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No Recife, borracheiro Seu Modesto faz casas de boneca no fundo da oficina

A oficina de Seu Modesto - Rafael Martins
A oficina de Seu Modesto
Imagem: Rafael Martins

Alice de Souza e Rafael Martins

Colaboração para o TAB, do Recife

04/01/2021 04h00

Vulcanizam-se pneus. Compra e vende-se a peça nova ou usada. Nem tudo está explícito na placa que destaca em azul, vermelho e amarelo os serviços oferecidos na borracharia. Ao entrar no imóvel, localizado no bairro de Santo Amaro, Recife, o chão todo melado de preto, as calotas empilhadas por todo lado e o cheiro incessante de graxa tampouco revelam o que se esconde por trás da parede e da porta de material PVC. É preciso dizer a frase que soa como um código, "Modesto está por aí?", para descortinar um universo paralelo. E parece que Paulo Modesto de Araújo, 71, passou a vida toda esperando esse momento.

É ele quem recebe os convidados que sempre quis ter, para apresentar o que está além daquele amontoado de peças de carro e máquinas para vulcanização, método de reparo que resgata pneus rasgados ou perfurados e é o serviço principal da Modesto Borracharia. "É aqui que se faz casinha de boneca?". Os olhos de Modesto brilham, tal qual o glitter roxo perdido entre os dedos e unhas encardidos da graxa. O homem sai a todo vapor de uma das duas salas por trás da porta e diz atônito: "Sim, venha aqui ver".

A Modesto Borracharia é, na verdade, a fachada de um nascedouro de casas de bonecas. Enquanto o único funcionário do estabelecimento passa o dia recebendo clientes e consertando pneus, o dono, Modesto, prefere gastar a rotina construindo e decorando imóveis em miniatura.

Chega cedo, antes das cinco da manhã, ao estabelecimento. Nas duas primeiras horas, dedica-se a arrumar os pneus em pilhas, separadas por numeração, e a colocar as calotas na fachada da casa. Depois, vai para o segundo cômodo, uma espécie de corredor onde ele criou uma mesa para construir as casinhas. Fica lá sentado e perde a noção do tempo, exceto quando é requisitado pelo funcionário ou por algum cliente.

A parede em frente à mesa é o único espaço multicor da borracharia, onde se mesclam azul, rosa, vermelho, verde e branco, resquícios das tintas spray usadas para decorar os imóveis que constrói. No passado, costumava levar duas semanas para erguer as pequenas mansões, que eram mais simples, não tinham tantos móveis, eletrodomésticos e artigos de decoração. Hoje faz peças menores, porém mais detalhistas, e termina em cinco dias, garante, se a vulcanização não o chamar ao serviço com frequência.

"Os clientes reclamavam que as casas eram muito grandes, não podiam levar na mala, quando iam viajar de carro, nem despachar, se fossem viajar de avião. Muitos compravam para levar para outros estados", conta, orgulhoso.

Oficina de borracharia de seu Modesto - Rafael Martins - Rafael Martins
Oficina de borracharia de seu Modesto
Imagem: Rafael Martins

O início de um sonho

Modesto sempre gostou de brincar de bonecas. Essa era, segundo ele, a única forma de conseguir conexão com as filhas, Ana Paula e Daniele Cristina, no passado. É que ele trabalhava como gráfico, operador de máquina de fotolito, na Companhia Editora de Pernambuco (Cepe). Foram 33 anos de função antes de se aposentar, em 2003, o que lhe rendeu jornadas e horas extras noturnas.

"Só conseguia chegar em casa perto da madrugada, aí acordava elas para brincar de boneca. Minha mulher não gostava, mas era quando eu podia estar com minhas filhas. Para você ter ideia, no fim de semana, elas não queriam sair comigo. Só me viam de madrugada, tinham medo de mim."

Apesar desses momentos, a história com as casas de boneca só começou há seis anos, para brincar com a neta Beatriz, hoje com 15 anos. "Ela dizia 'vovô, vamos pegar uma caixa de sapato para fazer uma casinha'. Eu disse 'bora' e comecei a fazer, cortando o papelão. Daqui a pouco, estava fazendo casas de 80 centímetros. O povo começou a achar bonito e perguntar por que eu não colocava para vender", conta.

A borracharia de Seu Modesto - Rafael Martins - Rafael Martins
A borracharia de Seu Modesto
Imagem: Rafael Martins

Prumo, nível e linha

A relação de Modesto com as casas de boneca não está vinculada somente às filhas e neta. É parte de um resgate maior, dos ensinamentos deixados pelo pai dele, um mestre de obras. Antes de trabalhar na Cepe, Modesto era um jovem que tinha cabelos longos e queria aproveitar a vida. Sair com os amigos, beber, ir às festas. "Eu queria tudo de bom, viver como 'boyzinho'. Queria namorar, passear, aí meu pai disse que para pagar isso eu tinha que trabalhar."

Até hoje, o vulcanizador guarda na memória o dia em que foi com o pai para a primeira obra, um edifício na Rua Castro Alves, bairro da Encruzilhada. Tinha 16 anos. "Ele me apresentou aos companheiros dizendo que, lá dentro, eu seria tratado igual aos outros. E me deu uma lição: 'se você for ajudante, seja um bom ajudante, se for carpinteiro, seja um bom carpinteiro. Procure fazer o melhor em tudo o que faz'." Modesto trabalhou durante três anos na construção civil, ouviu o pai dizer muitas vezes a frase "preste atenção no prumo, nível e linha". Prumo, para verificar o alinhamento na vertical. Nível, o alinhamento na horizontal. E linha para assentar os tijolos na mesma direção.

