'De onde vem essa água?': em viaduto de SP, bica mata sede de quem precisa
Enquanto esperava o balde encher de água para colocar a roupa de molho, o homem tirou de dentro da mochila esgarçada uma sacola com a marmita. Deu garfadas apressadas, entre uma esfregada e outra do sabão nas calças e nas camisas. Depois de estender os panos, abertos no chão mesmo, sentou-se e aproveitou uma brecha da sombra do sol que já ia caindo. Descansava, a menos de dois metros dos muitos carros e motos que passavam frenéticos por ali.
"Não quero falar", interrompe ele a reportagem, antes mesmo da primeira pergunta. Como aquele homem, cujo nome não disse e que pouco papo queria, muitas outras pessoas passam com frequência pela bica d'água numa das alças do complexo viário João Jorge Saad, conhecido como Cebolinha — na entrada da rua Sena Madureira, na Vila Clementino, embaixo da avenida 23 de Maio e muito próximo ao parque do Ibirapuera.
De um buraquinho, no meio do concreto, jorra água cristalina e perene que serve de bebedouro e torneira para lavar roupa e até tomar banho.
"Essa bica está aí há 20 anos, quando construíram o Cebolinha", conta Neuza Custódio Vieira, 60, que há 35 anos toca uma oficina mecânica bem próxima ao viaduto. "Era para ser uma coisa bonita, para o cara passar lá e pegar uma água. Mas agora, como tem muita gente morando na rua, tem gente que toma água e toma banho. Já passei ali e vi homem e mulher nus, se banhando."
A bica em si é maravilhosa, mas foi deixada de lado pela Prefeitura, segundo ela. "É triste você ver uma coisa sendo jogada fora. Aquela bica já podia ter sido canalizada para um lago", reclama.
"O senhor sabe de onde vem essa água?", perguntei ao homem que lavava roupa. "Não sei", respondeu, despertando imediatamente um rápido interesse de curioso. "O senhor sabe?", replicou.
Invisibilidade
"Ali estão os dois marginalizados dessa cidade se encontrando: o homem morador de rua e o rio", lamenta o geógrafo Luiz de Campos Jr. Desde 2010, ele e o urbanista José Bueno desenvolvem ações pedagógicas e visitas em grupo à foz dos cursos d'água da capital paulista, no projeto Rios e Ruas. "Quando a gente faz as caminhadas, conversamos com muitos moradores de rua. E eles sabem onde estão as águas da cidade, porque precisam delas para beber, para a higiene diária e até para trabalhar. Em várias bicas encontramos potinhos, escovas de dente e baldes. Objetos deles."
As águas que brotam nas ruas acompanham a vida de pessoas como Onofre, por exemplo, lembra o geógrafo, referindo-se a um lavador de carros que trabalhava diariamente na rua Rocha, região central da cidade. O homem, como tantos outros trabalhadores por ali, enxaguava lataria e pneus usando água de uma bica recentemente fechada, após a obra de reforma do Vale do Anhangabaú.
Campos Jr., que tem 60 anos, passou a adolescência fazendo lição de casa em cima de bica, no Morumbi. Nos anos 1970, na casa do avô dele faltava água durante as obras de expansão da rede da Sabesp, e era comum os moradores fazerem fila nas bicas para abastecer os galões. "Meu avô me levava até lá, me colocava esperando a vez. Enquanto isso, eu fazia minhas lições da escola", lembra.
"A Sabesp [Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo] enterrava e canalizava essas bicas para impedir que a população usasse", critica o geógrafo. Na verdade, biólogos explicam que o consumo de água não tratada — que sai das bicas, e é gratuita — é um risco à saúde. Em nota ao TAB, a companhia disse que não é dela a responsabilidade sobre as bicas.
Procurada pela reportagem, neste domingo (4) a Prefeitura informou que a Secretaria de Saúde vai coletar uma mostra da água para análise. Um programa municipal de vigilância sanitária avalia a qualidade do material e solicita à subprefeitura da região que instale placa com a informação de "Água não Potável", para orientar a população.
Numa cidade como São Paulo, fundada em torno das águas de um rio, o Tamanduateí, há 4.900 quilômetros de córregos — 30% deles cobertos — e aproximadamente 10.300 nascentes, de acordo com um levantamento feito em 2020 pela Fundação Centro Tecnológico de Hidráulica (FCTH).
Por aqui passa o rio
A existência ou o desaparecimento de bicas na capital estão condicionados ao processo de urbanização. A construção da malha viária e as obras de drenagem e saneamento encobriram ou desviaram o curso de parte dos rios e córregos.
