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Com participação de PM, concurso em SP celebra beleza masculina trans

Participantes do primeiro concurso de beleza de homens transexuais desfilam no palco do Teatro Santo Agostinho em SP - Fernando Moraes/UOL
Participantes do primeiro concurso de beleza de homens transexuais desfilam no palco do Teatro Santo Agostinho em SP
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Marie Declercq

Do TAB, em São Paulo

12/11/2021 04h01

"Ajeita a coluna, cuidado com os braços e vai." Seguindo as instruções de um especialista em concursos de beleza, Mikael Honorato desfilou tímido pelo jardim lateral do hotel. O sol do final da tarde garantia os últimos minutos de calor do domingo, mas o rubor da face do jovem de 25 anos não tinha a ver com isso. Honorato, ao lado de 25 participantes, concorria ao título de Mister Brasil Trans.

O evento, que aconteceu de 6 a 9 de novembro, consistia numa série de provas e atividades que avaliavam a aptidão dos homens em esportes, desfiles, oratória e show de talentos. No último dia, com uma festa, revelou-se o ganhador.

Na comunidade LGBTQIA+, concursos de beleza vão além da coroação do "mais bonito". Desde o final dos anos 1970, essas competições viraram uma forma de celebração, especialmente da beleza não tradicional, aquela que não é reconhecida pela sociedade.

O Mister Brasil Trans é um dos primeiros do mundo reservado apenas aos homens transexuais. "Ainda é preciso dar visibilidade para a transmasculinidade brasileira", explica Leonardo Morjan Britto Peçanha, especialista em gênero e sexualidade pelo IMS-UERJ (Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro), que acompanhou o concurso nos bastidores.

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O policial militar Mikael Honorato se prepara para o desfile. O jovem, de 25 anos, é o segundo homem trans reconhecido dentro da PMESP
Imagem: Fernando Moraes/UOL

'Eu existo'

O nervosismo de Honorato era compreensível: além da responsabilidade de estar no primeiro concurso que celebra a beleza dos homens trans, a participação também jogaria luz sobre uma parte importante de sua vida. Desde 2019, ele é o segundo homem trans reconhecido dentro da Polícia Militar do Estado de São Paulo. "Pensei em ficar escondido, mas esse concurso vai ser uma forma de dizer 'oi, eu existo' para o mundo", contou ao TAB, após desfilar perante o corpo de jurados.

Mesmo conversando à distância com um colega que passou pela transição de gênero dentro da corporação, foi o próprio Honorato quem sanou as dúvidas dos seus superiores durante o processo administrativo para retificar nome e gênero nos registros. Quando finalmente fez a mastectomia masculinizante, pediu para se mudar para o vestiário masculino.

"Esperava mais agressividade lá dentro, mas foi tranquilo. O que aconteceu mesmo é que muita gente tinha dúvidas sobre o que passei", explicou. "Espero que outras pessoas como eu consigam ocupar esses espaços dentro da polícia, que não é uma instituição com um bom histórico de tratamento à população LGBT."

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No camarim, Nathan Gabriel de Oliveira Santos se arruma para a segunda etapa da premiação
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Contra o estereótipo de 'macho'

Assim como existem estereótipos ligados à performance feminina, há também os ligados ao que identificamos como "masculino". Perna peluda, peitoral definido, pelos no rosto ou o jeito de andar. Para quem é cisgênero, essa preocupação passa batido, mas, para a população transexual, dominar esses códigos é questão de sobrevivência.

"O que fiz pra me preparar para o concurso? Entrei na terapia", contou Nathan Gabriel de Oliveira Santos, 21, empreendedor, que carregava a faixa de Mister Niterói em volta do pescoço. "Tive muita insegurança por ser diferente dos demais", conta Santos, que ainda não fez a mastectomia masculinizante "Existe uma cobrança de que um homem negro deve ser forte, o cabelo bem cortado, sempre baixo, uma hipersexualização grande."

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No palco, Nathan levou a faixa de Mister Sudeste
Imagem: Fernando Moraes/UOL

De pele retinta, Santos relata que sua preocupação dobrou com as violências cotidianas após a transição de gênero. "Ao mesmo tempo que há uma cobrança para ter uma leitura social como homem, você vira uma ameaça enquanto homem preto", avaliou.

Na apresentação principal no teatro Santo Agostinho, no bairro da Liberdade, em São Paulo, Santos foi um dos mais aplaudidos e levou para casa a faixa de Mister Sudeste. Sua crítica maior ao concurso foi ter uma minoria de homens não brancos entre os participantes.

