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Do hype ao 'podrão', paixão por fritadeira sem óleo ganha ares de seita

A tatuagem de Airfryer do designer e podcaster Marko Mello - Arquivo pessoal
A tatuagem de Airfryer do designer e podcaster Marko Mello Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Sahd

Do TAB

28/12/2020 04h00

Na edição de 2010 de uma importante feira de eletrônicos em Berlim, a Philips apresentou ao mundo a Airfryer — um aparelho de cozinha com dimensões ovais de 35 centímetros, pesando pouco menos de 6 quilos, que permitiria aos consumidores fritar uma gama inumerável de alimentos usando a tecnologia Rapid Air. A grande sacada do invento era cozinhar o que quer que fosse com até 80% menos gordura.

O anúncio causou frisson no país da coxinha e do cento de salgadinho de festa. Assim, a Airfryer desembarcou em terras brasileiras com pompa e circunstância em 2011. Na ocasião, só quem tivesse R$ 1.100 de bobeira na conta corrente ou disponível no limite do cartão de crédito — quem sabe, no cheque especial — poderia experimentar a promessa da alimentação saudável que não engordura o fogão ou os azulejos da cozinha.

Como quase tudo que vem do Hemisfério Norte para cá, a fritadeira sem óleo virou um sonho de consumo da classe média e um símbolo de status emoldurado na pia de uns poucos sortudos.

Dez anos se passaram e a máquina já é fabricada por diversas marcas no Brasil. Hoje, uma fritadeira sem óleo pode ser adquirida por módicos R$ 300. Foi justamente no auge de sua fama que o eletrodoméstico virou instrumento de polarização, tal qual Anitta, o presidente da República e a vacina contra a covid-19.

Philips AirFryer - Divulgação - Divulgação
Philips AirFryer
Imagem: Divulgação


Bom dia, grupo!

A febre da fritadeira sem óleo no Brasil movimentou dezenas de grupos de Facebook. Nesses ambientes, imperava a troca de saudações, memes e emojis de aplausos para dicas de receitas e fotos de quitutes cozidos no aparelho.

Um breve passeio pelos grupos de entusiastas mostra que, em se tratando de Airfryer — original ou genérica —, não há limites para sonhar. Com pequenas gambiarras (como martelar formas de pudim para fazê-las caber na gaveta da fritadeira), os usuários foram longe demais e passaram a cozinhar absolutamente tudo ali dentro, de bolos elaborados a donuts, passando por torresmo e empanados. Estudos recentes indicaram que a fritadeira serve inclusive para higienizar máscaras N95 — a informação se espalhou feito pólvora nas comunidades.

Foi nestes grupos, também, que alguns membros se mostraram insatisfeitos com a falta de cor e frescor em suas batatas fritas, pastéis e coxinhas. Por ali, o conselho geral é relativizar a promessa de cozinhar sem óleo e adicionar azeite a algumas receitas para que o resultado não seja uma comida esturricada e sem sabor.

Até que as tretas começaram. Em uma das comunidades, uma usuária foi inquirida e acusada de meliante por postar um peixinho à milanesa suspeito, de aparência muito boa para ter sido preparado na fritadeira sem óleo, como reportou Luiz Guilherme Moura, do Buzzfeed Brasil.

"A reportagem sobre a briga do peixe frito só serviu pra encher a porra do saco, porque lá no grupo a gente se sentia abraçado pelas tiazinhas dando bom dia e postando receitas", opina o designer e podcaster Marko Mello, 39, que também se apresenta, de forma debochada, como embaixador extraoficial da Airfryer no Brasil.

Mello conta, um pouco pesaroso, que nunca recebeu um tostão de marca alguma por ser entusiasta de fritadeiras elétricas, apesar de produzir conteúdo quase diário sobre o assunto há sete anos. O designer usou a mesma máquina surrada durante cinco anos e, há dois, fez um upgrade (pago do próprio bolso) para um aparelho com capacidade de 4 litros.

Se você já recebeu, pelo WhatsApp, algum áudio de humor que comece com "Bom dia grupo, vamo acordar" — seguido por palavras doidas que parecem proferidas pela voz do rapper Mano Brown —, já escutou a voz de Mello por aí.

Durante a pandemia, o designer fez várias tatuagens. Uma delas foi de uma Airfryer, "para pontuar esse momento da minha vida em que me tornei referência do assunto na internet, já que a fritadeira tá na boca do povo. Mas também para simbolizar o quanto a máquina ajuda na vida da pessoa solteira, do pai que tem que fazer a comida pra criança que gosta de fritura, da família brasileira. Como diz meu amigo [também designer e podcaster] Oga Mendonça, a Airfryer traz autonomia. Você coloca o alimento com um pouquinho de azeite lá dentro e já era, estourou."

Por outro lado, Mello aplicou o adesivo "me paguem" em sua fritadeira de uso pessoal para não fazer propaganda de marcas sem ser comissionado.

'Uma desgraça para lavar'

Por influência do pai e do irmão — que compraram fritadeiras sem óleo em valor promocional de R$ 500 num supermercado —, Mello se convenceu de que a fritadeira tinha potencial para ser o futuro da gastronomia. Fez o projeto "um pudim por semana", cozinha para o filho quase diariamente na máquina e é defensor incondicional do que chama de "ressignificação da pizza amanhecida", garantindo que a massa fica como recém-saída do forno à lenha após 5 minutos de aquecimento na fritadeira. A reportagem de TAB atesta e dá fé: a fritadeira ressuscita pizzas com aparência triste de forma milagrosa.

Ele participou do episódio 300 do Braincast, "Airfryer, a NASA na sua cozinha (ou não)", que reuniu apaixonados e desconfiados da máquina para debater a louca obsessão de tanta gente pela fritadeira. Termos como "seita", "batismo", "catequizar" e "espalhar a Palavra" foram recorrentes no encontro. O que mais irrita os fiéis da Airfryer, aliás, é a comparação com fornos elétricos.