Na região do Bixiga, por exemplo, o rio Saracura, canalizado desde 1935, transformou-se em memória bem presente entre os moradores do bairro onde, entre os séculos 19 e 20, estabeleceu-se uma comunidade quilombola. "A ocupação histórica do quilombo do Bixiga tem relação direta com a água. Temos fotos de roupas estendidas, as lavadeiras no trechos do riacho. Pessoas que contam quando nadavam no lago na praça 14 Bis", lembra o arquiteto Victor Próspero.
Apesar de encoberto, Saracura reaparece também fisicamente, principalmente nas enchentes que alagam a vizinhança.
Desde 2019, um coletivo de moradores e pesquisadores criaram o projeto Salve Saracura, do qual Próspero faz parte, que discute questões urbanas e ambientais, a partir do rio, além de mobilizar eventos de reconhecimento do território. O grupo também denuncia a construção de dois prédios perto da nascente, autorizada pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo). Atualmente a obra está interrompida por causa de uma ação no próprio Conselho.
A queixa faz sentido principalmente à beira de uma nova crise hídrica — como alertou no último dia 28 o ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque. "Estamos na rota da catástrofe, como Paulo Mendes da Rocha avisava", diz Victor Próspero. "A gente não vai conseguir recuperar como era antes, mas podemos intervir de outras formas."
'De onde vem essa água?'
Em toda bica tem história. No caso daquela que escorre incessantemente na entrada da Sena Madureira, onde o homem lavava as roupas, trata-se de um aceno do córrego do Sapateiro — um dos mais importantes da capital, e, no entanto, invisível em quase todo seu percurso.
O Sapateiro nasce na Vila Mariana, percorre o subterrâneo do vizinho Vila Clementino e surge diante dos olhos das pessoas somente no imenso lago do parque do Ibirapuera, cartão-postal da capital, logo após passar por uma estação de tratamento da Sabesp. Dali segue até o rio Pinheiros, passando pelo Itaim.
Esse trajeto, contudo, só foi possível de ser cartografado a partir de estudos feitos pelo arquiteto Vladimir Bartalini, professor da Faculdade de Arquitetura da USP e autor de pesquisas sobre córregos ocultos da cidade de São Paulo. Ele analisou mapas da região ao longo dos anos e fez uma observação atenta das estruturas e formatos de ruas, disposição das praças e da arquitetura de casas mais antigas. Trabalho que ele mesmo comparou ao de arqueólogos a esclarecer ou reconstituir histórias.
Foi com base nos textos de Bartalini que o estudante de arquitetura da USP Gabriel Neistein descobriu a origem da água do Cebolinha. Criado na Vila Mariana, o rapaz de 23 anos decidiu, ano passado, refazer o trajeto do Sapateiro demarcando seus principais pontos. "Não sabia e não imaginava que o córrego passava na minha rua. Por mais que ali houvesse alguns sinais na morfologia e desenhos de quarteirão, eu não tinha associado", explica o estudante.
No mapa dos anos 1930 que encontrou, deparou com o córrego no quarteirão abaixo da rua onde moram seus pais. Foi sobrepondo, então, o redesenho do mapa ao longo das décadas, e entendendo o atual traçado. A partir da descoberta, Neistein juntou-se a mais dois amigos e fez intervenções gráficas em muros e postes, sinalizando que por ali passa o córrego. Em uma tarde, o trio fez entre 30 e 40 intervenções. O trajeto também foi marcado em um mapa virtual colaborativo.
Inaugurado pela prefeitura no final de 2000, o complexo Cebolinha (batizado de João Jorge Saad, em homenagem ao empresário que morrera no ano anterior) custou R$ 40 milhões. Naquela época, o conjunto de três viadutos, finalizado com dois anos de atraso, foi considerado pela gestão Celso Pitta uma inovação estética nas obras públicas da cidade. Além de projeto paisagístico, com pequenas praças, foram usadas tintas especiais e, em alguns trechos, revestimento de granito ao custo de R$ 120 mil.
Numa dessas paredes, hoje, a água marca seu rastro com o lodo e leva gente para onde passam correndo os carros. "Aquela imagem é louca. No meio dos viadutos e do trânsito, estão os moradores de rua que vão levar isopor para encher de água e usar na praça de cima do Cebolinha, onde eles moram", diz Gabriel Neistein. "Imagino que quando fizeram as obras de contenção e muro de arrimo, viram que tinha água saindo de lá, e acho que foi uma gambiarra de obra colocar aquele caninho ali. Uma água que acumula atrás de um muro de arrimo, mesmo ele sendo de concreto, com o tempo ela consegue desfazer e sair de alguma forma."
Há sempre um aceno de água pela cidade, ainda que por um fiozinho mirrado a escorrer do concreto — seja para natureza dizer que existe ou para matar a sede de quem precisa.
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