Viagem solitária

Os participantes vinham de quatro regiões brasileiras. Muitos deles estavam pela primeira vez em um ambiente com outros homens trans. A jornada da transição de gênero não é fácil e é, na maior parte das vezes, um caminho solitário.
Apesar de o SUS oferecer tratamento hormonal e procedimentos médicos relacionados à transição, são poucos os ambulatórios especializados no atendimento dessa população.

É o caso de Dominy Martins, 22, dono da marca de camisetas Freedom. Para conseguir tratamento hormonal e a mastectomia, teve que buscar outros meios. "Fortaleza tem um ambulatório multidisciplinar só no papel. Na prática não temos opções", afirmou.

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Representando o estado do Ceará, Dominy Martins criou uma marca de camisetas para ajudar outros homens trans na transição
Imagem: Fernando Moares/UOL

O jeito, conta, foi passar dois anos juntando dinheiro para a cirurgia. A marca de camisetas é uma forma de ajudar outros homens trans que querem operar. "Já conseguimos ajudar dois meninos até agora", contou Martins.

Competir para existir

Na final, em 9 de novembro, o clima de camaradagem era sensível nos corredores labirínticos do teatro Santo Agostinho. Espalhados em três camarins, os candidatos tiravam selfies e ajudavam uns aos outros para abotoar os punhos da camisa ou fechar a gravata. "O bom é que homem não precisa se arrumar muito", comentou um dos participantes.

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Bastidores do concurso Mister Brasil Trans 2021
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Na plateia, também reinou um ambiente acolhedor. Todos foram aplaudidos com a mesma intensidade. No público havia desde o padre Julio Lancellotti a rainhas de outros concursos de beleza, como Isabelle Castro, mulher trans de 26 anos coroada Miss Cuiabá em um concurso com mulheres cisgênero. "É uma forma de resistência ocupar esses espaços", afirmou.

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O modelo Carioca Bernardo Rabello levou o título de Mister Brasil Trans, o primeiro concurso do mundo que celebra a beleza de homens transexuais
Imagem: Fernando Moraes/UOL

Dentre os competidores, destacou-se Bernardo Rabello, modelo carioca de 26 anos que já competiu em concursos com homens cisgênero. Pela experiência, desfilou e falou com confiança à plateia.

E isso transpareceu: ele levou o título de Mister Brasil Trans 2021. De terno, coroa de rei na cabeça e a indefectível faixa verde e amarela, Rabello sorriu com orgulho em cima do palco, ao som de aplausos.

'Significa liberdade'

Grande parte dos competidores levaram algum título para casa, mas a vitória mais comemorada foi a de David Lasarotto, 32. Eleito Mister Talento, Lasarotto não segurou as lágrimas quando anunciaram que ele ganhara uma mastectomia masculinizadora de prêmio. Quando as cortinas se fecharam, o Mister Rio Grande do Norte ganhou beijos e abraços dos outros participantes. "Acabou o peitinhoooo", gritou um.

Vindo de Santa Cruz, cidade localizada a 114 km de Natal (RN), Lasarotto sonhava com a cirurgia desde que os seios começaram a crescer e ele não pôde mais ficar sem camiseta em público. "Na época, não entendia o que era ser trans, não tinha pessoas me explicando o que eu estava passando", contou, com olhos marejados.

A mastectomia masculinizante é um procedimento desejado por grande parte dos homens trans. Os que não passaram pela cirurgia utilizam o binder, uma faixa elástica ou top usada para apertar e achatar o peitoral.

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David Lasarotto, 32, levou para casa a faixa de Mister Talento e a doação de uma mastectomia masculinizante. "Meu sonho desde criança", disse
Imagem: Fernando Moares

Usar o binder é dolorido e causa problemas de saúde no longo prazo. Os participantes do concurso que não passaram pela cirurgia relataram sentir dores agudas nos peitos por causa de seu uso contínuo. No entanto, a parte física é coadjuvante de uma dor ainda maior: não poder tirar a camiseta em situações em que homens cisgêneros poderiam. "A primeira coisa que vou fazer depois da cirurgia é ir para praia, correr pro mar", resumiu Lasarotto. "Essa cirurgia significa liberdade."

Um dos homenageados na premiação foi João W. Nery, primeiro homem trans brasileiro que conseguiu fazer uma cirurgia de readequação de gênero e mudar oficialmente seu nome de registro. Morto em 2018, Nery é um dos nomes que integram a luta por direitos da população trans.

Em seu livro, descreve sua vida e trajetória como uma "viagem solitária". Pelo menos na noite que premiou o primeiro Mister Brasil Trans, a solidão não bateu cartão.