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Treino de sumô em São Paulo: 'Tem gente que não vai andar direito amanhã'

Treino de sumô no centro esportivo Mie Nishi, na zona norte de São Paulo: é o único ginásio público para prática da luta fora do Japão - André Porto/UOL
Treino de sumô no centro esportivo Mie Nishi, na zona norte de São Paulo: é o único ginásio público para prática da luta fora do Japão
Imagem: André Porto/UOL

Claudia Branco

Colaboração para o TAB, de São Paulo

27/10/2021 04h00

O treino gratuito de sumô estava marcado para as 9h do domingo (24). Fazia frio e chovia. Quase dois anos depois, seria a retomada dos treinos semanais de um esporte de contato cercado por mitos e desinformação no Brasil.

A reportagem se adianta em conhecer o dohyo (ringue) e torce para que alguém apareça no ginásio Mie Nishi, centro esportivo do Bom Retiro, no centro de São Paulo. Com 1,91m e 120kg, Wellington Bezerra, 37, é o primeiro a chegar. Comunicativo, é considerado alto para o sumô brasileiro. Na categoria profissional japonesa, os lutadores são bem maiores e mais pesados.

Um gatinho tricolor se espreguiça e passeia pelas arquibancadas. Seu nome, segundo um funcionário do ginásio, é Pequenino. Japoneses amam gatos, mas o bichano pertence à equipe de baseball que treina ao lado.

Sem nenhum traço oriental, Wellington é fã da cultura japonesa desde criança e cismou com o esporte após perder para um lutador bem menor e mais leve. Abraçou o sumô há seis anos e se apresenta como secretário de comunicação da Confederação Brasileira de Sumô.

sumô - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Roberta Garcia, o sensei John Kioshi Shimazari e Whelington Bezerra no treinamento de sumô no centro esportivo Mie Nishi, em São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

Papo vai, papo vem, avistamos Sensei, como chamam o professor, tentando fugir da reportagem do TAB. Sua imagem é oposta ao estereótipo preconceituoso que leigos têm de lutadores de sumô. Com aproximadamente 80 kg distribuídos em 1,70m de altura, Sensei é um senhor magro de músculos definidos que quase passa despercebido. Quando abordado, diz que Wellington comandará o treino.

Existe um Pelé do sumô?

"São coisas diferentes, isso não existe", corta Sensei. Mas afirma que nunca existirá alguém como Hakuho, o mais condecorado do Japão, que se aposentou em setembro, aos 36 anos. Em janeiro, Hakuho testou positivo para o coronavírus. O assunto entre as pessoas ali, claro, é sempre o sumô. Vai do preço das faixas ao doping no leste europeu, passando pelo jejum praticado por profissionais japoneses para evitar vômitos antes das lutas.

O engenheiro civil Guilherme Dias, 28, descobriu o sumô amador no final de 2019, após ler uma reportagem, mas daí veio a pandemia. Diz que comeu apenas umas torradinhas naquela manhã. Fernanda Rojas, uma atleta mais experiente, apenas acha graça. Se não comer, desmaia.

Ao perceber que a reportagem apenas observa as cenas, sem gravar, o Sensei fica mais à vontade e revela a idade: 50 anos. Ao todo, aparecem para treinar nove lutadores, a maioria iniciantes, prontos para começar. Só que não. A faixa de alguns está ao contrário. Tem que fazer tudo de novo. Passa entre as pernas, amarra na cintura. Não dá para amarrar sozinho.

Com um boné azul onde se lê "Alô mãe", Leonardo Santos observa de longe. Seu apelido é Brigadeiro e está na faixa dos 30. Está parado há três anos. "Quero ver se vai voltar mesmo ou é só firula", provoca Sensei. Ele conhece Brigadeiro de outros tempos, quando treinava ainda garoto com outro amigo que, "infelizmente, foi para o outro lado".

sumô - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Treino de sumô no centro esportivo Mie Nishi, na zona norte de São Paulo
Imagem: André Porto/UOL
Treino de sumô no centro esportivo Mie Nishi, em São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Imagem: André Porto/UOL

Às 9h15, o grupo sobe no dohyo e quando a série de exercícios começa, não há dúvidas de quem é o mestre: Sensei é John Kioshi Shimazaki, mais de quatro décadas de prática, agora mais solto.

Todos vidrados no sumô

Três funcionários da limpeza estão num canto observando. É a primeira semana de Ana Claudia Nascimento trabalhando no parque. Ela grava um vídeo para mostrar para a filha e comenta que nunca tinha visto uma aula de sumô, "só Jackie Chan mesmo". "Mas aquilo lá é ficção, minha filha. Aqui é de verdade", rebate sua colega Cida dos Santos, enquanto segura um rodo.

