Tempestade de poeira deixa rosto maquiado, tinge cabelo de ruivo e fecha BR
No alto do morro pelado, Luiz Vezaro manobra o trator e arranca o pasto. "O patrão mandou gradear o terreno para plantar eucalipto e soja. O gado não está dando dinheiro, não. Agora é só lavoura", resume sua função naquela fazenda em Nova Alvorada do Sul, cidade a 110 quilômetros de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul.
Uma nuvem vermelha cerca Vezaro e não é só aquela que seu trator arrastava. Horas depois, ela seria notícia em todo o país: a tempestade de poeira atravessou o Estado e provocou prejuízos incalculáveis e seis mortes, após virar um barco em Corumbá, mais ao norte. Antes fenômenos climáticos de que só se ouvia falar na Ásia ou na África, esses paredões de até 15 quilômetros de altura e partículas em suspensão estão cada vez mais comuns em rincões que são paraísos do agronegócio brasileiro.
As causas estão sendo estudadas e são várias, desde mudanças no uso do solo até o aquecimento global. Já as consequências são bem fáceis de perceber. "Minha mulher fica doida com esse poeirão todo. Até fechando janela e porta, tem de varrer a casa várias vezes no dia. Suja até dentro dos armários", conta Vezaro.
Ele desce do trator e brinca com os três cachorros encardidos que perseguem o dono motorizado. "Olha que deu uma chuvinha ontem de manhã, mas o sol tava tão forte hoje que secou a terra." Vezaro esfrega os olhos num rosto que parece maquiado em tons terrosos e com cabelo e barba tingidos de ruivo pela ventania. "Os olhos ardem muito. É muito ruim para trabalhar."
A tormenta assobia no seu ouvido, mas ele parece não entender que faz parte do que o atormenta, afinal, a terra exposta ao calor é um dos fatores desse evento.
A rodovia BR-163, que liga o Pará ao Paraná, passa do lado da propriedade. Por lá, carretas repletas de grãos somem no meio da névoa de saibro, que engole campos, matas e colinas ao redor. "Tivemos que parar porque não dava para ver nada, e o motor do carro estava querendo falhar", disse Luzia Campos, que voltava com a família de Sinop (MT) para Alto Piquiri (PR) por essa estrada e parou em um posto para evitar perigos maiores.
Sujeira no ventilador
O período de estiagem na região central do Brasil costuma terminar em setembro com a chegada da primavera e os temporais típicos dessa época. Não foi o que aconteceu nos últimos dois anos. Em 2021, a seca entrou novembro adentro. A combinação de solo seco com os vendavais que antecedem a chegada das frentes frias foi a razão inicial da aparição dessa espécie de haboob, termo em árabe que significa "o destruidor" e denomina as tempestades de areia tão frequentes em desertos como o Saara.
"É um círculo vicioso. Se chove pouco, o solo fica seco. E, se não há umidade no solo, chove pouco. E quando os ventos chegam a 70 quilômetros por hora e encontram a seca prolongada e a terra mexida, surge algo que era muito raro no Brasil", afirma o meteorologista Marcelo Seluchi, coordenador-geral do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais).
Seluchi aponta que há oscilações de um ano para o outro, mas olhando ao longo das décadas se percebe a correlação entre retirada da cobertura vegetal e diminuição dos índices pluviométricos. "Reverter isso agora é muito difícil, mas o campo precisa aproveitar melhor os espaços e diminuir o desperdício para alimentar a população, sem afetar tanto esse equilíbrio climático", diz o meteorologista.
Além do desmatamento contínuo nos últimos 80 anos, Seluchi lembra de uma circunstância pontual: La Niña, o fenômeno natural que consiste na diminuição da temperatura da superfície das águas do Oceano Pacífico que provoca uma série de mudanças nos padrões de chuva e temperaturas na América do Sul. Estiagens longas em áreas cultiváveis que tinham chuvas regulares são consequência da La Niña atual, que já dura dois anos e deve seguir até meados de 2022.
