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Em MG, cervejaria pode gerar 350 empregos, mas ameaça sítio arqueológico

Maria Jacqueline Rodet em uma das grutas que mudou a sua vida - Leandro Aguiar/UOL
Maria Jacqueline Rodet em uma das grutas que mudou a sua vida Imagem: Leandro Aguiar/UOL

Leandro Aguiar

Colaboração para o TAB, de Pedro Leopoldo (MG)

14/10/2021 04h01

Pedro Leopoldo (MG) é terra conhecida. Foi aqui que, na década de 1970, encontraram a ossada de Luzia, a mais antiga habitante das Américas de que se tem notícia. No século 19, foram achados ali fósseis do período Pleistoceno — tatus e preguiças de até 6 metros de altura.

"A história da arqueologia no Brasil começa aqui", diz a arqueóloga Maria Jacqueline Rodet, 59, sentada em um pedregulho abaixo de uma estalactite. A própria história dela nessa profissão começou entre aquelas rochas da Lapa Vermelha.

Era o início dos anos 1990 e as escavações no local já haviam terminado. Rodet estava perto dos 30 anos, havia estudado filosofia, mas, em uma visita, ficou impressionada com os vestígios de vida ancestral na caverna de paredes avermelhadas, marcadas com desenhos rupestres. Decidiu ali dar uma guinada na carreira e virar arqueóloga: pouco tempo depois, ingressou na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) para estudar o tema em que trabalha até hoje.

Embora seja uma entre as centenas de cavernas da região, a história da Lapa Vermelha é especial. Entre 1835 e 1845, o naturalista dinamarquês Peter Lund encontrou naquela caverna fósseis da megafauna, chamada assim por reunir animais do tamanho de um carro popular. Datam de mais de 11 mil anos. Crânios humanos, como o de Luzia, também são desse período.

A 800 metros dali, a cervejaria holandesa Heineken pretende instalar a sua nova fábrica.

Milênios de história em xeque

O anúncio da construção, celebrado em dezembro de 2020 pelo governador mineiro Romeu Zema (Novo), foi recebido com euforia por parte da população de Pedro Leopoldo, que se entusiasmou com as cifras: R$ 1,8 bilhão em investimentos e 350 novos empregos.

Rodet enxerga tudo com menos empolgação. Ela é pesquisadora do Museu de História Natural da UFMG e prefere aguardar a divulgação de estudos de terreno. Era preciso saber se a planta industrial colocaria ou não em risco as cavernas e os sítios arqueológicos.

"Seria preciso fazer um plano de manejo das centenas de sítios, detalhar a situação em que se encontram, mapear as cavernas e entender o seu funcionamento com e sem água. Trabalho para cerca de um ano."

A profissional já trabalhou com "arqueologia de contrato", vasculhando a viabilidade de empreendimentos próximos a sítios históricos.

Os cuidados são importantes para quem trabalha com arqueologia. Em junho de 2020, um incêndio atingiu o museu onde Rodet trabalha, destruindo dezenas de esqueletos milenares ali depositados. Entre eles, alguns achados por ela mesma em um sítio arqueológico em Buritizeiros, no norte de Minas, onde atualmente realiza escavações.

As grutas da Lapa Vermelha: milênios de história da humanidade em estudo - Leandro Aguiar - Leandro Aguiar
As grutas da Lapa Vermelha: milênios de história da humanidade em estudo
Imagem: Leandro Aguiar

O fogo atingiu a área mais sensível, e supostamente segura, do museu, onde ficavam as peças não expostas aos visitantes. Vestígios arqueológicos e ossadas formavam a maior coleção de esqueletos da América Latina — posição ocupada anteriormente pelo Museu Nacional, que pegou fogo em 2018.

"Cinquenta anos de pesquisas foram queimados ali. Se a fábrica for construída em Pedro Leopoldo sem estudos aprofundados, corremos o risco de outro colapso. Esse aparente descaso é consequência do desconhecimento das pessoas sobre a importância do nosso patrimônio histórico e cultural", ela explica.

Fábrica da controvérsia

O pedido de licença ambiental para a construção da cervejaria foi formalizado em junho de 2021. Menos de um mês depois, em um processo considerado "prioritário" pela área econômica do governo mineiro, a licença foi concedida. Em seu parecer, a Semad (Secretaria do Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável) disse não enxergar "significativo impacto ambiental" derivado da construção da fábrica.

O Ministério Público de Minas Gerais suspeita, porém, que os estudos almejados por Rodet não tenham sido realizados com o nível de detalhamento necessário. Por isso, instaurou, em setembro, um inquérito para investigar possíveis omissões.

O Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), por sua vez, afirma não ter sido consultado pela Heineken ou pela Semad. O órgão pretende abrir uma averiguação para entender os riscos que a obra poderia trazer aos sítios históricos de Pedro Leopoldo.

Os estudos apresentados pela Heineken foram considerados insuficientes pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), que, em setembro, ordenou a paralisação das obras, até que análises mais aprofundadas fossem feitas.

