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Perto da BR-324, 'Rua dos Caminhoneiros' de Salvador tem borracharia móvel

A rua Almirante Barroso, em Salvador, vista de cima - Rafael Martins/UOL
A rua Almirante Barroso, em Salvador, vista de cima
Imagem: Rafael Martins/UOL

Gilson Jorge (texto) e Rafael Martins (fotos)

Colaboração para o TAB, de Salvador

24/06/2021 04h01

Bartolomeu Ferreira, 46, está acostumado a fazer viagens demoradas. Mas, em 23 de abril de 2020, havia uma ansiedade maior dentro de casa.

Ele estava para começar uma jornada de cinco dias, desde o início da Rodovia Fernão Dias, em terras paulistas, até a BR-324, no trecho perto de sua residência, uma viagem que normalmente lhe custa dois ou três dias de caminhão. Era o começo da pandemia.

O corpo começou a dar sinais estranhos ainda em Atibaia (SP). Veio a febre, teve cansaço. Bartolomeu avisou a família que não estava bem, mas não considerou a hipótese de ser covid-19. Não conseguiu dormir na parada em Montes Claros (MG), nem na de Poções (BA). Chegou de volta à rua Almirante Barroso arrasado.

Em Salvador, relutou em procurar tratamento, mas foi convencido pela família a ir a uma UPA no bairro de Valéria, do outro lado da rodovia. Voltou para casa sem admitir a doença, mas acabou sendo internado dois dias depois em um hospital no centro da cidade.

Bartolomeu viveu um susto. Mas, felizmente, os outros 39 caminhoneiros de sua rua não tiveram complicações com a covid-19.

Ali na Almirante Barroso do bairro de Águas Claras (há uma rua homônima no Rio Vermelho), conhecida como a "rua dos caminhoneiros", a tendência de toda criança é querer subir na boleia e pegar a estrada. Apesar de prover uma vida confortável à família, Bartolomeu não quer que os filhos, gêmeos de 21 anos, sigam seus passos. Um está terminando a faculdade de jornalismo e o outro, a de publicidade. "Ele acha que é uma profissão discriminada pela sociedade", explica Vagner, o gêmeo que vai ser jornalista.

A rua Almirante Barroso, a 'rua dos caminhoneiros' de Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
A rua Almirante Barroso, a 'rua dos caminhoneiros' de Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

Casa e pátio

O local começou a ser chamado informalmente de Rua dos Caminhoneiros na década de 1980, por causa de um boteco das redondezas, chamado de Bar dos Caminhoneiros. A proximidade da BR tornou a rua atrativa para a moradia dos motoristas.

Nessa época, os irmãos Souza Santos já moravam ali e dirigiam caminhões para uma empresa que prestava serviços à Pedreira Aratu, instalada na primeira metade da década de 1970, quando no atual bairro de Valéria havia fazendas de gado e hortaliças das famílias Schindler, Temporal e Omaque.

Águas Claras, o bairro onde fica a rua Almirante Barroso, ganhou esse nome pela limpidez dos riachos Águas Claras e Cabo Verde, nascentes do Rio Jaguaripe.

O mais antigo dos caminhoneiros da rua, Antonio Souza Santos, 60, chegou aos 18 anos de Presidente Tancredo Neves e arrumou serviço na pedreira conduzindo um FNM modelo 1975 para uma transportadora.

O caminhão azul foi fabricado pela estatal Fábrica Nacional de Motores, criada em 1942, numa parceria entre a Alfa Romeo e o governo de Getúlio Vargas. Antonio, que também é conhecido como He-Man, o recebeu como doação do ex-patrão, que estava se desfazendo de sua frota.

"Quando a gente chegou, não tinha nem água, nem luz", lembra Antides Souza Santos, 58, irmão de Antonio.

Da esq. para a dir., Bartolomeu Ferreira, Antônio Enzo (criança à frente), Antides Souza, Fabiano Santos Souza e seu filho Cauã, na rua Almirante Barroso, a 'rua dos caminhoneiros' de Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Da esq. para a dir., Bartolomeu Ferreira, Antônio Enzo (criança à frente), Antides Souza, Fabiano Santos Souza e seu filho Cauã, na rua Almirante Barroso, a 'rua dos caminhoneiros' de Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL

O FNM não roda mais e tornou-se uma relíquia entre os modelos mais novos, como um novíssimo Volvo FH. Alguns são dos próprios caminhoneiros, outros são de empresas de transporte. Todos ficam estacionados no mesmo terreno, de 3 mil m², no fim da rua. "Ajeitando, cabem uns 30", estima Antonio.

Bairro que cresce

À medida que a demanda aumentou, vieram parentes do interior, filhos se incorporaram ao trabalho, a vizinhança aumentou. Os caminhoneiros transportam pedras, material de construção, peças de torres eólicas e trigo que chega ao Porto de Salvador e precisa ser levado aos grandes compradores.

Foi em Águas Claras que Bartolomeu, oriundo da cidade de Valença, perto do Morro de São Paulo, começou a dirigir um caminhão. Era trabalhador do transporte rodoviário e passou a fazer viagens curtas, nos dias de folga, para complementar a renda. Até perceber que ganharia mais dinheiro mudando de área.

Com 1,5 km de extensão, asfaltada, mas com jeito de cidade interiorana, a Rua dos Caminhoneiros tem poucos negócios. Para comprar pão ou fazer mercado é preciso ir a outros endereços, e para estudar ou receber atenção médica, só em outros bairros.

