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Na Praça Roosevelt, artistas celebram a vida no Dia da Visibilidade Trans

A cantora Renata Peron, uma das atrações do SP Transvisão - Gabi Di Bella/UOL
A cantora Renata Peron, uma das atrações do SP Transvisão
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Do TAB, em São Paulo

30/01/2022 10h04

Renata Peron, 44, escolheu cantar "Balada de Gisberta" para homenagear as amigas que já morreram. Sentada num banco, em frente a uma parede de espelho, a paraibana se arrumava num camarim da SP Escola de Teatro, na praça Roosevelt, no centro de São Paulo, para um show coletivo na noite de sábado (29), Dia da Visibilidade Trans.

Gisberta, que dá nome à música, era transexual, como Renata, e foi assassinada em fevereiro de 2006 na cidade do Porto, em Portugal, por adolescentes que a espancaram e torturaram ao longo de uma semana. O crime brutal chocou pessoas no mundo inteiro. Ela se tornou um símbolo da história do Movimento LGBTQIA+ e pode virar nome de rua em Portugal.

A história de Gisberta inspirou o compositor português Pedro Abrunhosa a escrever a canção que Renata Peron cantaria aquela noite. "Maria Bethânia deu voz a essa poesia linda. E eu amo Bethânia. Por isso me dei o direito de cantar esse hino", explicava ela, que se divide entre a carreira de cantora e de coordenadora na Secretaria Municipal de Esportes.

Com longos cílios postiços e terminando de retocar a sombra nos olhos, Renata parava a maquiagem para reforçar que aquela era uma noite "não só de celebração, mas de conscientização". Em 2007, ela própria fora vítima de transfobia: atacada e espancada por nove homens, na praça da República, levou um chute na barriga que causou a perda de um dos rins.

"É simbólico estarmos hoje aqui, na Roosevelt, fazendo esse evento. A praça foi por muito tempo um local de prostituição e tráfico, aqui havia muita travesti. Essas pessoas foram expulsas quando revitalizaram a praça. A Escola de Teatro abriu portas para que muitas meninas ficassem aqui, trabalhassem aqui", conta Renata. "Estar aqui é resistir. Porque não é todo mundo que nos quer por perto."

Paraibana radicada em São Paulo, Renata é cantora e assistente social - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Paraibana radicada em São Paulo, Renata é cantora e assistente social
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

Portas abertas

O "Show de Variedades", com seis atrações naquela noite, faz parte da programação do SP Transvisão — evento comemorativo pela semana da visibilidade trans, organizado pela SP Escola de Teatro e outras entidades ligadas aos direitos humanos e à defesa da diversidade sexual e de gênero.

O projeto realiza anualmente, há dez anos, uma série de debates e apresentações culturais em defesa dos direitos da população T, com a presença de quem vive, frequenta e trabalha naquele entorno. Antes um espaço degradado e violento, a Roosevelt é hoje um dos principais polos do teatro paulistano.

Enquanto as artistas se preparavam num camarim e faziam ensaio de luz para subir ao palco, a dois prédios dali um documentário era exibido no recém-inaugurado Cine Biju, com depoimentos recontando a história de mobilização do SP Transvisão. Um deles, em especial, partia da transexual que foi símbolo da Roosevelt no início dos anos 2000. "Para aquelas jovens ou aquelas para quem ainda não tive a honra de dizer 'sou Fulana, me respeitem', eu digo: unidas venceremos, porque espalhadas nada seremos", afirmava a atriz Phedra de Córdoba, numa fala gravada na primeira edição do evento.

Cubana radicada no Brasil desde a década de 1960, Phedra começou a carreira numa companhia de dança em Cuba -- naquela época, ainda com identidade masculina. Em 1958, na Argentina, durante uma turnê, conheceu o diretor Walter Pinto, que a trouxe para o Brasil para trabalhar em teatro de revista. Nos anos 1970, Phedra integrou o elenco de "Vestido de Noiva", escrita por Nelson Rodrigues e dirigida por Ziembinski.

Mas foi no início dos anos 2000 que a atriz chegou à Roosevelt, ao estrear na companhia Os Satyros, com sede na vizinhança, na peça "A Filosofia na Alcova". "No dia da estreia, as pessoas aplaudiram de pé", lembrou, numa entrevista em 2015, a mulher que passou a ser chamada de "Diva da Roosevelt", figura sempre presente nas atividades artísticas e na noite boêmia da região. Morta em 2017, aos 78 anos, por complicações de um câncer, a atriz teve o corpo velado no palco d'Os Satyros e parte de suas cinzas foi jogada na praça.

Bastidores do SP Transvisão - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Bastidores do SP Transvisão
Imagem: Gabi Di Bella/UOL
Bastidores do show de variedades do SP Transvisão - Gabi Di Bella/UOL - Gabi Di Bella/UOL
Bastidores do show de variedades do SP Transvisão
Imagem: Gabi Di Bella/UOL

'Ser travesti é ter amor'

No meio de uma fumaça artificial, já dentro do teatro onde poucos minutos depois começariam os shows, a atriz e bailarina Marcia Dailyn, 42, organizava o roteiro que usaria para apresentar as atrações. "Fico muito emocionada", contava. "Não consigo estar aqui e não lembrar da minha querida, minha amiga Phedra. Ela foi minha madrinha, a mulher que primeiro abriu as portas para artistas transexuais como eu."

Também atriz d'Os Satyros, Marcia interpretou a própria Phedra em espetáculo biográfico sobre a cubana. "Ela me dizia para que a gente nunca esquecesse o nome dela."

Primeira bailarina trans do Theatro Municipal de São Paulo, Marcia Dailyn também ensaiou seu número para a noite. "Vou fazer dublagem em homenagem ao filme 'Flashdance', que marca minha vida. Vou dublar 'Glória', essa música fala em celebrar", explicava. "Temos saúde, glória. Estou viva, Glória", emendava, chorando.

A atriz subiria ao palco, mais tarde, com um biquíni prateado, repleto de pedrarias, e enrolada em uma espécie de casaco de pele, na cor rosa. "É uma borboleta, representando nossa metamorfose", contou, referindo-se à transexualidade.

A atriz e bailarina Marcia Dailyn - Gabriela Di Bella/UOL - Gabriela Di Bella/UOL
A atriz e bailarina Marcia Dailyn
Imagem: Gabriela Di Bella/UOL

Às 20h, apesar da chuva que caía na cidade, um público de cerca de 60 pessoas aguardava os shows.

Uma mulher da plateia pediu, antes do início das apresentações, para falar ao microfone e homenagear outra amiga. Entregou a ela um buquê de flores e explicou a razão: "Somos amigas há muitos anos, hoje tenho 60, e ser travesti é ter amor. Superei e vivi uma ditadura, vivi o HIV, vivi também a covid-19. E estou aqui para dizer: 'Vamos nos unir, vamos nos aplaudir'. Visibilidade trans é isso."

Na sequência, começando o show, a voz de Renata Peron ecoava dentro do teatro: "Perdi-me do nome, hoje podes chamar-me de tua. Dancei em palácios, hoje danço na rua. Vesti-me de sonhos, hoje visto as bermas da estrada". "Balada de Gisberta" dava conta de relembrar dores e mortes que acompanham, ao longo dos anos, a vida de pessoas trans.

Os versos tristes, dizia mais cedo a cantora, no camarim, servem de alerta, mas, principalmente, fortalecem a luta. "A gente não quer e não vai morrer mais", frisava. Aquela noite de festa começava.