Amarildo, o ex-professor que faz, por conta, o censo de Igatu desde 1994
Há um lugar no Brasil onde ninguém entra, ninguém sai, morre ou nasce sem ser notado. Lá, o adiamento do censo demográfico do IBGE não faz tanta falta assim.
Sabe-se quem são os nativos, não nativos, todos os aposentados, as crianças, os adultos, os mais novos, os mais velhos. Sabe-se até quem são todas as mulheres nativas de 50 anos em diante com família, solteiras e mães, solteiras e aposentadas. Nada escapa ao único agente recenseador na ativa em terras brasileiras, Amarildo dos Santos, 57, no distrito de Igatu, na Chapada Diamantina (BA).
O povoado da cidade de Andaraí, a 324 km da capital baiana, é recenseado permanentemente desde 1994, quando Amarildo deixou de ser professor e decidiu ocupar o tempo contabilizando as mudanças populacionais de lá. Era uma forma de ele — homem apegado ao método e à repetição, curioso e caçador de informações genéricas — criar uma rotina para si.
Amarildo faz questão de saber de tudo. Em Igatu, de tanto contar gentes e fatos, virou o único que sabe de tudo, mesmo. O homem é um memorial vivo da vila que outrora foi paraíso do garimpo, mas que agora o recenseador chama, mais de uma vez, de "fim de mundo".
Quanta gente tem aqui?
A contagem populacional começou de forma tímida, com dados gerais de nascidos e falecidos, nativos e não nativos, mas foi ganhando categorias segundo a criatividade censitária de Amarildo.
Na metodologia do ex-professor, são contadas crianças de 0 a 11 anos; adolescentes de 12 a 17 anos; adultos de 18 a 49 anos com família e solteiros; solteiros e pais; e solteiros simplesmente. Há também a designação dos gêneros masculino e feminino. Os estrangeiros entram na lista associados às demais variáveis.
O levantamento é feito à mão. Tudo é anotado em folhas de papel sulfite A4 "Chamequinho" — as melhores, segundo ele. As canetas, que às vezes manda trazer de Andaraí, precisam ser sempre de ponta grossa, vermelhas, pretas, verdes e azuis, para preencher o glossário.
No índice, as páginas de cada tópico estão escritas a lápis, para o caso de aumentarem ou diminuírem. A mesma estratégia é usada na adição ou subtração de nomes. Sempre que um bebê novo nasce em Igatu ou que o habitante mais velho morre, Amarildo corre para a página, apaga com borracha e atualiza o dado com grafite.
Tudo fica registrado em páginas de papel envelopadas com plástico, em uma pasta-catálogo preta, cujo título anuncia "Os habitantes de Igatu - ano 2021 - Amarildo dos Santos". O agente recenseador baiano diz que já lhe perguntaram várias vezes porque não usa computador, mas ele não se rende à tecnologia por um motivo nobre: começou a fazer isso para colocar em prática aquilo que considera seu único e grande talento: escrever.
Pode parecer trabalhoso anotar cada mudança, mas Amarildo diz que não é. Tem a seu favor a vantagem de trabalhar nos Correios e com informações turísticas. Está sempre na praça principal da cidade, por onde todo o movimento precisa passar. Sua casa, espécie de museu e ponto de venda, fica numa das cinco ruas principais de Igatu.
Depois de tanto tempo nessa função, todo mundo corre para contar novidades a Amarildo. Quando ele não faz busca ativa, há outros amigos, colegas e familiares ajudando. "Se demora um, dois dias, do meu olhar, sempre vai ter uma pessoa para me dar um toque. Às vezes, minha esposa está descendo da casa da mãe dela, vê uma novidade e já me conta", explica.
Segundo o último censo do IBGE, de 2010, em Igatu residem 360 moradores. Anda bem desatualizado, pelas contas do manuscrito "Os Habitantes de Igatu", que soma 480 pessoas no distrito. "Aqui é um punhadinho de gente, então controlo tudo."
