Longe de casa, caminhoneiros seguem rotina na pandemia e sofrem preconceito
O alarme do celular do caminhoneiro Adriano Alfredo Marcelli, 39, despertou às 3:30 da manhã para mais uma viagem de trabalho. Na noite anterior, o Brasil registrara 8.588 mortes por Covid-19. Levantou-se, jogou água fria no rosto, trocou de roupa, tomou um copo de café requentado e, antes de sair, se despediu com um beijo da esposa Marcia Silva Santos, que dormia.
Marcelli ficou quase 15 dias longe de casa. Mesmo com medo, precisava ir trabalhar. "Não posso me dar ao luxo de ficar em casa." Em mais de 10 anos como caminhoneiro, ele já percorreu quase todos os estados do Brasil e passou por Argentina, Bolívia, Paraguai e Uruguai, sempre atrás do volante. O caminhoneiro afirma que a demanda de trabalho, para ele, se manteve igual.
A reportagem do TAB conversou com Marcelli enquanto ele percorria quase 7 mil quilômetros, partindo de São Bernardo do Campo (SP), onde mora, a Salvador como primeira parada. O destino final era Ananindeua, em Belém do Pará.
A insegurança durante os trechos mais solitários da viagem o preocupava. Muitos postos e pontos de parada estão fechados. "Quando você acha um, aproveita o máximo que pode, porque é difícil achar outro aberto", reclama Marcelli. Alguns postos de descanso estão fechando mais cedo, outros passam corrente na entrada, permitindo apenas a entrada de motoristas que abastecem o caminhão ou que consumam algo no local.
Entre as determinações da Portaria 1.343/2019, da Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, há uma que permite que locais de espera, de repouso e de descanso cobrem taxa dos usuários, desde que tenha controle de acesso e seja cercado. Também, desde 2012, existe a Lei do Descanso, que assegura ao motorista profissional 30 minutos de descanso, após 4 horas de direção, e uma hora de almoço, além de 11 horas de repouso, durante a jornada de 24 horas.
Outro problema é o preconceito com caminhoneiros em restaurantes e pontos de parada. "Eles não deixam nem a gente lavar as mãos ou rosto. Só querem que pegue a marmita e suma de lá. Em outros lugares eles trazem o prato de comida e você come do lado de fora", diz.
Funcionários exigem que motoristas usem máscaras para entrar no estabelecimento, conforme recomendam o Ministério da Saúde e a OMS, mas o motorista diz que, em uma passagem por Santa Catarina, pessoas em carros de passeio chegavam sem máscaras e entravam livremente.
Em algumas estradas, caminhoneiros encontram ajuda de moradores que doam refeições, café da manhã, marmitas e água. Apenas na divisa entre Pernambuco e Piauí, na barreira fiscal, houve higienização em partes do caminhão com álcool e orientação sobre cuidados. Muitas cidades não andam respeitando o isolamento. De passagem, os caminhoneiros repararam que, mesmo com comércio de portas fechadas, a circulação e aglomeração de pessoas na rua é grande.
Longe das estradas
Noemy Nascimento dos Santos, 60, não sai de casa desde 23 de março. Caminhoneira há mais de 10 anos, deixou um cargo na área de vendas para realizar o sonho de trabalhar atrás do volante, entregando peças automotivas pelo Brasil e países do Mercosul. Para ela, o jeito foi ficar em casa pela baixa demanda: "o dono da transportadora pediu para eu me cuidar." A caminhoneira diz que entende a gravidade da doença e que sua família tenta seguir as recomendações informadas diariamente.
Em sua última viagem, em 19 de março, já era mais difícil encontrar lugares para fazer refeições ou usar o banheiro, mas fora do país, nem permitem a entrada de caminhoneiros. "Nem os ambulantes que vendem lanches, tipo choripan, estavam mais nas ruas", lembra Nascimento, que passou um dos dias da viagem apenas com uma fatia de bolo e um pão de queijo.
"Ser mulher caminhoneira ainda é difícil, porque essas empresas e postos de combustível não estão preparados para a gente [mulheres]. Às vezes você não tem nem um banheiro para tomar banho", reclama a motorista. A portaria 1.343 recomenda que instalações sanitárias devam ser separadas para homens e mulheres. A lei também exige que exista ao menos uma instalação sanitária feminina.
Além da falta de estrutura, a caminhoneira precisa encarar as frases e o machismo de funcionários de algumas empresas. "Eu sinto muita discriminação. Quando chego em alguma empresa e pergunto qualquer coisa, sempre rebatem com: 'mas cadê o motorista?'."
Mesmo com dificuldades e o medo pelo novo coronavírus, Nascimento sente vontade de retomar sua rotina de viagens.
Para alguns, nada mudou
Gaúcho de São Borja, Rodrigo Bressan, 45, mantém a rotina. Em uma das últimas viagens a trabalho, ele partiu de sua casa de caminhão, passando por Córdoba e Rosário, na Argentina, com último destino em Uruguaiana, no Rio Grande do Sul, que fica junto à fronteira fluvial com a Argentina e Uruguai. O percurso de 2.000 quilômetros levou por volta de uma semana para ser concluído.
Segundo Bressan, a pandemia parou a produção de carros na Argentina e muitas vezes não se tem material para levar nem para trazer para o Brasil. "Meu trabalho foi afetado 90%", diz. O que ele observa de diferente é o controle rigoroso que o país vem fazendo para conter o novo coronavírus. "Por isso não teve tantas mortes. Na Argentina o pessoal está isolado, mesmo", diz.
Segundo dados divulgados pelo governo argentino, o país já tem mais de 11 mil casos confirmados de Covid-19 e 445 mortes. O presidente Alberto Fernandéz anunciou, na noite de 21 de maio, que prorrogou o isolamento para 7 de junho. Na capital, Buenos Aires, seria feito um controle mais rígido na circulação de pessoas.
Quem faz entregas pelo país, como Rodrigo, não pode ficar sem máscara, e em muitos lugares se exige que os motoristas também usem luvas. "Eles medem sua temperatura, antes e depois de passar a fronteira. Policiais nas ruas também medem a temperatura de quem está nas ruas." A fiscalização também higieniza as cabines dos caminhões, em vários pontos do percurso. "A Argentina está de parabéns."
O acesso a algumas cidades está fechado. As saídas e entradas são controladas por policiais e profissionais da saúde. Em algumas rodovias argentinas, houve suspensão da cobrança na maioria dos pedágios por quase 2 meses, para evitar o contato das pessoas durante os pagamentos. "Para você ver: a gente ouve dizer que a Argentina está quebrando, mas eles se mostram bem melhores." O caminhoneiro reclama da falta de ações no Brasil para ajudar quem está nas estradas. "No Brasil estão reabrindo tudo. O pedágio na rodovia 386, que liga Passo Fundo a Porto Alegre, é uma vergonha."
Alguns postos argentinos não permitem que os caminhoneiros brasileiros parem nos postos para dormir ou usar o banheiro, nem querem vender refeições. A maior discriminação é de quem vem de São Paulo, estado com maior número de casos e mortes por Covid-19.
Rodrigo Bressan, que é autônomo, diz que agora ganha o suficiente para pagar as contas. "A família tem medo, mas a gente toma as medidas para evitar o contato. Temos que trabalhar, escolhemos essa profissão, não podemos parar."
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.