Mas a presença dos caminhões fez surgir ao longo dos anos pequenas empresas de serviço específicas para as máquinas gigantescas que cruzam a rua estreita até ganharem a BR-324.

Primeiro vieram os lava-jatos, com garotos da vizinhança limpando as carrocerias. Depois, uma oficina de embreagem e uma borracharia móvel, funcionando dentro de um caminhão, foram montadas.

Alguns caminhoneiros, ao chegarem a Salvador, fazem a primeira manutenção do carro em um posto na BR, e depois vão para a Rua dos Caminhoneiros para uma revisão mais apurada.

O contato leva muitos jovens a querer ganhar o mundo em um caminhão. Leonardo Souza Santos, 38, filho de Antonio, tinha 13 anos quando viajou em um caminhão pela primeira vez, escondido da mãe.

A história se repetiria anos depois, dessa vez com Leonardo ao volante. José Roberto Júnior, então um adolescente que trabalhava num lava-jato da rua, viajou com o motorista, contra a vontade do pai.

Caixa de ferramentas do caminhoneiro Leonardo Souza Santos, na rua Almirante Barroso, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Caixa de ferramentas do caminhoneiro Leonardo Souza Santos, na rua Almirante Barroso, em Salvador
Imagem: Rafael Martins/UOL
A rua Almirante Barroso, no bairro de Águas Claras, em Salvador, é conhecida como a 'rua dos caminhoneiros', pela quantidade de motoristas que residem no local - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Imagem: Rafael Martins/UOL

Hoje aos 23, Roberto tem seu próprio caminhão e está noivo. "Eu viajo por essa Bahia toda, já fui a Aracaju, Petrolina", diz ele, que gosta de ver caminhoneiros youtubers, como Corujinha Vlog e Cabelo Batateiro, com quem compartilha a paixão pelos caminhões e a emoção de estar na estrada.

Seu antigo tutor não vê muita graça em produzir conteúdo nas viagens. "Eu tiro fotos dos lugares, das fábricas, das cargas. Mas vídeo, não. Eu trabalho na correria. Caminhoneiro raiz não faz vídeo, não."

Leonardo, que tem quatro filhos, não viu o parto da maioria. Estava sempre rodando pelo Brasil. Há oito anos, quando nasceu Leonardo Souza Santos Júnior, ele estava a caminho de Juazeiro (BA).

Pouco depois da ida da mulher à maternidade, a família dele entrou em contato e ele deu meia-volta. Deixou o caminhão estacionado em um posto na BR, combinou com o pai que deixasse lá o Celta da família, pegou o carro e foi ao hospital.

"Tive que discutir com a assistente social, que não queria me deixar ver a criança, expliquei que precisava voltar a trabalhar", relembra. Foram dois dias para se deleitar um pouco, adiantar a documentação para o registro civil e ir de volta para a estrada.

Pai de duas meninas, Leonardo ficou exultante com o primeiro menino. "Todo caminhoneiro sonha em ter um filho homem."

O desejo foi atendido outra vez. Quatro anos mais tarde, Leonardo teve a oportunidade de acompanhar de perto o nascimento de outro menino, concebido fora do casamento. Nessa época, o caminhoneiro fazia trabalho extra no Carnaval como motorista de trio elétrico e engravidou uma foliã adolescente.

A rua Almirante Barroso, no bairro de Águas Claras, em Salvador, é conhecida como a 'rua dos caminhoneiros', pela quantidade de motoristas que residem no local - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
Imagem: Rafael Martins/UOL
José Roberto, 23, já tem 2 caminhões e mora na rua Almirante Barroso, no bairro de Águas Claras, em Salvador - Rafael Martins/UOL - Rafael Martins/UOL
José Roberto, 23, já tem 2 caminhões
Imagem: Rafael Martins/UOL

Álcool e fé

Sua mulher, evangélica, assumiu a criação do menino, mas em contrapartida veio a conversão do marido. "Eu vi que ia perder a minha família. Depois que entrei pra igreja, parei de estar fazendo festa. Não conciliava, igreja e festa. Aí eu parei. 2019 foi o último Carnaval", afirma.

A Rua dos Caminhoneiros é longe para quem precisa ir ao centro de ônibus. "Eu saio com duas horas de antecedência para chegar ao trabalho", conta Vagner, o filho de Bartolomeu, que faz estágio em uma emissora de TV.

Quando o coletivo chega nos horários de pico, já está lotado porque antes passa pelo superpopuloso bairro das Cajazeiras.

Mas isso deve mudar em breve. Bem perto da Rua dos Caminhoneiros, está sendo construída a nova rodoviária de Salvador, junto ao centro comercial de uma estação do ramo 3 do metrô, a Estação Águas Claras. "A gente tá levando argila para a terraplanagem da obra", relata Antonio.

Alguns caminhoneiros acordam bem cedo aos domingos para comer um prato de feijão em um boteco do bairro, coisa de 6h, 6h30 da manhã. E tem o Bar do Wando, um dos irmãos de Antonio, bem em frente ao estacionamento.

Alguns abandonaram a bebida em nome do evangelho. Além de Leonardo, que aos domingos frequenta a igreja pela manhã e à noite, seu pai, Antonio, também se aproximou da religião justamente para deixar o álcool. "Eu bebia muito, cheguei a ser internado. Mas Deus é maravilhoso", diz. A frase do parachoque do caminhão do filho atesta: "Nunca foi sorte, sempre foi Deus". Com 37 mil habitantes, o bairro tem 19 igrejas evangélicas.