Outros escritos
O censo é apenas um dos manuscritos de Amarildo, e faz parte de uma coleção de 12 livros que ele mantém no acervo. A obra, ainda que meticulosa e cheia de informações, não aglutina toda a necessidade dele de documentar a vida interna e externa.
Na mesma época em que começou a fazer o censo, Amarildo virou escritor. As obras — de papel, caneta e lápis — ficam à venda no "ponto!", o comércio que na verdade é a sala da casa transformada em loja-museu. "Eu falei para a minha esposa, lá em casa, do corredor pra dentro, você vai mandar. E na sala sou eu, tudo bem?"
Para chegar ao estabelecimento, basta procurar a placa que diz: "entre aqui e compre alguma coisa..." Com tipografia própria, uma marca de deixar orgulho no perfeccionista Amarildo, a placa é quase um patrimônio local, segundo o dono, que tentou tirá-la durante a pandemia, mas recebeu muitas queixas dos conterrâneos.
Lá dentro são vendidos água, refrigerante e cerveja, mas o que faz sucesso mesmo são as coleções do recenseador, os licores de variados sabores e as obras em manuscrito, que ele faz questão de ter sempre prontas para venda.
Tudo isso fica no canto direito da sala, que tem na parede um mural de fotos das personalidades que já colocaram o pé em Igatu, de celebridades a políticos. Cada pessoa é destacada com nome, escrito em letras recortadas de revistas, e o ano em que foi fotografada ao lado de Amarildo. É assim também que ele escreve o título de cada livro, com letras recortadas. Para garantir revistas suficientes, ele recorre aos vizinhos, amigos, a uma irmã que vive em São Paulo ou ao comércio de Andaraí, já que em Igatu não há sequer uma banca de revista.
O ex-professor já escreveu sobre as atrações turísticas de Igatu e da Chapada Diamantina, sobre os significados dos nomes antigos de ruas e garimpos do distrito, sobre as principais cachoeiras, os grandes acontecimentos locais e ainda fez um levantamento de tudo o que há em Igatu. Este último reúne nomes de lojas, pousadas e restaurantes, dos pais e das mães da vila, de todos os moradores que têm apelidos, os funcionários da prefeitura, os viúvos e pensionistas, os nomes repetidos, o nome de todos os responsáveis pelas casas, além de um inventário de todos os carros e motos da localidade.
Os livros são feitos em edições, geralmente 12 por remessa, sempre escritos da mesma forma e com ilustrações diferentes na capa. Doze sempre, porque Amarildo prefere números pares. Toda vez que vende os últimos exemplares, senta-se para escrever os próximos.
Os manuscritos mais vendidos são os que têm mais edições. "As principais atrações turísticas de Igatu" já está na 23ª, enquanto "Um levantamento geral do que temos em Igatu" e "Xique Xique - um pequeno resumo da nossa história antiga" já estão na 25ª.
Outros amores
Amarildo não nega: é homem vaidoso e usa as habilidades para documentar-se a si mesmo. Um terço da sua obra fala dele. "O cidadão do bem", cuja ilustração é uma foto dele, está na 18ª edição.
Em duas obras o recenseador informal revela seus amores por Xuxa Meneghel e Roberto Carlos. Em sua 11ª edição está "A minha história fascinante como fã número um de Xuxa Meneghel". Já "A minha história de vida como fã do cantor Roberto Carlos" guarda modéstia, tal qual esta idolatria quando comparada à primeira. Está na 5ª edição.
Ao lado dos manuscritos e licores, ganha destaque na sala de Amarildo a coleção de revistas, CDs, DVDs, vinis e fotos que o ex-professor reúne dos dois artistas. Não sabe contabilizar quanto material guarda, só sabe que Xuxa, apesar de ele ter conhecido tardiamente, em 1987, tomou a frente do primeiro amor, Roberto Carlos.
