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'Não quero voltar': a depressão pós-covid em bairro isolado de Curitiba

Adolescente atravessa os trilhos do trem na Vila Pantanal, em Curitiba - Amanda Andrade/UOL
Adolescente atravessa os trilhos do trem na Vila Pantanal, em Curitiba
Imagem: Amanda Andrade/UOL

Amanda Andrade

Colaboração para o TAB, de Curitiba

03/07/2021 04h01

"Não queria nem voltar mais, mas preciso. Não tem o que fazer", afirma Jean Cris Jurquevicz, 41, segurança de um hospital privado em Curitiba.

Em 19 de abril, pouco mais de um mês após começar a trabalhar no novo emprego, Jean deu entrada em outro hospital, o Cruz Vermelha, para tratar um quadro de pneumonia e de covid-19. Em cinco dias, teve alta e pôde continuar o processo de recuperação em casa. Mais de um mês depois, ainda não se sente pronto para voltar ao trabalho — onde acredita ter sido infectado.

Jean mora na Vila Pantanal, uma favela em Curitiba. O local, isolado do bairro Alto Boqueirão por um pátio de manobra de trens e da cidade de São José dos Pinhais pelo Rio Iguaçu, faz parte do Distrito Sanitário Boqueirão, que teve, até a primeira semana de junho, o terceiro maior número de casos de covid-19 em relação aos outros nove distritos de Curitiba: 22.895. Dados da prefeitura de Curitiba apontam que o distrito tem maior incidência e mortalidade de covid-19 que a média nacional.

Sentado no sofá da sala de casa, com os dois pés apoiados em uma cadeira, Jean fala devagar, tomando fôlego antes de começar cada frase e contando com a ajuda da esposa quando não consegue concluir o que diz. Ele ainda sente fadiga, dores de cabeça e cansaço após andar ou subir as escadas de casa. Jean também apresenta um quadro agravado de depressão.

"O olhar dele mudou quando voltou do hospital. Ele ficava olhando fixamente para mim, mas não falava nada", lembra a esposa de Jean, Célia de Paula, 36. Diligente, ela media a febre e a saturação de oxigênio usando um oxímetro emprestado de uma conhecida, além de alimentá-lo, durante o período de recuperação em casa, após o internamento. "Quando ele chegou, não queria ver TV, não queria ver o celular nem conversar com a gente [ela e a filha do casal, Mayza, de 11 anos]", relata. "Agora que está falando, mas está com medo de trabalhar e pegar de novo [o coronavírus]. Fala que vai morrer lá."

Afastado do trabalho por atestado médico, em virtude da depressão — tratada atualmente com amitriptilina —, Jean tem dificuldade de lidar com as memórias das poucas semanas em que trabalhou no hospital.

"Eu via cinco, seis caixões por dia, porque eu é que abria o portão para a funerária entrar. Eu pensava: 'Isso aqui é um matadouro'", diz. Seu emprego anterior — cinco meses em 2020 — foi como segurança do hospital Pequeno Príncipe, que atende crianças e adolescentes de todo o Brasil.

Os sintomas depressivos entre os brasileiros podem estar relacionados, segundo pesquisadores, à incerteza quanto às medidas que serão (ou que deveriam ter sido) tomadas para conter a doença. Ricardo Uvinha, vice-diretor da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP (Universidade de São Paulo), participou de uma pesquisa global, liderada pela Universidade de Ohio, que levantou dados de ansiedade e depressão durante a pandemia em onze países. Os índices brasileiros foram os mais altos: 63% dos 1,5 mil entrevistados apresentaram relatos de ansiedade e 59% têm sintomas de depressão.

O estudo, que foi conduzido, no Brasil, pela USP e pela Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), foi publicado em fevereiro pelo periódico acadêmico Environmental Research and Public Health.

"É importante ressaltar que o isolamento social não é necessariamente a causa da depressão, mas pode ser um sintoma dela", observa Alberto Filgueiras, do Instituto de Psicologia da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), envolvido em pesquisas semelhantes.

Jean Cris Jurquevicz, morador da Vila Pantanal, em Curitiba: o bairro sofre com alta incidência de covid-19 - Amanda Andrade/UOL - Amanda Andrade/UOL
Jean Cris Jurquevicz, morador da Vila Pantanal, em Curitiba: o bairro sofre com alta incidência de covid-19
Imagem: Amanda Andrade/UOL

Covid-19 em casa

No terreno na esquina da casa de Jean, em frente a um cruzamento de estreitas ruas de terra, moram 15 pessoas da mesma família — cada casal e seus filhos em uma das cinco casas conjugadas. O vírus, acredita-se, chegou por meio de um dos irmãos de Célia, que se contaminou no trabalho. Outras nove pessoas foram infectadas. Dos quinze moradores, apenas cinco não tiveram covid-19 naquele período. Leonice de Paula da Silva, 56, mãe de Célia, foi uma das primeiras a sentir os sintomas.

Ela diz só ter passado a acreditar na gravidade da doença ao ver a piora na saúde do genro e ao perceber que seus próprios sintomas persistiam até muito depois de seu organismo estar livre do vírus. "Agora que caiu a ficha de que o negócio é feio, mesmo."

Quando as atividades do cotidiano ficaram cada vez mais difíceis de serem concluídas, Leonice e alguns de seus familiares buscaram atendimento médico e saíram do consultório com receitas para comprar ivermectina e azitromicina — substâncias de ineficácia comprovada para combater o novo coronavírus. Os que tomaram os medicamentos e alguns dos que não os tomaram (as crianças infectadas, em sua maioria) tiveram tempos de recuperação semelhantes.

