'Estabelecer a verdade': IML de BH examina os 26 cadáveres de Varginha
Era domingo, antevéspera de Finados, quando o médico-legista José Roberto de Rezende, 51, leu as primeiras notícias sobre a operação policial em Varginha (MG). Ato contínuo, foi acionando os colegas no grupo de WhatsApp do IML (Instituto Médico Legal) de Belo Horizonte, onde ocupa a função de assessor especial da diretoria. Pela previsível repercussão da ação, uma das mais letais da história, era provável que os especialistas da capital fossem convocados a prestar algum auxílio técnico.
Nas horas seguintes, detalhes do ocorrido surgiram: a Polícia Militar e a Polícia Rodoviária Federal estavam acompanhando a movimentação de uma suposta quadrilha de assaltantes de banco, que teria planos de agir na região. As informações davam conta de que o grupo se concentrava num sítio em Varginha, e a polícia foi ao encalço do grupo. Naquela madrugada, as equipes chegaram ao local e, segundo afirmam, foram recebidas a tiros, revidando à altura. Todos os vinte e seis homens que se encontravam no sítio foram baleados e, ainda de acordo com a PM, foram levados com vida ao hospital de Varginha, mas não resistiram aos ferimentos. Armamentos pesados e explosivos foram encontrados no sítio. Nenhum policial se feriu durante a operação.
A intuição de Rezende se cumpriu. Varginha, cidade de 136 mil habitantes, não tem câmaras frigoríficas suficientes para alojar tantos cadáveres, nem capacidade técnica para realizar, em tempo hábil, as necropsias necessárias. O IML de BH foi então avisado que os corpos seriam transferidos para a capital para identificação e exames, viagem que leva, em média, 4h30 de carro.
Enquanto Rezende e seus colegas mobilizavam uma força-tarefa para lidar com um número tão grande de falecidos, as notícias corriam. O governador mineiro Romeu Zema (Novo) saudava "os heróis envolvidos" na operação. A deputada estadual Andréia de Jesus (PSOL), por sua vez, cobrava investigações rigorosas que esclarecessem as mortes. Entre os internautas, havia quem celebrasse os "CPFs cancelados" e os que questionavam a letalidade da ação policial.
Rezende garante que os laudos do IML irão "estabelecer a verdade dos fatos". A partir da análise dos cadáveres, os legistas buscarão precisar, entre outros detalhes, se alguns dos 26 homens dispararam suas armas na madrugada da operação; se os tiros que os alvejaram partiram de grande, média ou baixa distância; e determinar a hora aproximada dos óbitos, o que pode esclarecer se eles realmente chegaram a ser socorridos com vida.
Os laudos do IML de Belo Horizonte serão usados pelas Polícias Federal e Civil na investigação das mortes e para determinar se a operação em Varginha se deu ou não dentro do rigor da lei.
A morte como rotina
Depois de se comunicar com os médicos de Varginha, a diretoria do IML mobilizou seus profissionais para o trabalho.
Ainda no final da manhã de domingo, 15 médicos-legistas do instituto foram convocados, e outros 25 funcionários, entre peritos criminais, auxiliares de necropsia, membros do serviço social, escrivães, prestadores de serviços gerais e outros foram chamados para lidar com questões técnicas, emotivas e burocráticas que acompanhariam a chegada dos corpos.
Às 20h, um primeiro rabecão carregando oito corpos chegou ao IML de BH. Cinco horas depois, à 1h da manhã da segunda-feira (1), outros dois veículos entregaram os cadáveres restantes.
Em um dia normal, entre 15 e 25 corpos aportam no necrotério de BH. Todos são consequências de mortes violentas: acidentes de trânsito, possíveis suicídios, feridas pérfuro-incisas (facadas) e pérfuro-contusas (tiros de armas de fogo), entre outros incidentes. Naquele domingo, o fluxo diário foi colocado em espera, e a prioridade foi dada ao exame dos mortos de Varginha.
Os peritos trabalharam noite adentro. Após disporem os cadáveres nas mesas de perícia do necrotério, papiloscopistas coletaram impressões digitais dos mortos, e as suas características dentárias foram catalogadas por odontolegistas. A comparação dessas evidências com os bancos de dados da Polícia Civil é etapa crucial para a identificação dos cadáveres, que pode ser rápida. Em alguns casos, porém, leva semanas e mesmo meses para ser concluída.
Até a quinta-feira (4), quando o TAB visitou o IML, 25 dos mortos já haviam sido identificados. Segundo a Polícia Civil, o último corpo foi identificado no sábado (6). Só após a identificação os demais detalhes das mortes são levantados, submetendo-se os cadáveres ao raio-X e à tomografia — número e local exato dos tiros, danos internos causados pelos projéteis etc. Como os resultados alimentarão a investigação das polícias, o IML não divulgou ainda os laudos à imprensa.
Mesmo antes dos exames no instituto, corriam na internet informações sobre a identidade dos mortos, e muitos familiares entraram em contato com o IML em busca dos seus. Rezende, que trabalha ali há 25 anos, admite que nunca se acostumou à morte, embora goste e se orgulhe da profissão.
"Lidamos grande parte do tempo com a tristeza, com a face feia da vida. Cenas chocantes, odores impactantes, dramas familiares... E, ao contrário do que muitos pensam, não ficamos 'vacinados' com essas coisas. É exatamente o contrário. Com a maturidade, a gente se sensibiliza com situações que, no passado, enxergava como puramente técnicas. Todos esses crimes, essas situações do trabalho, são sim perturbadoras."
Uma maneira de enfrentar essa carga dramática, conta Rui Lopes Filho, atual diretor do IML, é encarando de maneira científica seu objeto de estudo, exprimindo, nos laudos, não um juízo moral sobre a condição das mortes, mas os detalhes técnicos que a cercam.
"Buscamos pensar tudo de maneira científica, separando a parte técnica do que há de chocante no dia a dia da profissão. Ao final do trabalho, produzimos uma análise técnica e estabelecemos a causa médico-legal das mortes; a análise jurídica do que aconteceu e a possível culpa cabe à investigação policial e ao juiz."
Se os laudos do IML sempre se dão em situações-limite, podendo impactar na vida dos familiares dos mortos e em investigações, o caso de Varginha é ainda mais delicado. Rezende garante, contudo, que o instituto não deixa ser tomado por pressões.
"Sempre que lidamos com casos dessa monta, sabemos que será difícil do ponto de vista técnico, humano, político e midiático. Mas, sobretudo, que será doloroso para as famílias dos mortos. Não cabe à medicina legal tomar as dores das famílias ou das instituições que reivindicam isso ou aquilo. A perícia assumirá, nesse caso como em outros, uma posição de autonomia e isenção. Nosso trabalho será retratar de maneira minuciosa os detalhes das mortes dessas vinte e seis pessoas."
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