As precipitações reduzidas desde 2020 amplificaram primeiramente os efeitos das crescentes queimadas no Pantanal e na Amazônia. Em 2021, a novidade ficou por conta das tempestades de poeira. As chuvas negras (com fuligem dos incêndios, como caíram na cidade de São Paulo em 2020) e as nuvens vermelhas empurram para as cidades um clima apocalíptico, numa era de caos ambiental no campo.
De volta ao pó
"Essa névoa tá tão forte que mal dá pra ver a fumaça do carvão subindo", reclama o churrasqueiro Eliseu Souza, preparando costela assada para o almoço de quem transita pela BR-163. Ele fecha rapidamente as janelas para a poeira não formar uma crosta nas mesas, pratos e grelhas do restaurante.
A primeira dessas muralhas poeirentas a chamar a atenção aconteceu no início de outubro e cobriu cidades do oeste paulista, como Franca, Ribeirão Preto, Araçatuba e Presidente Prudente, causando quatro mortes e chegando até o Triângulo Mineiro. O dia virou noite e uma montanha rubra encobriu essas áreas urbanas, em que menos de 10% do solo mantém a vegetação nativa.
Em meados de outubro, foi a vez de o fenômeno atingir o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul, com ventos de até 90 km/h, causando estragos e vitimando seis turistas que estavam em um barco-hotel para uma pescaria no Pantanal. No início de novembro, uma intensa neblina de pó apagou o horizonte das cidades paulistas de Bauru, Marília e Ourinhos.
A destruição de grandes trechos da floresta amazônica também reduz o regime pluviométrico nessas áreas do Sudeste e Centro-Oeste, por causa da redução dos chamados "rios aéreos", as nuvens formadas no Norte que carregam muita água em direção ao Sul do País.
Chuva de sopa
O pó do solo seco subiu com o vento e desceu com a chuva. Mas não só ele: teve as cinzas das queimadas após a colheita da cana-de-açúcar. Pesquisadores do campus de Ribeirão Preto da USP (Universidade de São Paulo) encontraram 15 vezes mais resíduos de solo e 50 vezes mais marcadores de queimada em amostras de chuvas posteriores às nuvens vermelhas na região.
A professora Lúcia Campos, do departamento de Química da USP, classificou como "uma verdadeira sopa" o que deveria ser um aguaceiro.
Tanto no Mato Grosso do Sul quanto em São Paulo, há uma lenta e progressiva troca dos pastos para o gado pelas lavouras mecanizadas. Em plantações como de cana ou milho, a palhada que sobra até ajuda a manter o chão úmido e rico, evitando um solo totalmente exposto. Mas muitos proprietários queimam isso e revolvem a terra para o plantio seguinte, oferecendo material farto para as tempestades de poeira.
Com as chuvas demorando a vir na primavera, a semeadura do chão também atrasou, e a terra vermelha e argilosa foi ganhando uma camada superficial de pó, de tanto ser exposta ao sol.
Deserto vermelho
Se o aquecimento global continuar no ritmo atual, os especialistas advertem que os eventos extremos serão cada vez mais comuns, com longas secas e grandes enchentes substituindo um padrão climático mais equilibrado.
Essa mudança é percebida por todos. "Aqui no Mato Grosso do Sul, o mês de agosto era a melhor época de soltar pipa porque tinha muito vento. Agora é o ano todo. E esse final do ano está muito esquisito", conta Luciana Bueno, que trabalha como faxineira terceirizada em um posto na cidade de Rio Brilhante (MS). "Hoje, é a terceira vez que passo pano e não vai ser a última", queixa-se, limpando o chão dos banheiros para os clientes.
O tratorista Vezaro sofre com dor de garganta e cabeça no meio de tanto pó no morro careca. "Dá uma pena ver como ficou", lamenta. A fazenda foi comprada neste ano por um empresário da cidade vizinha que queria variar os investimentos, achou pouco o retorno da pecuária e mandou tirar o pasto.
"Fico só torcendo para as chuvas chegarem logo e acabarem com essa situação. Até a rodovia fecha com tanta poeira no ar", diz o agricultor. Sofrem ali também as curicacas, aves de bico longo que costumam se alimentar dos insetos presentes na vegetação rasteira. Com o ambiente devastado à frente, três delas ficam empoleiradas em cima de um arado de trator e observam o que era um gramado e virou um deserto vermelho.
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