O prefeito de Curitiba, Rafael Greca, posicionou-se contra o uso desses medicamentos. "Todo mundo tem que pôr na cabeça que o vírus mata, que lombriga não é vírus. Ivermectina não cura, só faz mal para os rins. Cloroquina não mata vírus, senão Manaus estaria imune pela malária", disse, em 19 de março, durante live transmitida nas redes sociais. Três dias depois, a prefeitura notificou uma empresa responsável por colocar, em 10 bairros da cidade, outdoors favoráveis ao "tratamento precoce" contra a covid-19.

Terezinha dos Santos é outra moradora da Vila Pantanal que recebeu, após o diagnóstico de covid-19, uma receita médica para comprar ivermectina e azitromicina. Na farmácia, foi cuidadosamente instruída pelo profissional que a atendeu acerca de como utilizar os medicamentos. Gostou tanto do atendimento do farmacêutico, que o indicou para amigos e conhecidos do Pantanal que também tiveram teste positivo.

Criança que vive na Vila Pantanal, em Curitiba: o bairro sofre com alta incidência de covid-19 - Amanda Andrade/UOL - Amanda Andrade/UOL
Imagem: Amanda Andrade/UOL
Varal de roupa próximo às margens do rio Iguaçu na Vila Pantanal, em Curitiba - Amanda Andrade/UOL - Amanda Andrade/UOL
Imagem: Amanda Andrade/UOL

Mesmo restringindo suas saídas para consultas médicas e para o trabalho, Terezinha, que tem 55 anos, foi infectada e teve de lidar com múltiplos casos de covid-19 no Mercado Zucco, do qual é proprietária. Após sentir os primeiros sintomas, fez um exame PCR, que teve resultado negativo. Decidiu, então, continuar trabalhando ao lado dos oito funcionários do mercado (entre eles, seu esposo e dois filhos), todos moradores da Pantanal. Uma semana depois, os exames de todos os funcionários (exceto os de duas mulheres) confirmaram a infecção pelo novo coronavírus. O mercado, então, passou 10 dias de portas fechadas.

Apesar do período sem atender clientes, devido aos casos de Covid-19, e das restrições em decorrência de decretos municipais ou estaduais (que proibiram, em alguns períodos, a abertura de mercados aos fins de semana, em Curitiba), Terezinha relata que não teve prejuízos. Entretanto, a mudança no padrão de compra dos moradores da Vila Pantanal foi perceptível. "Muita gente recebe cesta básica, então, diminuiu um pouco a venda de arroz, feijão, leite e verduras", diz."Está difícil. Tem gente que compra só o necessário, mesmo."

"Muita gente perdeu trabalho. Ficou mais difícil ter dinheiro", afirma Edson Carpejani Milani, presidente da Associação de Moradores da Vila Pantanal. Ele estima que haja cerca de mil casas e de 5 mil e 6 mil moradores na vila.

Moradora da Vila Pantanal, em Curitiba: o bairro sofre com altos índices de doentes por covid-19 - Amanda Andrade/UOL - Amanda Andrade/UOL
Imagem: Amanda Andrade/UOL
Criança observa o Rio Iguaçu, na Vila Pantanal, em Curitiba - Amanda Andrade/UOL - Amanda Andrade/UOL
Imagem: Amanda Andrade/UOL

Ensino precário em casa

A rotina das mães e pais da vila, em especial, passou por profundas mudanças. Indianara Monari, 26, agregou à sua lista de funções diárias a de professora, auxiliando no ensino das filhas Yasmin e Emilly, que têm 7 e 1 ano, respectivamente. A mais nova começaria a frequentar o CMEI (Centro Municipal de Educação Infantil) Pantanal em 2020, mas teve os planos adiados. A mais velha estudava na Escola Municipal Jornalista Arnaldo Alves da Cruz, a apenas 200 metros de distância de sua casa. Os 400 alunos da instituição estão estudando em casa desde 23 de março de 2020, quando foram suspensas as atividades presenciais de toda a rede municipal de ensino. Exceto por duas famílias, todas as demais atendidas pela escola moram no Pantanal.

De quinze em quinze dias, Indianara busca na instituição de ensino as atividades impressas destinadas à turma de Yasmin. Em casa, tenta explicar o conteúdo para a filha, às vezes com a ajuda do marido. A filha sente falta da sala de aula. "A professora sabe explicar melhor, né, filha?" "É", ri Yasmin.

Quando não estão estudando, Indianara trabalha como costureira, na loja da sogra, e Yasmin assiste à televisão e faz companhia à irmã caçula. Às vezes, encontra colegas da escola nas ruas. O espaço para brincar ou caminhar não é extenso — são cerca de 400 metros entre o pátio de manobra de trens e as margens do rio, que marcam o limite a leste. De norte a sul, há cerca de 1,3 quilômetro de ruas não pavimentadas percorridas por cães vira-latas e carros que levantam nuvens de poeira ao passar, além de habitações de madeira em ocupações irregulares, outras tantas casas e sobrados com melhor infraestrutura, muitas igrejas e pequenas lojas.

Nos trilhos da Estação Iguaçu, onde circulam os trens, já aconteceram acidentes graves, quando, nos primeiros anos da ocupação do Pantanal, moradores tentavam cortar caminho para chegar ao bairro. Em 2002, uma mãe e seu filho foram atropelados e perderam membros no acidente. Uma passarela foi construída em 2006.

Mais distantes da ameaça dos trens, os moradores, hoje, lidam com o temor do vírus. Aqueles que trabalham fora da vila pegam, de segunda a sexta-feira, o ônibus 533 - Érico Veríssimo/ Pantanal (única linha que passa para o lado de lá dos trilhos) e voltam, no fim do dia e no mesmo veículo, para as casas onde moram com suas famílias. No Pantanal, os moradores passam pela pandemia oscilantes, moldando seus cotidianos e esperando pela volta incerta da segurança.