Em São Paulo, 2º maior banco de cérebros do mundo recebe de atletas a bebês
Mesmo em tempos com tanta manipulação de consciências, causa um frio na espinha ver "a sede da personalidade" sair de uma tupperware, ser fatiada em bifes de um centímetro de largura e parar em uma bandeja. Mas tudo isso acontece em nome do progresso da ciência e do estudo, mais que necessário, da demência humana.
Em vida, o zagueiro Bellini foi o primeiro capitão a erguer a Copa do Mundo com as duas mãos. Isso aconteceu após a vitória brasileira em 1958 e se repetiu a cada edição desde lá. Após morrer, ele se eternizou com outro gesto: concedeu seu cérebro e contribuiu para a pesquisa da encefalopatia traumática crônica, doença neurodegenerativa que acomete parte dos atletas de esportes violentos.
Bellini foi um dos cerca de 5.000 doadores que ajudou a formar o segundo maior acervo mundial de encéfalos em um só local — 2.000 estão congelados atualmente para estudos futuros. E esse tesouro científico, único no Brasil, está atrás das paredes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
A Universidade de Harvard (EUA) ostenta o mais extenso "brain bank" do planeta, com mais 7.000 cérebros colecionados desde 1978. Nos Estados Unidos e Europa, há redes com milhares de encéfalos, mas eles estão distribuídos em dezenas de instituições. Um exemplo é o NACC (National Alzheimer`s Coordinating Centers), que dispõe de um total de 13 mil, divididos em 27 unidades pelo território norte-americano.
A coleção da USP começou em 2005 e cresceu rapidamente porque a universidade administra o maior centro de autópsias do mundo, o SVOC (Serviço de Verificação de Óbitos da Capital), responsável por emitir os atestados às pessoas que morreram de causas naturais na metrópole paulista.
"Temos um time bem treinado para explicar a importância da pesquisa ao abordar as famílias. A aceitação é de 70%, muito acima de outros países. Por exemplo, na Austrália, com campanha pública para doação, não chega a 40%", conta ao TAB a neurocientista Renata Paraizo, coordenadora do biobanco.
Os familiares respondem questionários sobre histórico de doenças, memória, mobilidade, funcionalidade, transtornos psiquiátricos, classe social e econômica dos doadores Com essas informações, o cérebro é classificado, e a ideia é ter a maior variedade possível de encéfalos — sadios e doentes.
Mente fria e calculista
O cérebro é mais que um órgão: é você. Afinal, o que lembramos, sentimos e pensamos são impulsos elétricos que percorrem essa massa fofa e acinzentada que pesa um quilo e meio. Após deixar a caixa craniana, onde flua em 150 ml de liquor que o deixa bem mais leve, o cérebro doado tem dois destinos diferentes.
Para pesquisas bioquímicas e celulares, o hemisfério direito vai para um dos cinco freezeres da faculdade, com temperatura de - 80 °C. Já o hemisfério esquerdo vai para o formol, onde se banha por cinco dias antes de ser separado em 13 áreas diferentes. Depois, elas são mergulhadas em álcool e parafina, e viram lâminas para que os tecidos sejam observados pelo microscópio.
A parte a ser congelada é distribuída em 50 tubos, depositados em uma caixa branca. A outra vai para tupperwares distribuídos em uma estante antes de serem estudados. Já os cérebros laminados são catalogados em gavetas de um antigo arquivo metálico.
Anteriormente, as mentes ficavam submersas no formol por duas semanas, mas tanto tempo eliminava da amostra o rastro de proteínas — as pesquisas recentes apontam, cada vez mais, o depósito delas em determinadas áreas do cérebro como causa de doenças como Alzheimer e Parkinson.
Suco cerebral
Se até as ideias envelhecem, imagina os cérebros. A média de idade dos cérebros da FMUSP é de 70 anos. O mais velho é de uma pessoa de 107 anos. O mais novo de um bebê de poucos dias de nascimento.
O banco da USP foi criado para pesquisar sobre o envelhecimento da cabeça e só recebia doações, até 2013, de pessoas falecidas com idade superior aos 50 anos. A partir daí, começou a coletar encéfalos de maiores de 18 anos. Em 2019, incluiu seis crianças e ampliou os estudos para o desenvolvimento cerebral.