Entre adoradores e detratores do aparato, incrivelmente, existe um consenso. Limpar o interior da fritadeira exige foco, força e fé. Não se pode usar água fervendo ou esfregá-lo com a parte verde da bucha de lavar louça, porque qualquer uma dessas coisas acabaria com o Teflon do equipamento. Nesse ponto, Mello é sucinto: "é uma desgraça para lavar".

São muitos os usuários que se valem de truques para não precisar higienizar a bandeja engordurada, que vão da inserção de formas de silicone manualmente picotadas na gaveta (para que o ar quente passe) ao uso de papel alumínio no fundo do recipiente — o favorito da "seita".

Nunca vi nem comi

Imbuída da missão de desvendar por que um eletrodoméstico mexe tanto com os ânimos dos comensais, a reportagem de TAB buscou opiniões de chefs renomados sobre o equipamento.

A assessoria de Paola Carosella alegou que a chef não conseguiria responder porque estava com a agenda lotada de compromissos. A equipe de Érick Jacquin achou melhor não entrar nessa seara porque ele é embaixador de uma marca de eletrodomésticos. Já o Instituto de Artes Culinárias Le Cordon Bleu São Paulo informou que seus profissionais não seriam capazes de opinar, porque fritadeira sem óleo não faz parte dos recursos utilizados para preparar alimentos por ali.

Rodrigo Oliveira, 40, chef do restaurante paulistano Mocotó, rompeu o silêncio ensurdecedor da categoria e garantiu que não torce o nariz para o equipamento. "Temos um modelo simplezinho em casa, é um ótimo complemento na cozinha." Ele confessa que tentou fazer batata frita e polpetone na máquina e concluiu que a gordura acaba fazendo falta, "mas para uma fritura se regenerar, putz, é maravilhoso. Quando a gente pede lanche com fritas pelo aplicativo ou quando trago dadinho de tapioca para casa, funciona muito bem para ressuscitar a comida".

Questionado se há preconceito contra a fritadeira no circuito da alta gastronomia, Oliveira prefere não cravar que a máquina consiga resultados primorosos substituindo a fritura tradicional. Talvez para evitar o cancelamento pelos membros, ele lembra que tem cinco filhos — e que não cabe comida para todo mundo na pequena máquina.

O chef Rodrigo Oliveira, dono do restaurante Mocotó - Divulgação - Divulgação
O chef Rodrigo Oliveira, dono do restaurante Mocotó
Imagem: Divulgação

Olá, friends...

Enquanto os chefs passam ao largo das oportunidades de negócios que receitas na Airfryer podem oferecer, um homem visionário enxergou um nicho na popularidade da máquina e, sabendo que não era impossível, foi lá e fez.

Conhecido também como o "Olá Friends", o paulistano Mauricio Rodrigues, 33, já tem 12 livros de receitas publicados — seis deles são de conteúdo exclusivo para fritadeiras sem óleo — termo que ele diz ter inventado porque não podia usar o nome "Airfryer" quando começou seu blog sobre o assunto, há sete anos. Hoje, Rodrigues tem 2 milhões de acessos mensais no blog e um canal de YouTube com mais de 650 mil inscritos e 25 milhões de visualizações.

O empreendimento na web começou quando Rodrigues comprou uma máquina de fazer pães e não encontrava conteúdos sobre o assunto na internet. Decidiu fazer, ele próprio, um blog com dicas e receitas. O blog explodiu por causa da escassez de conteúdo. Ele lembra que a "pãodemia" já está em sua quarta onda no Brasil: a moda de fazer pão caseiro vai e volta por aqui, segundo o especialista.

Usando o mesmo raciocínio de criar conteúdo raro na internet brasileira, Rodrigues reproduziu o milagre econômico da máquina de pão falando sobre as fritadeiras sem óleo e, hoje, faz dinheiro em parcerias com marcas diversas de gadgets culinários.

"Sempre morei em apartamento e odiava fazer fritura, porque aquele cheiro fica no apartamento por uma semana, não importa o que a gente faça. Então eu corri pra testar a Airfryer. Testei ovo cozido, torresmo e peixe, que também deixa muito cheiro na casa." Rodrigues é, além de homem de negócios perspicaz, um homem de olfato sensível. Ele mencionou a questão dos odores de frituras diversas vezes ao longo da conversa com a reportagem do TAB.

Sobre a esquiva do pessoal da alta gastronomia quanto ao equipamento, o publicitário é categórico. "Há preconceito quanto a certos eletrodomésticos. Dá para executar com a mesma maestria, na fritadeira, as receitas clássicas. Meu trabalho é simplificar mesmo aquelas que têm muitos passos complicados para que todos consigam fazer. Alguns chefs podem não testar a fritadeira por receio de fugir do tradicional. Eu quero que cada pessoa possa ser um chef." Rodrigues se despede da reportagem com firmeza: "Se tiver qualquer dúvida, vou dar a resposta correta e exata sobre isso".

O designer Marko Mello — que, ao contrário de Rodrigues, não fez fortuna com o filão da Airfryer — diz que é fã do "Olá Friends", mas faz ressalvas. Considera algumas receitas "truqueiras", como a da torrada na fritadeira ou chips de salame, que consiste em fatiar o embutido bem fininho e deixar na máquina por alguns minutos.

Mello se despede do TAB um pouco mais inseguro do que Rodrigues. "Só não me façam parecer um paspalho que vive em função da Airfryer! Não quero ficar conhecido como 'Marko Mello, o incel das fritadeiras que desistiu da vida e só pensa qual será o próximo alimento a fritar sem óleo'."