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Como uma padaria e seu dono fazem bairro fantasma seguir no mapa de Maceió

Nijauro Joventino Ribeiro, dono da padaria Nossa Senhora da Conceição, no bairro Pinheiro, em Maceió - Carlos Madeiro/UOL
Nijauro Joventino Ribeiro, dono da padaria Nossa Senhora da Conceição, no bairro Pinheiro, em Maceió
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Carlos Madeiro

Colaboração para o TAB, de Maceió

27/12/2020 04h01

São 3h30 da manhã e o despertador de Nijauro Joventino Ribeiro, 79, toca no móvel ao lado da cama. Ele se levanta com calma, toma um café e se arruma para descer à padaria que fica na parte de baixo de sua casa, no bairro do Pinheiro, em Maceió. Às 4h em ponto, ele está lá, colocando o pão no forno.

Essa rotina se repete há 32 anos. Fora o despertar e a sova do pão, o resto da vida do empresário mudou completamente em março de 2018. Após o tremor de terra sentido em toda a região, rachaduras em casas e ruas começaram a surgir.

O problema cresceu sem controle. Laudos apontaram risco de viver no local, e no final de 2019 as quatro filhas e a esposa de Nijauro deixaram a casa onde viviam todos juntos. Hoje, ele mora só — é a única pessoa num raio de 400 metros.

Apenas o prédio com a casa e a padaria seguem mantendo Pinheiro no mapa. O lugar virou um bairro fantasma. Muitos temem até passar de carro por ali.

Pela padaria e pelo sustento da família, Nijauro decidiu ficar morando em área de risco. "Se eu sair daqui, fica ruim para vir às 4h assar o pão. É deserto, não tem mais segurança. Tenho de ficar para cuidar das coisas. São cinco famílias que dependem daqui, não vou fechar", diz.

Sem vizinhos, cercada de casas sem janelas e destelhadas, em prédios abandonados, a panificação Nossa Senhora da Conceição é aberta todo dia às 5h30 da manhã.

"A maioria da clientela é de moradores que viviam por aqui e voltam ao local para comprar. Eles passam no trajeto de casa ou trabalho e param para comprar", afirma.

Os quatro funcionários começam a chegar a partir das 6h30. "O pão que asso logo cedo é feito pelo padeiro, que deixa pronto no dia anterior", explica Nijauro.

Com os moradores expulsos da região, as vendas da padaria desabaram. Nijauro assava 2.000 pães de manhã; hoje vende 500. À tarde eram mais 3.500, hoje não passam de 1.500. O pouco movimento é denunciado pelo pequeno número de alimentos no balcão e nas prateleiras quase vazias.

À moda antiga

Nijauro é daqueles comerciantes à moda antiga: fica sempre ali atrás do balcão e atende os clientes que chegam. Muitos já o conhecem e são chamados pelo nome. É dono mas faz todo tipo de função: pega e pesa o pão, corta frios e serve quem quer comer ali mesmo.

Nijauro Joventino Ribeiro, o padeiro do bairro do Pinheiro, em Maceió - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Nijauro e o Gilvan Lima, o vendedor que fornece leite há 26 anos para a padaria Nossa Senhora da Conceição, em Pinheiro, Maceió
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Gilvan Lima, o vendedor de leite que atende Nijauro há 26 anos, deixou por lá cinco sacos de leite de um litro cada um, no dia da reportagem de TAB. "Eu deixava 40 litros por dia, mas agora são cinco. É tão pouco que pego tudo com uma mão só."

Nijauro está ali desde 1988. Em nove meses, construiu essa padaria; em um ano ergueu a casa, na parte de cima. Em 1989 foram morar na casa: ele, a esposa e os cinco filhos. Dez anos depois, o único filho homem saiu de casa para se casar. Todos os demais seguiram juntos até o final de 2019.

A esposa, que adoeceu depois do afundamento do bairro, mora hoje com as quatro filhas em um apartamento na parte baixa de Maceió. "Hoje minha mãe vive à base de remédio, dorme mais que fica acordada", conta o filho do empresário, Nijauro Júnior.

Desde 2018, a casa e a padaria começaram a apresentar rachaduras. As maiores rachaduras estão na garagem, onde duas das paredes estão completamente rachadas — as fendas passam de 1 cm. "Essa calçada aqui arriou, teve de ser refeita", diz Júnior.

Sem férias

Em 32 anos na padaria, Nijauro nunca tirou um dia de férias. Nem na pandemia ele fechou. "Só aos domingos me divirto quando desço [para a parte baixa da cidade encontrar a família] e tomo uma cervejinha para relaxar a cabeça", conta.

