Festa Literária das Periferias discute Semana de 1922 e modernismo negro
A chuva que caía no final da tarde da última sexta-feira (11), no Centro do Rio de Janeiro, não impediu que o público fosse até o MAR (Museu de Arte do Rio) acompanhar a abertura da 11ª edição da Flup 2022, Festa Literária das Periferias. Durante os oito dias do evento, a programação reúne literatura, dança, música e gastronomia.
Para relembrar o centenário da Semana de Arte Moderna em 1922, a Flup resgata a história e homenageia figuras que acabaram escondidas no cenário cultural do Brasil, mas conquistaram seu espaço e deixaram sua marca.
Modernismo negro
Durante a Semana de Arte Moderna que acontecia em São Paulo, em 1922, Paris sediava o primeiro encontro de músicos negros na diáspora. Dele, fizeram parte Pixinguinha e seu grupo, o Oito Batutas. No cenário de música negra, configurou-se um intercâmbio entre ritmos brasileiros, danças de salão do século 19, jazz e expressões musicais caribenhas.
Pixinguinha que faleceu em 1973, teve sua história relembrada no palco da Flup, em uma mesa de debate com o ator, jornalista, escritor e sambista Haroldo Costa, 91. "Naquela época, as pessoas falavam: 'O que é que esses crioulos vão fazer em Paris?' Foi um auê, tinham medo que achassem que o Brasil só tinham negros. Os Batutas foram lá e tocaram o som da melhor qualidade. A arte negra foi reconhecida e revitalizada. Tudo isso veio na calda da semana do 22", relembra.
Após o debate, Haroldo recebia o carinho das pessoas entre fotos e abraços. "Um evento como esse é uma forma de conscientização da nossa própria importância, é fundamental e necessário. Com esse reconhecimento, é possível criar coisas novas. O movimento de artistas negros ocupando espaços já deveria ter acontecido, chegamos com um pouco de atraso, mas estamos no caminho", disse o sambista ao TAB.
Viúva de Ecio Salles -- um dos fundadores da Flup, falecido em 2019 --, a pedagoga Dani Salles, 42, abraçou o projeto desde a primeira edição, em 2012, e ganhou ainda mais protagonismo após a perda do marido. Porta-voz do evento, ela explicou a importância do encontro e compartilhou seu sonho para o futuro. "Eu adoraria que daqui a 100 anos, nós olhássemos para essa semana e víssemos uma repaginada da semana de arte moderna, só que desta vez, feito por artistas negros, inspirados pelo modernismo negro". Dani conta que sempre achou uma loucura trazer um evento dessa magnitude para dentro das favelas, mas observando as histórias e o atravessamento positivo que a Flup faz na vida das pessoas, tudo passou a fazer sentido.
Para ela, o evento sempre teve muita adesão devido à diversidade que era ofertado ao público, mas o principal destaque seria a frequência do público fiel. "Hoje, quando subi no palco, vi rostos de pessoas que em 2012 fizeram o processo formativo, lançaram seus livros e hoje estão aqui", disse.
'Não somos o que o homem branco pintou'
Entre um público variado e composto majoritariamente por grupos de amigos e famílias com crianças, o auxiliar administrativo Fábio Rodrigues, 18, e sua amiga Letícia Abreu, 21, técnica de enfermagem, se destacavam como jovens frequentadores da Flup. "É minha primeira vez aqui. Vim porque a gente precisa resgatar o que está morrendo. Esse evento foi uma forma de dar um grito, falar de cultura", disse Fábio, que também faz malabarismo e é fã do rapper Emicida. "A arte feita por negros é linda. A gente precisa apreciar, apoiar e falar bem dessa arte", completou.
A convite do amigo, Letícia Abreu estava encantada com a Flup e toda a programação. "Esse evento é uma forma de mostrar o negro com outros olhos. As pessoas olham pra gente e pra nossa arte de forma marginalizada, mas nós não somos da forma que o homem branco pintou a gente", disse a técnica de enfermagem.