Concentrados, os lutadores fazem movimentos repetidos e lentos. Em pé, com as pernas afastadas e as mãos nas coxas ou joelhos, com um pé firme no chão, levantam o outro no ar. Estendem o joelho da perna que está no chão e trazem o outro pé com força para dentro do ringue. Esse movimento melhora a força da parte inferior do corpo. Brigadeiro sua às bicas. "Tem gente aqui que não vai nem andar direito amanhã", ironiza o mestre, fazendo uma invejável abertura de pernas.

Depois começam os movimentos ritmados, quando os lutadores jogam o corpo de um lado para o outro. Seu nome é butsukari-geiko, o mais desgastante do treino. Exausto, Brigadeiro faz uma pausa e recebe o apoio da esposa, que acompanha tudo da arquibancada. É uma pausa rápida.

Sensei agarra uma vassoura especial e varre o dohyo — parte da tradição.

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Fernanda Rojas coloca nawashi em Vanessa Kelly para o treino de sumô no centro esportivo Mie Nishi, em São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

A presença de mulheres também chama a atenção da dupla de limpeza que achava que sumô era "coisa somente de homens gordos". A atleta Fernanda Rojas, 42, está ali provando que não. Formada em Física, atua na área médica como especialista em radiodiagnóstico. Ela também estampa o pôster enorme que ocupa uma das paredes do ginásio, anunciando o já ultrapassado campeonato brasileiro de 2019. Tem 1,62m de altura, 95 kg e se prepara para o campeonato brasileiro que acontece em novembro.

Após os exercícios, a luta

O objetivo é empurrar o oponente para fora do ringue ou forçá-lo a tocar o chão com qualquer parte do corpo que não seja a planta dos pés. Com as pernas vermelhas, sangue circulando forte, Fernanda afirma que está de boa e não vai lutar — se recupera de uma cirurgia no joelho. Mas muda de ideia cinco minutos depois. "Não aguenta ficar só olhando", comenta o Sensei com um olhar nada surpreso.

Whellington Bezerra, no treinamento de sumô no único ginásio público para prática da luta fora do Japão. O ginásio fica no centro esportivo Mie Nishi, na zona norte de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Whellington Bezerra, no treinamento de sumô
Imagem: André Porto/UOL
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Treino de sumô no único ginásio público para prática da luta fora do Japão. O ginásio fica no centro esportivo Mie Nishi, na zona norte de São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

No ringue, agacha-se o máximo que pode antes de "explodir" para cima da adversária. Luta de um jeito diferente. Na pandemia, Fernanda tirou um tempo para si e focou em outros esportes, como natação. Agora vai correr atrás da parte mais técnica, no dohyo, para acostumar o corpo novamente. No mundial de 2019, em Osaka, Fernanda ficou em quinto lugar. No Brasil, a atleta é a principal referência feminina no esporte e tem vários títulos.

O sal jogado no dohyo anuncia a abertura de mais uma luta. "Ele tem um defeito: é muito bonzinho", diz Sensei sobre Wellington, suando na arena contra Brigadeiro. É preciso exercitar bastante pescoço e pernas para recuperar o condicionamento de um ano e oito meses atrás. Ao final, um dos competidores tenta limpar as costas do outro com uma toalha espalhando ainda mais areia, mas Sensei interrompe para mostrar como se faz.

Sal usado para jogar no dohyo antes das lutas de sumô, no centro esportivo Mie Nishi, em São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Sal usado para jogar no dohyo antes das lutas de sumô
Imagem: André Porto/UOL

Boa sorte felina

Vacina em dia. Máscara no rosto. Shorts colados com uma faixa grossa entre as pernas e amarradas na barriga. Após três horas, o treino chega ao fim. "Estamos com o corpo vivo em vez de morto porque sentimos cada músculo", brinca Fernanda. Bem diferente dos meses em que o grupo treinava online.

Após tempos de incerteza, o único ginásio do mundo dedicado ao sumô fora do seu país de origem completa dez anos em 2021. O dia nublado dá lugar a um céu de brigadeiro e o skate toma conta da pista de esportes radicais.

E por onde anda Pequenino? No Japão, felinos são reverenciados por trazer boa sorte. Segundo um funcionário no dia seguinte ao treino, Pequenino continua circulando por ali.

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O gato Pequenino anda pelo parque: no Japão, acreditam que eles trazem boa sorte
Imagem: André Porto/UOL