Hipertenso, ele caminha a passos lentos: numa cirurgia, por causa de diabetes, perdeu parte dos dedos do pé.

"Essa é minha mansão", conta Nijauro, mostrando a casa com mais de 100 m² e o que havia em cada um dos cômodos. Ficaram apenas os utensílios de cozinha, dois sofás antigos e uma TV velha de tubo, além dos móveis de seu quarto.

Na varanda, Nijauro olha para o entorno com tristeza. As ruas antes movimentadas hoje estão desertas, muitas delas já interditadas para trânsito. Não há mais vizinhos a fazer companhia, gente sentada para conversar na mesa de plástico, na entrada da padaria.

"Ele é durão, mas quando conversou com o vizinho um dia desses, chorou de tristeza", diz o filho.

Nijauro Joventino Ribeiro, o padeiro do bairro do Pinheiro, em Maceió - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Nijauro Joventino Ribeiro na varanda de casa, em Pinheiro, Maceió
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

O filho do padeiro

Desde 2018, é Nijauro Júnior quem administra a padaria. Ciente da idade avançada do pai, ele fez um acordo de arrendamento. "Pago R$ 2.500 por mês a ele", diz.

Segundo Júnior, o valor proposto pela Braskem para que saiam não cobre sequer os custos necessários. A proposta previa R$ 10 mil para o transporte de tudo e R$ 1.000 para ajudar no aluguel.

"Só pra desmontar o maquinário aqui, fazer a mudança, pagar as indenizações dos funcionários e reformar um prédio seriam necessários R$ 400 mil", conta Nijauro Júnior.

Apesar de a padaria ser hoje o sustento da família, Júnior diz que a família já insistiu muito para que o pai saísse dali. "A gente sabe do risco, e venho também por isso. A padaria hoje fecha às 19h, mas antes ia até mais das 20h. Agora fica deserto, não dá mais pra confiar", explica.

Antes do problema do solo, a padaria foi assaltada 11 vezes. A casa no primeiro andar também já foi alvo de bandidos. Numa madrugada, entraram e roubaram uma arma de um policial da família que dormia no local. "A região está abandonada. Você não vê um carro de polícia passar. Parece que é pra forçar a gente a sair."

Nijauro Joventino Ribeiro, o padeiro do bairro do Pinheiro, em Maceió - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Nijauro Joventino Ribeiro mostra a rachadura na parede de casa, em Pinheiro, Maceió
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Exploração e recompensa

O problema de afundamento e rachaduras começou a ser percebido no bairro Pinheiro após o tremor de terra de 3 de março de 2018. A partir de então, muitos estudos provaram que o chão estava realmente afundando Pinheiro e em três outros bairros da capital alagoana: Mutange, Bom Parto e Bebedouro.

A causa provável para o afundamento foi a mineração: por quatro décadas, a região era explorada para a extração de sal-gema (matéria-prima utilizada na fabricação de soda cáustica e PVC). Minas fechadas no local há anos começaram a ceder e causaram um afundamento lento mas constante do solo, em vários pontos da cidade.

Responsável pela extração, a Braskem reconheceu o problema e fez um acordo para indenizar moradores da região.

Segundo a Prefeitura de Maceió, a área de risco atualizada este mês inclui cinco bairros (há imóveis atingidos no bairro do Farol) e 10 mil imóveis, afetando diretamente 40 mil pessoas — que deixaram ou terão de deixar suas casas ou prédios comerciais.

Nijauro Joventino Ribeiro, em frente à padaria Nossa Senhora da Conceição - Carlos Madeiro/UOL - Carlos Madeiro/UOL
Nijauro Joventino Ribeiro, em frente à padaria Nossa Senhora da Conceição
Imagem: Carlos Madeiro/UOL

Indenização esperada

Ao fim da visita do TAB, Nijauro se emociona. "Olha, dá muita tristeza. Mas se for pensar muito, é capaz de eu ter uma depressão. Porque olho para o patrimônio que construí?", diz, antes de fazer uma pausa longa.

Em nota enviada à reportagem, a Braskem não comentou o caso específico de Nijauro. Afirmou que na área de desocupação existem cerca de 1.000 pontos comerciais, e que mais de 90% foram realocados.

"Um grupo especial, de técnicos sociais, está buscando ativamente os empreendedores, inclusive por meio dos seus advogados, para entender as necessidades específicas deste grupo e assim garantir a sua realocação", diz a empresa, citando que o programa oferece "apoio à realocação e, dentre outras ações, faz a mudança dos equipamentos das empresas".

O Programa de Compensação Financeira e Apoio à Realocação, em um ano de operação, já realocou 8.515 famílias, e pagou R$ 358 milhões em indenizações, auxílios financeiros e honorários de advogados.