica Fábio Mariano Borges, professor de sociologia do consumo na ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing). O senso de urgência é o mesmo que leva milhões de pessoas a se apinharem em lojas a cada Black Friday no Brasil e mundo afora.
O fenômeno dos 'prossumidores'
O mais cobiçado calçado da Europa em 2020 começou como uma campanha de marketing do dia da mentira em abril de 2019, quando o Lidl Alemanha publicou um post nas suas redes sociais fingindo que iria ter o tênis à venda, com uma pergunta ao consumidor: você compraria? O tênis de mentirinha, que só existia virtualmente, provocou uma avalanche de comentários, compartilhamentos e pedidos pelo objeto real. Sim, muita gente gostou da brincadeira e estava disposta a comprar.
Em resposta às manifestações, a rede resolveu produzi-los de verdade, em tecido e borracha, para pés de carne e osso. Ainda assim, seguia tratando como uma campanha promocional, "um passatempo nas redes sociais". As primeiras 400 unidades foram sorteadas para clientes alemães. Mais uma vez, o enorme interesse surpreendeu. Alguns dos premiados viram uma oportunidade para ganhar dinheiro e acabaram por colocar os artigos à venda no eBay, com os tais preços.
O Lidl aproveitou a oportunidade e decidiu de fato vender o tênis, assim como expandir um pouco a coleção para fãs, incluindo itens extra e saindo da Alemanha. Os interessados tiveram de esperar. Apenas em julho os artigos começaram a chegar às lojas, para logo desaparecerem.
Até na Finlândia, uma civilizada vizinha do norte, o distanciamento social foi esquecido na disputa por um par. As pessoas que esperaram separadamente nas filas do lado de fora até a hora de os supermercados abrirem, amontoaram-se sem medo da pandemia em frente às prateleiras. Na Espanha, para evitar que a aglomeração de consumidores pudesse elevar ainda mais as taxas de covid-19, o Lidl resolveu vender os tênis exclusivamente pela loja online. Em três horas, esgotaram-se os 2 mil pares.
Enquanto alguns faziam de tudo para conseguir um tênis, outros começaram a alertar para o absurdo da situação e duvidar se toda essa mania pelo produto não teria sido forçada. Os memes com piadas viajaram o continente e as teorias conspiratórias ganharam força. Na Itália, um colunista de jornal chegou a cogitar se as vendas pelos preços exorbitantes não passariam de um esquema para lavagem de dinheiro. Um colunista que escreve sobre comportamento especulou se tudo não seria um golpe de marketing, com os itens sendo vendidos e comprados nos sites de leilão por pessoas ligadas à própria empresa, para elevar o interesse no produto artificialmente. Nas lojas italianas, os tênis se esgotaram na manhã do lançamento.
A última fronteira atravessada pelos estranhos calçados foi Portugal. O produto chegou ao país em 30 de novembro e, embora tenha vendido muito bem, cinco dias depois ainda era possível encontrar alguns números em lojas de bairros mais afastados. Mesmo sem o estardalhaço de outros países, o sucesso é notável, avalia Ivone Ferreira, professora de comunicação estratégica da Universidade Nova de Lisboa. "É interessante, porque os portugueses não se veem em um produto tão estridente. O que aconteceu foi um efeito contágio; os jovens quiseram comprar por brincadeira, por acharem que são ridículos. Ou então, para tentar ter lucro vendendo depois", afirma.
Outra "curiosidade" destacada por Ivone é que todo o frenesi pelo objeto colorido teve pouca participação do Lidl. "Os consumidores que fizeram tudo; eles foram os responsáveis pelo buzz. No Facebook do Lidl Portugal houve apenas um post anunciando o lançamento, que foi compartilhado e comentado milhares de vezes", diz.
A professora explica que esse poder de replicar ou modificar um conteúdo é uma das principais características do relacionamento entre empresas e clientes nas redes sociais. Depois que publicam algo, as marcas perdem o controle sobre o que será feito do seu conteúdo. Podem ser compartilhados, alterados, criticados, virar memes. Por isso que na área de marketing, hoje se fala com frequência em "prossumidor" em vez de consumidor. O termo foi cunhado por Alvin Toffler em seu livro "A Terceira Onda", de 1980, para destacar o papel mais ativo de quem antes era visto como receptor de uma mensagem publicitária.
Por mais absurda que seja a procura desenfreada por um tênis de supermercado popular, a tendência se encaixa com perfeição ao ano de 2020. "Não imaginava que aconteceria, mas faz sentido para um ano distópico como este, em que tudo parece ficção", resume Ivone.
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