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As engrenagens da moda que justificam sapato do Faustão custar R$ 8,7 mil

Faustão e os sapatos de luxo - Reprodução
Faustão e os sapatos de luxo Imagem: Reprodução

Felipe Pereira

Do TAB, em São Paulo

29/10/2021 04h01

Existe uma vida melhor, mas ela é caríssima. Os portadores de cartões de crédito capazes de bancar luxos e mordomias têm à disposição toda a indústria da moda de luxo. Caso de Faustão e seu sapato Fendi de R$ 8,7 mil.

Matéria-prima de primeira linha, fabricação artesanal (termo vago, mas com "artesanal" deduz-se que os humanos envolvidos na fabricação sejam mão-de-obra qualificada e paga de forma justa), durabilidade e exclusividade são as justificativas para uma conta tão salgada, mas a equação inclui a vaidade humana. Escavações encontraram diferenças em sepulturas pré-históricas. O Homo sapiens tenta se distinguir de seus pares desde o começo da civilização.

A indústria do luxo sabe disso. Os italianos sabem que Faustão e outros consumidores querem um sapato que carregue quase 100 anos de tradição no manejo do couro. O apresentador está calçando a excelência e quase um século de expertise.

"O consumo tem a parte objetiva, mas tem a parte subjetiva também. Moda é sonho. A parte subjetiva pesa mais", explica Lilian Pacce, jornalista e curadora de moda.

Faustão - Reprodução / Globo - Reprodução / Globo
O apresentador em seus dias de dono das tardes de domingo da Globo
Imagem: Reprodução / Globo

Vim, vi e venci

A vocação que Itália e França têm para a indústria do luxo confere um selo de qualidade a seus produtos. Enquanto isso, a China ganha de lavada na produção de artigos falsificados com etiquetas das marcas conceituadas e metade do preço, ou menos. Professor de História da Arte do Curso de Moda da Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo, João Braga explica que quando a peça é original tem efeito no indivíduo e na imagem dele em seu meio social.

"Diante dos olhos de outras pessoas, a pessoa ganha certo status. As pessoas que conhecem esses produtos sabem desses valores. O consumidor fica com o prestígio material."

Braga explica que, para um artigo ser considerado de luxo, é preciso cumprir certos requisitos. A tradição é a premissa associada a passar 100 anos fazendo a mesma coisa. A consequência é o absoluto domínio dos processos de fabricação e oferecer o melhor produto — seja sapato, bolsa, roupa, relógio ou joia. A raridade significa vender um número reduzido de peças. Assim, menos pessoas têm acesso ao artigo.

"Quando um produto de luxo se populariza, se democratiza, automaticamente deixa de ser produto de luxo. A premissa rege esse universo", declara Braga.

Para ser artigo de luxo também é importante ser feito à mão. A indústria do luxo tem ojeriza a processos manufaturados. E não há espaço para matéria-prima de segunda mão. Artesãos do couro e dos tecidos trabalham com os melhores materiais possíveis (pelo menos em tese).

Tamanho esforço resulta num artigo caro, mas em que a marca confia. Muitas empresas dão garantias que vão muito além do que um vendedor de carros oferece.

"Os produtos de luxo normalmente têm garantia ofertada pela casa. Se acontecer alguma coisa com uma bolsa ou baú da Louis Vuitton depois de 30 anos, será feita uma revisão e o conserto — normalmente sem custo. Essas sutilezas geram fidelidade", afirma João Braga.

Fendi - Reprodução/Farfetch - Reprodução/Farfetch
Sapato de camurça usado por Faustão e que surpreendeu pelo preço
Imagem: Reprodução/Farfetch

Simples e difícil

As mãos mais habilidosas, os designers inovadores e as melhores mentes da indústria da moda juntam forças para entregar um produto simples, conta Arlindo Grund. Consultor de imagem e moda e apresentador do "Esquadrão da Moda", no SBT, ele diz que alcançar esse resultado não é fácil.

"Luxo é simples e confortável. Mas, quanto mais simples e confortável, mais difícil de se fazer."

A jornalista e curadora Lilian Pacce acrescenta que, além de preencher todas as premissas acima, as empresas de luxo precisam cumprir a agenda de ESG (Environmental, Social and Corporate Governance). A sigla para o assunto do momento no mundo corporativo significa governança ambiental, social e corporativa e engloba uma série de valores a serem respeitados.

"Ser original e exclusivo conta. Precisa ter essas noções todas embutidas, mas só isso não basta. É importante a marca aplicar o ESG ponta a ponta. Não só contratar modelos diversas, mostrando que não trabalha apenas com modelos brancas e magras. Não pode ser só fachada, precisa ser o processo inteiro", explica Lilian.

O consumidor da moda de luxo pressupõe que a cadeia toda seja remunerada de forma correta e cause o menor impacto ambiental possível. Pelo menos na teoria, não há espaço para trabalho escravo, infantil e destruição da natureza.

Crocs - Reprodução  - Reprodução
Crocs faz parceria com Balenciaga, vira artigo de luxo e custa R$ 3,4 mil
Imagem: Reprodução

Construindo reputações

Em 2019, Rihanna lançou sua marca de luxo de roupas, a Fenty. A cantora estava muito bem acompanhada. Juntou forças com a LVMH, um conglomerado que inclui Louis Vuitton, Christian Dior e Tiffany & Co. Deu tudo errado. Em menos de dois anos, o projeto foi "descontinuado", para usar o jargão do mercado, um grande eufemismo.

Arlindo Grund usa o exemplo para mostrar como é difícil construir uma marca de luxo. Não basta dinheiro e rostos famosos. A fórmula já havia falhado com Victoria Beckham, que lançou sua marca em 2008 e até hoje está no prejuízo. Os produtos precisam ter história e valores reafirmados décadas a fio.

Segundo Grund, uma marca lançada hoje precisa contar uma história, precisa ter pessoas que a chancelem, precisa ter estratégia de comunicação e, acima de tudo, deixar claro seu propósito e valor moral e de vida.

O shopping Cidade Jardim é um pedaço de São Paulo com cara de clube de golfe. Há verde para todo o lado e a praça de alimentação fica num terraço repleto de restaurantes estrelados.

As lojas montadas em shoppings assim têm projeto arquitetônico de mesmo quilate, e isso custa muito. Outro pilar da construção de uma marca é o trabalho de marketing com consumidores potenciais. Ele é personalizado e também não é barato. Inclui mimos como fechar restaurantes chiques para tratar meia dúzia de clientes (e influenciadores) a pão de ló.

Todo esse caminho precisa ser percorrido para uma marca se estabelecer. O caso de Rihanna também revela como o mercado é voltado para pessoas mais velhas, afirma Arlindo Grund. Em sua visão, é mais difícil (mas não impossível) a geração Z ter dinheiro para pagar pelos artigos. De todo modo, a indústria do luxo é desejada: se o jovem não consegue não pagar por eles, paga pelos falsificados.

Este fato explica por que algumas marcas mudaram a forma com que usam as redes sociais. A Balenciaga deletou os posts do Instagram, Twitter e Facebook. Hoje, o Instagram da empresa tem dois posts — uma foto e um vídeo com Crocs salto alto.

Até ele custa mais do que a maioria pode pagar, US$ 625 (R$ 3,4 mil). A indústria da moda de luxo, com suas premissas de tradição e exclusividade, é um ramo em que nem o crocs cabe no bolso.