Uma das principais pesquisas com a qual o banco colaborou foi a que determinou que o cérebro humano adulto tem 86 bilhões de neurônios, em uma parceria com ao laboratório chefiado pelo médico Roberto Lent, da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) — antes, havia teorias que apontavam até um trilhão de células dentro da cachola.
Para fazer a contabilidade, os pesquisadores misturam a massa cerebral com um detergente e fazem um "suco", onde são contados os neurônios. Atualmente, os estudos caminham para entender as mudanças estruturais entre cérebros das diversas idades. Há também investigações comparativas com cérebros de outros primatas para compreender as diferenças.
Outra descoberta importante, feita pela própria USP, precisou de 675 amostras para demonstrar que pessoas que estudam têm cérebros mais saudáveis e, surpreendentemente, podem funcionar mesmo sofrendo doenças degenerativas como o Alzheimer.
Comparando cérebros de pessoas com a mesma idade e o mesmo grau de Alzheimer, o professor descobriu que aqueles com mais escolaridade não apresentavam sintomas de demência em vida, segundo as entrevistas familiares, enquanto aqueles que mal frequentaram o ensino primário tinham fortes manifestações.
Cabeçadas da vida
Boxeadores, pilotos de automobilismo, lutadores de MMA e jogadores de rúgbi ou de futebol americano estão entre os doadores para bancos de cérebros pelo mundo. A ideia é saber o efeito de tantas pancadas na vida profissional.
No caso de Bellini, havia em vida um diagnóstico de Alzheimer, a forma de demência mais comum no mundo. Depois da análise de seu encéfalo, constatou-se que ele, na verdade, sofria de encefalopatia traumática crônica depois de tomar tantas cabeçadas e pancadas para defender o São Paulo, o Vasco, o Atlético Paranaense e a seleção brasileira.
"Gostaríamos de ter mais cérebros de atletas, mas, para isso, seria necessária uma estrutura para recebê-los, com investimento em transporte para cá e um atendimento fora do horário comercial de segunda a sexta, que é como trabalhamos atualmente", afirma Claudia Suemoto, geriatra e coordenadora do banco.
A obtenção do órgão deve ser feita até 14 horas após a morte. Por essa razão, a maioria deles vem do SVOC, e os casos mais raros são encaminhados do vizinho Hospital das Clínicas. Ao contrário dos EUA, onde há campanhas públicas para que as próprias pessoas se comprometam a doar, por aqui a grande maioria das doações é determinada pelas famílias.
"Coletamos cérebros de pessoas que apresentavam ou não demências pela idade. O revelador é que 25% dos sadios tinham algum tipo de comprometimento, o que mostra que o processo de envelhecimento do órgão é lento, podendo demorar até 15 anos para se manifestar", conta Suemoto.
O assunto é importante, porque o Brasil tem um dos mais altos índices de demência ligada a problemas vasculares — é de 35% dentro do banco da USP. Entre as explicações para o fenômeno, estão a falta de diagnóstico e tratamento para hipertensão, diabetes, colesterol alto e obesidade. Os médicos esclarecem, também, que a demência não tem cura, só métodos paliativos.
Nos últimos anos, o governo federal e estadual têm cortado verbas para a pesquisa — e não é diferente no banco de cérebros da USP. Fora as instalações, salários e materiais básicos, a maior parte dos gastos da estrutura, principalmente as matérias primas importadas, é bancada por bolsas vindas de universidades e fundações norte-americanas.
Desde 21 de março de 2020 não entra nenhum cérebro no acervo, porque o perigo de contágio é muito grande durante as autópsias, ainda mais durante uma pandemia. Apenas um outro grupo da faculdade, liderado pelo patologista Paulo Saldiva, está coletando material a partir de agulhas e estudando o impacto da covid-19 no cérebro. O método é conhecido como autópsia pouco invasiva.
Ao fim e ao cabo, o cérebro humano virou vítima de seu próprio sucesso. Graças à evolução dele, a humanidade dominou o planeta, mas, ao invadir o habitat de outras espécies, se expôs a vírus que ameaçam sua existência — e agora precisa raciocinar sobre seu expansionismo. Ao longo da evolução, o ser humano estendeu seus conhecimentos e ganhou maior expectativa de vida. Isso também possibilitou perceber e raciocinar sobre assuntos como o envelhecimento e a finitude, inclusive dele próprio, o cérebro. Até agora, entretanto, nossa mente apenas arranha a superfície da complexidade do órgão que a abriga.
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