Amarildo conheceu o Rei na adolescência, pelas ondas do rádio que escutava na cidade de Mucugê. "Era uma tristeza que me fazia bem", recorda ele sobre as canções. Na época, fez uma promessa a si mesmo: quando conseguisse se formar e arrumar trabalho, começaria a colecionar objetos sobre Roberto Carlos.
Os primeiros objetos foram os discos do pai, dono do bar mais famoso de Igatu, o seu Guina. Toda vez que o patriarca deixava de lado o lançamento de fim do ano, Amarildo juntava mais uma peça à coleção. Também conseguiu vários com a esposa de um falecido amigo, que em vida o havia prometido essa doação. Amarildo também mandava buscar revistas e jornais de fora, mas chegava tudo atrasado em relação à data de lançamento, pois na época não havia estradas de asfalto nem Correios conectando Igatu ao resto do mundo. Garante que tem todos os CDs, DVDs e Vinis de Roberto.
Todo domingo, Amarildo tem um ritual repetido há anos. Das 8h às 13h, coloca as músicas do cantor no rádio e se senta para escrever. Só para na hora do almoço, é fiel demais. "Ele só não pode saber de uma coisa, que a minha preferida é a Xuxa."
Turma da Xuxa
A rainha dos baixinhos foi capaz de destronar o artista ainda na versão preto e branco da tela de uma televisão antiga, quando Amarildo a viu pela primeira vez. Todos os dias, ele esperava dar 8h e corria para uma escola próxima de casa para ver Xuxa saindo da nave do "Xou da Xuxa" da TV Globo.
Tudo se tornou ainda maior quando, em Mucugê, viu por trás de uma porta uma televisão com Xuxa em imagem colorida. Lembra como se fosse hoje. Ficou vendo e pensando "que coisa linda, que coisa linda, eu quero uma imagem dessa pra mim".
Amarildo acompanha tudo da artista e é taxativo: quem não conheceu Xuxa entre 1986 e 1992, anos de exibição do "Xou da Xuxa", não é da "geração Xuxa".
Amarildo também tem todos os CDs, DVDs e vinis de Xuxa. Tem também quase todas as revistas, divididas entre aquelas em que ela apareceu na capa, que ganham um envelopado de plástico e uma datação escrita com números recortados das revistas, e aquelas em que Xuxa apareceu nas páginas internas, estas recortadas e bibliografadas em uma pasta-catálogo.
Em relação a Xuxa, Amarildo tem um orgulho e uma frustração. Teve o nome mencionado no "Planeta Xuxa" pela própria, na década de 1990, depois de pedir à então vocalista da banda Cheiro de Amor, Carla Visi, para levar sua história aos estúdios no Jardim Botânico, no Rio.
Mas não esconde o desânimo ao lembrar-se de um show em 2017, em Salvador, quando teve pela primeira vez a chance de ficar cara a cara com ela. "Eu durmo no ponto. Deveria ter feito uma grande campanha com conhecidos de lá para chegar até o camarim. Não fiz. Depois fiquei vendo e babando nas fotos de quem conseguiu."
Amarildo havia levado exemplares do livro em que narra essa relação de amor com Xuxa, além de outros objetos do acervo. Voltou com tudo para Igatu. "Imaturidade minha", diz ele, que até hoje não se perdoa. Nunca alimentou o mesmo sonho com Roberto Carlos. Sabe ser impossível.
Se deixar, Amarildo passa o dia falando dos ídolos, dos manuscritos, do Festival de Inverno de Igatu, também documentado por ele com um autógrafo de todos os artistas já passados pela cidade desde a primeira edição do evento, na década de 1990. A conversa com ele é sempre um papo longo. Não vai terminar com perguntas somente de um lado. Amarildo documenta tudo, até o interlocutor. Só conclui quando descobre como todas as informações serão usadas, quem é e qual a história por trás de cada pessoa que encontra pelo caminho.
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