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Se Britney fosse brasileira, estaria protegida pela lei? Entenda a curatela

Cantora Britney Spears chega ao MTV Video Music Awards em Nova York, em 2016 - Eduardo Munoz
Cantora Britney Spears chega ao MTV Video Music Awards em Nova York, em 2016 Imagem: Eduardo Munoz

Luiza Pollo

Colabroação para o TAB, de São Paulo

01/07/2021 04h01

Impedida de tirar o DIU (dispositivo intrauterino). Impedida de cuidar de sua fortuna. Impedida de se casar novamente e até mesmo de escolher a cor dos armários da cozinha. Nos últimos 13 anos, as decisões de Britney Spears, 39, não pertencem a ela. Desde que a cantora teve problemas de saúde mental e abuso de drogas, seu pai foi apontado na Justiça como responsável por tomar decisões financeiras e pessoais da filha, o que nos EUA é chamado de conservatorship.

Desde 2019, ele alegou problemas de saúde e abriu mão temporariamente de parte das decisões financeiras e de todas as decisões pessoais da vida da cantora. Mas isso não significa que Britney ficou livre. Um conservator profissional foi apontado para assumir o papel. Britney já pediu na Justiça que o pai seja removido da função, além de expressar o desejo de terminar por completo a obrigação jurídica.

Pode isso? Nos EUA, apesar das variações entre cada estado, um juiz pode determinar que um adulto assuma judicialmente a responsabilidade pelas decisões de outro que tenha limitações físicas e/ou psicológicas, sob a justificativa de proteger quem está vulnerável e não pode expressar suas vontades ou fazer escolhas.

Como é no Brasil? Essa mesma situação era prevista e chamada de curatela. Em 2016, contudo, a entrada em vigor da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, mudou a questão.

Para esclarecer: Temos visto a palavra "tutela" sendo usada no Brasil para descrever o caso de Britney, mas não é o correto. Pela lei brasileira, tutela é quando um adulto assume responsabilidade pela vida financeira de uma criança ou adolescente que ficou órfão, e geralmente é garantida à pessoa que fica com a guarda do menor. Nem no caso de Britney, nem no caso de um adulto brasileiro considerado incapaz, podemos falar em tutela.

Certo. Mas no Brasil, o que mudou? Pelo Código Civil, as pessoas que, por "enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos" eram consideradas "absolutamente incapazes", e portanto ficavam sujeitas aos cuidados de um curador. O Estatuto da Pessoa com Deficiência modificou esse entendimento, e, entre outras categorias, entram como "relativamente incapazes" aqueles que, "por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade".

O que isso significa, na prática? Que ter um transtorno mental e ser considerado alguém sem discernimento não é mais suficiente para curatela. Agora, é preciso que a pessoa não seja capaz de exprimir sua vontade para que a curatela seja aplicada. Eduardo Tomasevicius Filho, professor do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), explica que, dessa forma, o Estatuto esvaziou a figura da curatela. Agora, a tomada de decisão por um curador deve ser feita em casos bastante excepcionais, apenas para decisões de patrimônio e negócios. E a lei criou ainda novas possibilidades, com o objetivo de dar mais autonomia e garantia de direitos às pessoas com deficiência.

No que isso implica? Pela lei, uma pessoa com deficiência pode ser sujeita à curatela para tomar decisões específicas, o que "não alcança o direito ao próprio corpo, à sexualidade, ao matrimônio, à privacidade, à educação, à saúde, ao trabalho e ao voto". Portanto, "se a Britney morasse no Brasil, isso não poderia acontecer", afirma ao TAB Tomasevicius Filho. "Ela tem o direito de tirar o DIU, de ter filhos, ela tem direito de fazer o que quiser." Britney teria a opção, se fosse brasileira, de optar pela chamada "tomada de decisão apoiada", que consiste em apontar duas pessoas de sua confiança para auxiliá-la a decidir.

Funciona na prática? Aí é que está o problema. Mariana Lara, professora adjunta da Faculdade de Direito da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), descobriu, durante o doutorado, que a maior parte dos casos se mantém como antes de 2015. "Na esmagadora maioria dos casos, o que a gente vê ser aplicado é a curatela, mesmo para casos em que as pessoas conseguem exprimir vontade — uma pessoa com síndrome de Down, por exemplo", relata. Vale lembrar que há casos mais complexos que o de Britney, em que a pessoa com deficiência realmente tem dificuldade de expor suas vontades — o que muitas vezes ocorre porque a própria sociedade não se empenha o suficiente em entendê-las, afirma Tomasevicius Filho. "A pessoa pode não conseguir manifestar sua vontade, mas não significa que ela não tenha nenhuma. Devemos dar tecnologia para ajudá-la a falar quando for o caso", diz.

A nova lei tem condições de resolver todos os casos? Lara reconhece os avanços, mas traz algumas críticas à nova legislação. Para ela, pessoas com deficiências mentais e intelectuais graves acabam desprotegidas. "Para essas pessoas, o mais adequado seria, sim, um regime de incapacidade. O propósito é evitar que essas pessoas realizem maus negócios e venham a ter prejuízos patrimoniais e até mesmo pessoais", afirma.

O que aconteceu com Britney, então? O caso da cantora passa longe dessa definição de incapacidade. Uma das polêmicas apontadas é que ela continuou se apresentando em shows e lançando músicas e produtos durante todo esse tempo em regime de conservatorship. "Como uma pessoa pode ser tão apta para o trabalho, a ponto de cumprir com compromissos exaustivos, e estar apta a conviver com os filhos só quando o curador permite?", diz diz Claudia Grabois, presidente da Comissão Nacional de Direitos da Pessoa com Deficiência do IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família).

Foi tudo de repente? A advogada destaca que, inicialmente, Britney perdeu a guarda dos filhos e, em seguida, a liberdade sobre as próprias decisões. "As mulheres são muito julgadas por seu comportamento, principalmente aquelas que não contam com um bom apoio. E isso depende do temperamento de cada pessoa, das circunstâncias, mas são mulheres que acabam ficando mais vulneráveis", avalia. Para ela, no caso da guarda, é preciso antes de mais nada pensar na segurança e no bem-estar das crianças.

Como agir nesse caso? No Brasil, se alguém se encontra em situação similar à de Britney — com um curador que controla suas decisões pessoais —, Garbois destaca que é possível reclamar junto à Justiça. Uma das possibilidades é denunciar a situação ao Ministério Público, o que pode ser feito mesmo online, ou então pedir, com auxílio de um(a) advogado(a), a tomada de decisão assistida.