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Médica da linha de frente faz dupla jornada garimpando achados do Airbnb

A médica Larissa Pereira criadora da página Achados do Airbnb, que auxilia os visitantes com dicas sobre os tesouros escondidos no aplicativo   - Fernando Moraes/ UOL
A médica Larissa Pereira criadora da página Achados do Airbnb, que auxilia os visitantes com dicas sobre os tesouros escondidos no aplicativo Imagem: Fernando Moraes/ UOL

Jacqueline Lafloufa

Colaboração para o TAB

20/02/2021 04h00

Um caminhão com cilindros verdes sai do estacionamento de um hospital na área central da capital paulista. A cena, que antes passaria despercebida, agora faz lembrar da importância do oxigênio hospitalar, que tem feito falta na luta contra a covid-19. Essa não era a cena que tinha imaginado quando fui investigar quem comandava a badalada conta Achados do Airbnb, que coleciona no Instagram mais de 120 mil seguidores deslumbrados com uma seleção de lugares idílicos para se isolar — e relaxar — durante a quarentena eterna do último ano.

Pouco depois da saída do caminhão, avistei a chegada de Larissa Pereira, médica de 32 anos que é a proprietária do Achados. O jaleco em mãos era o único símbolo que a diferenciava de qualquer outra jovem de classe média que cruzasse aquelas ruas. Esguia e alta, uma mochila cheia de livros nas costas, a catarinense de Joinville vestia camiseta, jeans pantacourt e tênis quando encontrou com a equipe do TAB na sua lanchonete favorita da região, onde toma sucos naturais nas pausas entre um paciente e outro.

Larissa Pereira deixa o hospital onde trabalha para conversar com a reportagem do TAB - Fernando Moraes/ UOL - Fernando Moraes/ UOL
Larissa Pereira deixa o hospital onde trabalha para conversar com a reportagem do TAB
Imagem: Fernando Moraes/ UOL

Quando a OMS declarou a pandemia de covid-19, em março de 2020, Larissa acabara de iniciar o R2 — segundo e penúltimo ano da residência médica de otorrinolaringologia, que atende enfermidades na região dos ouvidos, boca e nariz. Assim como tantos outros recém-formados, ela foi deslocada para atender pacientes com covid-19 em uma ala emergencial do hospital.

"A cada dia era uma informação nova que a gente recebia: no primeiro dia, faríamos somente a triagem dos pacientes. Depois, íamos atender no pronto atendimento, na enfermaria, e chegamos até na UTI. Foram várias ansiedades, porque a gente ainda entendia pouco do vírus. Eu tinha medo", rememora a médica, pontuando as frases com leves suspiros que refletem a angústia que a lembrança ainda traz.

Apesar de admitir o impacto físico e psicológico de cuidar da saúde das pessoas em um momento tão caótico, Larissa não parece traumatizada. A impressão de um certo descolamento da realidade alarmante que se percebe no noticiário parece quase uma dessensibilização, mas faz sentido com a jornada intensa trilhada pela residente, que já cuidou de covid, já pegou covid e hoje se mostra aliviada por ter sido vacinada. "Foi uma época triste, mas aprendi muito", resume sobre o período, que ficou no passado. Hoje, ela está de volta às funções de otorrino, no último ano da residência.

Foi para espairecer da pressão que a pandemia que havia trazido à sua residência que a médica se permitiu o impulso de criar a conta no Instagram, dedicada a garimpar casas de temporada charmosas e isoladas disponíveis na plataforma. A princípio, o objetivo era muito pessoal: ela queria encontrar lugares remotos onde pudesse descansar da rotina de médica da linha de frente. Estava passando as horas vagas quarentenada em casa.

"Eu quero uma casa no campo..."

Mesmo exercendo a profissão tradicional, Larissa — que também se graduou em odontologia — reflete o retrato de uma geração com múltiplas habilidades e interesses. Ainda com a mochila de livros nas costas, ela diz que a dedicação exigida pela carreira de médica não a assustou, só que dificilmente os livros poderiam tê-la preparado para o caos de 2020. Na pandemia, a residente enfrentou turnos cansativos e viu colegas sucumbirem à exaustão física e mental. "De uma turma de seis médicos, vi dois serem afastados por ansiedade. Entre sinais, que são o que a gente vê, e sintomas, que são o que você sente e conta para o médico, muitas pessoas tiveram os dois", descreve.

Para evitar o burnout, Larissa buscou paz nos lugares-comuns dos primeiros meses da pandemia: começou a fazer yôga, comprou facas novas para aprender a cozinhar, decorou a casa com plantas e, por fim, passou a planejar "escapadinhas" da capital paulista. "O que mais me incomoda é que não consigo ver o céu. Tu vai nas redes sociais e vê outras pessoas postando aquele céu, e eu pensava: 'Ah, também quero ver!'. Parece bobo, né? Mas queria ver as cores mudando, o céu de outono, de primavera", relatava ao gesticular para cima com uma das mãos, enquanto a outra se mantinha no volante da sua SUV, no caminho do hospital para casa. "E o meu apartamento é bem legal, mas eu só tenho vista para outros prédios", concluiu, decepcionada.

