Mais de 90 anos após criação, direito à meia-entrada ainda gera polêmicas
Não é exagero afirmar que, pelo menos uma vez por ano, o direito à meia-entrada para estudantes volta à pauta pública ou política — tanto para discutir sua efetividade quanto para tentar extingui-lo.
Recentemente, a meia-entrada correu risco de desaparecer após a Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo) aprovar, em 27 de novembro, um projeto de lei de autoria do deputado estadual Arthur do Val (Patriotas), alegando que o benefício é o principal responsável pelo prejuízo econômico da área cultural. Sob protestos, o projeto de lei foi vetado pelo governador em exercício, Carlos Pignatari — o veto, no entanto, ainda pode ser derrubado pela assembleia.
Essa não foi a primeira (nem será a última) vez que o direito à meia-entrada foi discutido. Em 2020, antes da pandemia, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) prometeu rever a meia-entrada no país, em um encontro com cantores sertanejos. Na época, Doreni Caramori, presidente da Abrape (Associação Brasileira dos Promotores de Eventos), classificou a medida como uma "injustiça histórica".
A meia-entrada de estudantes foi criada na virada da década de 1930 para 1940 pela UNE (União Nacional dos Estudantes) como uma forma de ampliar o acesso à cultura desse recorte da população. Desde então, ela foi discutida e ampliada. Em 2005, o STF (Supremo Tribunal Federal) declarou que o direito é constitucional, sob a justificativa de que o interesse em torno da meia-entrada é da coletividade.
Acesso à cultura
Na justificativa do seu projeto de lei, Arthur do Val alegava que, para a meia-entrada existir, uma empregada doméstica supostamente estaria pagando a cota de um estudante de uma faculdade de alto padrão que teria o direito de pagar o valor integral do ingresso. De acordo com o deputado, o valor das entradas em eventos culturais tendem a aumentar por causa do benefício. Ou seja, quem paga a meia, pagaria a metade do dobro, e quem paga a inteira desembolsa ainda mais dinheiro.
"Ele olhou só para o mundo dele", rebateu Rozana Barroso, pré-vestibulanda e presidente da Ubes (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas). "Convido o deputado a vir à periferia, onde veria outro tipo de realidade. Na minha adolescência inteira, só consegui acessar espaços culturais por causa da meia-entrada."
Na mesma linha, Flavia Cale, doutaranda em historia econômica da USP (Universidade de São Paulo) e presidente da ANPG (Associação Nacional de Pós-Graduandos), classificou o projeto de lei como "draconiano e perverso". "Não é a faxineira que vai deixar de ir a um show ou um evento, porque ela já não iria. Quem vai deixar de ir é o filho dessa mulher, da escola pública. (...) Nesse contexto de crise econômica, a meia-entrada ganha ainda mais relevância, porque estamos com um nível absurdo de evasão escolar, quase irreversível. Uma geração inteira corre o risco de não voltar para a escola. Esse projeto vai na contramão disso, porque tira mais de quem já não tem nada", afirmou.
Quem paga?
Atualmente, estudantes, pessoas com deficiência, idosos (pessoas acima de 60 anos) e jovens de 15 a 29 anos de baixa renda têm direito à meia-entrada. Um dos maiores argumentos contra o direito é que ele é o grande responsável pelo custo elevado de ingressos em cinemas, peças e espetáculos. Segundo a UNE, entidade criadora da meia-entrada, antes da pandemia cerca de 47 milhões de estudantes do ensino básico e 8 milhões do ensino superior tinham direito a ele. Os dados são de 2019.
Considerando que mais da metade do público que comprará o ingresso pagará apenas 50% do valor cheio, empresários da área tendem a elevar o preço dos ingressos para garantir a cobertura dos custos e o lucro. Com isso, em tese, todos estão pagando mais do que deveriam.
Para Cris Olivieri, advogada especializada em arte, cultura e entretenimento e integrante do Fórum Brasileiro pelos Direitos Culturais, o projeto da meia-entrada tem boas intenções, mas peca em não fornecer uma contrapartida a produtores culturais e empresários.
"As pessoas não compreendem que a produção cultural é uma atividade séria e complexa. Parece que tudo é festa, mas a festa custa", justificou Olivieiri. "A bilheteria é uma das receitas dos projetos e, portanto, a hora que você obriga à meia-entrada, impacta na construção de tudo isso."
Para a advogada, a falta de incentivos fiscais não compensa a intervenção, obrigando o setor cultural a inflacionar os preços. Ela também acredita que o direito à meia-entrada é usufruído por muito mais pessoas, por meio de fraudes. Por isso, defende que haja uma maior seletividade ao direito da meia-entrada no Brasil, para assim garantir que a cultura chegue a quem realmente precisa.
Fiscalização e falsificações
Ainda que a meia-entrada seja responsável por grande parte dos ingressos de eventos culturais, há uma cota estabelecida por lei federal desde 2013 para que o setor cultural saiba exatamente quantos ingressos serão vendidos pela metade do preço. Em todos os eventos, é obrigatório que 40% sejam reservados à meia-entrada.
Essa cota de ingressos, explica Cale, é o que garante às empresas preverem quanto receberão com a bilheteria. O problema, afirma, é a falta de fiscalização para garantir que a cota seja respeitada e de que não estão aceitando vender meia-entrada a pagantes que não têm a documentação necessária.
Durante a ditadura militar, quando as entidades estudantis foram proibidas de atuar, a emissão das carteiras ficou sob responsabilidade das escolas e universidades, possibilitando a fraude pela falta de padronização. Na época, era possível comprar versões falsificadas em camelôs.
Na redemocratização, as entidades voltaram a emitir a carteira de estudante. Isso aconteceu até meados de 2001, quando foi sancionada uma lei federal que retirou o monopólio das entidades na emissão das carteirinhas.
Foi ainda mais fácil falsificar carteirinhas ou emití-las sem precisar comprovar de que é estudante, como duas repórteres da Folha de S.Paulo conseguiram provar, em 2006, em uma Blockbuster (antiga rede de locadoras, hoje extinta).
Atualmente, a emissão das carteirinhas é feita por meio da UNE, Ubes, ANPG e diretórios acadêmicos. "O que tem sido um problema em torno da meia-entrada é a falta de fiscalização. Nós fizemos um esforço nos últimos anos para padronizá-la, criando um documento altamente complexo e tecnológico, que não é passível de falsificação e corrupções. O certo é não abrir margem e aceitar concender meia-entrada a quem apresenta boleto ou declaração, porque é aí que dá problema", explicou a presidente da ANPG.
Se cair a meia-entrada, o preço cai junto?
Argumento comum usado para justificar o fim da meia-entrada, a queda dos preços dos ingressos seria uma vantagem. No entanto, para as representantes das entidades ouvidas pelo TAB, não há qualquer garantia de que os valores sejam reajustados para baixo com o fim do benefício. O risco, inclusive, é que a frequência caia ainda mais e o acesso à cultura seja ainda mais restrito para estudantes e outros beneficiados de baixa renda.
"Nesse momento de agravamento de desigualdade social, por que dificultar o pouco acesso que esses jovens têm? A cultura é uma extensão da educação", afirmou Barroso, presidente da Ubes.
Assim como não houve redução no valor das passagens de avião depois que as companhias aéreas passaram a cobrar pelas bagagens, é possível que ocorra o mesmo com o setor cultural.
No longo prazo, afirma a presidente da ANPG, a meia-entrada é o que garantirá a formação de público de eventos culturais nos próximos anos. "O jovem que consome cultura será um adulto que consome cultura", disse.
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