É essa a regra básica que carrega para construir as casas de boneca. Modesto, mesmo sem diploma, assume a função de arquiteto e engenheiro. Planeja cada casa para ser única: nunca copiou sequer um imóvel tamanho real existente na cidade do Recife e circunvizinhança. Tudo sai da cabeça dele. "Ontem à noite mesmo, fiquei acordado sem dormir porque tive uma ideia de casinha nova", explica.

As plantas costumam ter cozinha, sala, um quarto e o que agora está bombando nos pedidos, uma área de lazer com piscina. Podem ter também um banheiro a céu aberto, "o banheiro de Alceu Valença", brinca, e um elevador feito de plástico, PVC e papelão. "Um dia eu acordei e pensei, vou fazer um elevador. Fica é bonito", diz.

Uma das casas de boneca, com piscina de barca de sushi - Rafael Martins - Rafael Martins
Uma das casas de boneca, com piscina de barca de sushi
Imagem: Rafael Martins

Depois de organizar os pneus e passar as atividades do dia para o ajudante, Modesto senta na cadeira para começar ou finalizar a construção de mais uma casinha. Como em qualquer outra obra, começa pela fundação. Tudo é feito em PVC, daqueles de portas dobradiças, que ele consegue pegar na rua ou — agora já conhecido pelas casas — recebe dos amigos e vizinhos.

Ele corta tudo com uma serra e vai montando as paredes. Em seguida, planeja os andares superiores e começa a fazer os móveis e eletrodomésticos. As casas têm mesas, cadeiras, geladeira, freezer, fogão, guarda-roupa, tudo feito com plástico e papelão, depois coberto com emborrachado. As mais luxuosas têm uma piscina feita com barcas de plástico, daquelas usadas para vender sushi, e iluminação, que pode ser tanto um pisca-pisca de natal quanto uma luminária portátil usada para leitura de livros.

A finalização é sempre feita ao gosto do freguês, com tinta spray na cor solicitada ou pensada por Modesto, glitter por cima dos emborrachados e tecidos que servem como papel de parede. Há também os guarda corpos, produzidos com grades de ar condicionado split que ele recolhe na rua ou recebe de catadores parceiros. Para fazer uma pia, improvisa um fone de ouvido como torneira.

Antes de decidir vender as casinhas, Modesto foi aperfeiçoando a técnica como brincadeira. Depois, incorporou a "construção" à rotina dentro da borracharia. Se preciso for, até aos domingos vai ao estabelecimento construir os imóveis em miniatura. Abriu uma sala onde guarda os materiais e as casas prontas. É ele o espaço sagrado da borracharia, ainda que não apareça na placa da fachada, aquele ao qual Modesto leva a equipe do TAB com os olhos marejados e brilhando, e onde passa a maior parte do dia, se preciso for. Lá, estão oito casinhas, além de um prédio do Corpo de Bombeiros e um lava-jato, todos peças antigas erguidas por Modesto, à espera de comprador.

Paulo Modesto de Araújo e uma das casas de boneca projetadas por ele - Rafael Martins - Rafael Martins
Paulo Modesto de Araújo e uma das casas de boneca projetadas por ele
Imagem: Rafael Martins

A peleja da venda

"Todo mundo me diz para colocar para vender na internet, mas acho que ainda não é a hora", explica Modesto. A relação dele com a venda dos objetos é complexa. Na realidade, não se exime em dar as casinhas, quando sente que a criança está muito emocionada e os pais não podem pagar. "Já bati na casa de uma menina só para entregar a casinha a ela." Cada imóvel tem um custo de fabricação de R$ 120. Se for sem os móveis, sai mais barato, R$ 100. O público geral pode comprar cada exemplar a R$ 200.

As casinhas são vendidas em espaços públicos, geralmente na calçada oposta à da borracharia, ou em parques e praças do Recife e Olinda. A partir da quarta-feira, Modesto larga uma hora mais cedo do trabalho e parte rumo à orla de Casa Caiada, em Olinda, para tentar vender as miniaturas. Essa, talvez, seja a parte mais frustrante do trabalho.

Muita gente para, elogia, diz que vai comprar, mas nunca volta. Todo mundo acha lindo, mas cadê comprar?", reclama. A venda também tem outro complicador, Modesto já foi interpelado por representantes da gestão municipal do Recife por tentar vender, sem autorização, os imóveis em miniatura no calçadão da orla de Boa Viagem. "Tive que tirar tudo", lembra.

É que ele não tem a Carteira Nacional do Artesão ou do Trabalhador Manual, criada pela portaria n°14 - SCS, de 16 de abril de 2012. Sem ela, não é considerado um trabalhador do ramo. É apenas um borracheiro construtor de casas de boneca em miniatura. Com o documento, poderia ser até expositor da Feira Nacional de Negócios do Artesanato (Fenearte), o principal evento de artesanato do estado. E alcançaria, talvez, a glória que espera.

"Me planejei tirar neste ano, mas veio a pandemia e não consegui. Passei meses parado, sem poder vender as casinhas. Agora voltei e quero a carteira. Vejo todo mundo falar bem de artesão, quero me tornar um. Assim, ganharei aplausos."