Ciente da ambiguidade entre o dever de se isolar e a vontade de ver o céu, Larissa emendou plantões para criar finais de semana estendidos, que permitiam viajar até alguma casa isolada, com vistas para o horizonte. Foi então que ela teve a ideia de procurar por opções de aluguel de temporada.

O foco de Larissa era exatamente o tipo de propriedade que disparou em procuras na plataforma desde o início da pandemia: casas inteiras, no campo e em cidades menores de praia, que ficam a até 300 km dos centros urbanos. São percursos que podem ser feitos de carro e acomodações que permitem manter o isolamento. Os "achados" de Larissa ficaram famosos entre os amigos, que pediam recomendações de onde ficar com base na seleção da médica.

Depois de um punhado de indicações, um colega sugeriu exibir a coleção de achados em um perfil no Instagram, para que outras pessoas pudessem aproveitar as sugestões. "Gostei tanto da ideia que criei a conta assim que cheguei em casa", disse enquanto se acomodava no sofá do seu apartamento, em um prédio da Vila Olímpia, depois de tirar os sapatos e oferecer café e água para a reportagem.

Valorização dos achados

Assim como muitos "empreendedores do acaso", que de repente se veem com uma boa ideia em mãos, Larissa não parece ter pensado em questões de marca ou plano de negócios. Simplesmente saiu postando do seu jeitinho, tornando públicos os locais em que estava de olho para se refugiar da realidade pandêmica. Rapidamente, ela foi surpreendida pelo sucesso da ideia. O primeiro achado, em julho de 2020, mostrava um chalé em São Francisco Xavier, distrito turístico no Vale do Paraíba. Comportando apenas dois hóspedes, a propriedade tinha Wi-Fi, mas não recebia animais. "Nem cheguei a visitar esse local", confessa. Na época, a diária média era de R$ 793. Hoje, menos de um ano depois, o mesmo imóvel custa R$ 1.389 por noite — quase o dobro de quando foi destacado como um achado.

Enquanto os números do contágio da covid-19 no Brasil iam estabilizando, a conta do Achados de Larissa só viralizou. A quantidade de seguidores que a empreitada de Larissa angariou tem exigido da criadora mais organização e cuidado com o hobby, que aos poucos se transforma em fonte de renda extra. Desde que descobriu que poderia se tornar uma associada do Airbnb, a médica recebe uma pequena porcentagem das diárias como comissão pelas reservas concretizadas com os links do Achados. Questionada sobre o quanto faturou até agora, ela desconversa. "Em alguns meses, consegui R$ 200, em outros recebi quase R$ 5 mil", revela, destacando a inconstância dos ganhos.

A médica Larissa Pereira em sua casa, na Vila Olímpia, em São Paulo - Fernando Moraes/ UOL - Fernando Moraes/ UOL
A médica Larissa Pereira em sua casa, na Vila Olímpia, em São Paulo
Imagem: Fernando Moraes/ UOL

Não é um negócio milionário, mas já chegou a superar o salário de otorrino residente. Contudo, ela garante que os lucros estão sendo reinvestidos na criação de um site próprio, desenvolvido com o apoio da irmã mais velha. "Vamos criar um site que ajude as pessoas a encontrarem seus achados sem precisar ficar rolando a página", explica Mariana, que traz o conhecimento de administradora para ajudar na gestão do empreendimento da caçula.

Sem experiência empreendedora, ela tem se desdobrando para ajudar Larissa a desenvolver um pensamento de negócios que permita conciliar as carreiras de médica e de empreendedora. "Quando disseram que a Larissa poderia abandonar a medicina por conta do Achados, meu pai ficou bravo. Já avisei que ele tem que estar preparado para caso isso venha a acontecer", disse Mariana entre risos nervosos, transparecendo um certo receio de ver a irmã abandonar mais uma carreira em prol de um sonho.

Questionada se deixaria a medicina para se dedicar ao Achados, Larissa chega a titubear, mas não afasta a medicina de si. "Sou médica, sempre vou ser médica, isso faz parte de mim", defende, sem conseguir esconder ou negar o entusiasmo de ver o hobby de quarentena se transformar em negócio. Talvez percebendo essa ambivalência, ela logo incorpora a um atrevimento bem característico das novas gerações e defende que não precisa escolher entre uma coisa e outra. "Ainda estou me descobrindo, e não acho que preciso escolher entre uma carreira e outra. Estou empolgada em descobrir essas duas carreiras juntas."