Um dos pontos levantados pelo ICMBio diz respeito aos recursos hídricos de lençóis freáticos de que a Heineken pretende se valer para a produção de cerveja, projetada em 760 milhões de litros anuais. A água bombeada representaria um aumento de 77% em relação ao que é atualmente captado no aquífero. Segundo o instituto, a multinacional não esclareceu as consequências desse deslocamento de águas subterrâneas para as cavernas da região.

Sem novos estudos, concluiu o ICMBio, as implicações "são desconhecidas e imprevisíveis", podendo inclusive comprometer de maneira "irreversível" os sítios arqueológicos.

Atendendo a um recurso da Heineken, uma decisão de caráter provisório da Justiça de Minas, assinada pelo juiz Mário de Paula Júnior em 6 de outubro, avaliou, sem discutir o mérito das indagações do ICMBio, que não é papel do instituto versar sobre a conveniência da obra, o que caberia ao estado e ao município. A construção da cervejaria, assim, foi novamente liberada.

Apesar de ter sido avalizada pela Justiça, a Heineken ainda não reiniciou as construções. "Optamos por, neste momento, manter as obras suspensas. Manteremos as conversas no sentido de reiterar todo o respaldo técnico necessário para retomada e construção da cervejaria", declarou a empresa em nota à imprensa, que acrescentou não estar avaliando nenhuma outra localidade para a instalação da fábrica.

Questionada pelo TAB, a Semad explicou que, "considerando os dados apresentados pelo empreendedor e observando a necessidade de detalhamento (...), foi solicitada a formalização da pesquisa hidrogeológica, de modo complementar aos estudos apresentados [pela Heineken]. Vale destacar que a pesquisa hidrogeológica tem em seu escopo o mapeamento e o inventário das captações de entorno que podem porventura ser afetadas por um possível rebaixamento do nível d'água, caso o mesmo ocorra em função do bombeamento por meio dos poços tubulares executado pelo empreendimento. Neste caso, há uma condicionante que garante a reposição aos usuários, caso haja interferência em tais captações".

O túmulo de Luzia

Mais de um século depois das primeiras expedições, nos anos 1970, uma missão arqueológica franco-brasileira liderada por Madame Annette Emperaire reforçou a importância da Lapa Vermelha para a história da arqueologia mundial. Foi ela quem descobriu as ossadas humanas que, em 1995, o arqueólogo Walter Neves, outro ícone da arqueologia nacional, datou em mais de 11 mil anos e nomeou de Luzia.

exumação - André Strauss - André Strauss
Rodrigo Elias em exumação: patrimônio da humanidade
Imagem: André Strauss

Quem hoje dá continuidade às pesquisas são André Strauss e Rodrigo Elias de Oliveira, da USP (Universidade de São Paulo). Desde 2011, eles coordenam o projeto "Morte e Vida", que realiza escavações na Lapa do Santo, a 20 km de onde foi encontrada Luzia. Junto deles, 15 pesquisadores, além de grupos de até 50 alunos de graduação, mestrado e doutorado de diversas partes do Brasil e do mundo, viajam anualmente à região para entender quem eram e como viviam os hominídeos.

"Os principais achados na Lapa do Santo são os esqueletos humanos de aproximadamente dez mil anos, algo extremamente raro e informativo sobre o passado humano. A partir deles, podemos extrair o DNA, compreender questões simbólicas relativas às práticas funerárias e estudar as dietas e as doenças que acometiam essas populações. Por isso a região é famosa no mundo: pela abundância de esqueletos antigos e bem preservados"

André Strauss, arqueólogo e pesquisador da USP

Na próxima etapa das escavações, prevista para julho de 2022, Strauss e Oliveira pretendem explorar depósitos fósseis com vestígios de mais de onze mil anos, algo inédito na pesquisa.

Pela distância entre a Lapa do Santo das instalações da Heineken, Strauss não teme que a nova fábrica inviabilize as pesquisas. O impacto indireto no longo prazo, no entanto, é uma preocupação.

"O subsolo é como uma esponja, repleto de cavidades que trabalham em certa unidade", pondera Oliveira. "É uma área sensível, e qualquer intervenção humana ali deve ser muito bem estudada."

O pesquisador ressalta que ele e seus colegas não são, de saída, contrários à obra, mas querem que ela seja devidamente analisada antes de ser iniciada. "É justo que as pessoas tenham emprego e que os municípios arrecadem impostos, mas, sem os estudos adequados, estamos no escuro. O que o ICMBio parece questionar é que, da maneira como vem sendo feito, não se sabe se o impacto da fábrica será desastroso ou zero."

Em sintonia com as preocupações de Oliveira, a Sociedade Brasileira de Espeleologia publicou, em 8 de outubro, um manifesto endossando o parecer do ICMBio e exigindo novos trabalhos por parte da Heineken, além de pedir esclarecimentos ao Semad sobre a concessão da licença ambiental.

Para Rodet e seus colegas, há anos na batalha, resta a esperança de que a cervejaria se adeque aos questionamentos. E que a cerveja não destrua Luzia.