Conforme anoitecia, um número maior de pessoas chegava para aproveitar os debates, a música e as barracas recheadas de comidas e bebidas variadas -- os destaques gastronômicos ficaram por conta de iguarias como acarajé, tapioca, cocada, cervejas e drinks. Também havia barracas com roupas, lembranças e livros variados.
Acompanhada das amigas, a professora Luiza Mandela, 36, já está em sua terceira edição da Flup. "Esse evento serve para lembrar que a cultura afro-brasileira também precisa ser representada em espaços como este. A representatividade negra, através do reconto da história verdadeira que nos traz aqui, onde falaram de Pixinguinha, é muito importante para que a gente tenha consciência histórica e para entender o que de fato aconteceu no nosso país", disse à reportagem.
Para a professora, a Semana da Arte Moderna representa a branquitude e a elite onde Pixingunha, Heitor dos Prazeres e tantos outros artistas foram marginalizados. "Um evento como esse é uma reparação histórica, porque a gente não pode invisibilizar os artistas negros contemporâneos", explicou.
No palco da Flup, o rapper congolês Santana Pax cantava em lingala — um dos idiomas utilizados na África — em homenagem ao primo Moïse Kabagambe, jovem negro morto em 24 de janeiro em um quiosque na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Em seguida, o escritor congolês Alain Mabanckou e a autora americana Kim Butler relembraram também a morte de George Floyd, homem negro estrangulado por um policial branco em Minneapolis, nos Estados Unidos, em 25 de maio de 2020.
'A gente chove no molhado o tempo todo'
Veteranos de Flup, o casal Suellen Malícia, 38, e Felipe Valentim, 34, foram conferir a 11ª edição acompanhados da filha Luiza Mae, de 1 ano e meio. A professora de geografia está no evento pela segunda vez; já o professor de história participa desde 2018. "A Flupe é necessária. Nos últimos anos, a gente pode dizer que aqui foi o principal espaço de novos escritores, como Jessé Andarilho e Ana Paula Lisboa, mas não consigo enxergar isso como uma reparação histórica. Vejo como uma reconstrução do passado, uma remontagem conectado com o futuro", disse Felipe.
"Pixinguinha é incontestável, o Lima Barreto, na década de 1920, foi um dos maiores escritores brasileiros. Podemos pensar isso como uma recuperação daquilo que naquele momento, em 22, foi negado, justamente pelo movimento antropofágico -- que se propunha a deglutir o Brasil verdadeiro, mas que acabou criando exclusão", concluiu.
Já Suellen acredita que essa inserção dos negros na arte está longe do ideal — e que o evento poderia acontecer em outro lugar, sem ser no Centro da cidade: "Estamos num processo de marcar território, vemos um contra-movimento extremamente reacionário, então eu acho que ainda temos uma caminhada muito longa para reafirmar a identidade de artistas negros. A branquitude separa um espaço limitado pra gente. A arte feita por negros é sempre tratada como pitoresca, exótica. Um pouco antes de chegar, estávamos falando que esse evento deveria acontecer mesmo nas periferias, nas comunidades, mas fazer aqui no Centro é muito mais palatável. A gente chove no molhado o tempo todo", diz a professora.
A Flup também contou com apresentações de cantores e grupos de samba. O vendedor Vinicius Silva, 24, e a supervisora de marketing Julia Silva, 22, estavam ansiosos por esse momento. "Nós estamos adorando o evento e daqui a pouco vamos gostar ainda mais. Viemos mais por causa do show", disse o rapaz. Ele e a amiga são do Complexo da Maré, uma comunidade localizada na zona norte do Rio. "Falta muita inclusão na Maré e conhecimento de ambientes como esse, com arte, história. Eles precisam aprender, mas acabam não tendo acesso por causa dos problemas na educação", disse Julia. "A Maré tem muitas ONGs incríveis, mas faltam eventos como esse lá dentro, voltados principalmente para pessoas negras", completou o rapaz.
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