'A gente é homem e tem útero': o time de futsal formado só com trans
Às 9h50 da manhã de um domingo na rua Guaianases, no centro de São Paulo, pessoas se acumulam nas calçadas e dormem debaixo dos toldos das lojas fechadas. Usuários de drogas fumam crack por ali, enquanto alguns imigrantes também usam a via como passagem. O bar aberto na primeira esquina é o único comércio aberto. Nos dias de semana, a rua é ocupada por muito mais pessoas — o local concentra várias lojas com peças de moto à venda.
Faltando dois minutos para as 10h, dois homens pararam na frente de uma porta preta, abriram-na e subiram uma escada com dezenas de degraus. Logo em seguida, um grupo apareceu e fez o mesmo caminho. O local lembrava um consultório ou um escritório de advocacia, mas no fim dos degraus o que interessava é a quadra.
O salão coberto serve de treino para o time de futsal T-Mosqueteiros, criado em 2019 e formado por homens trans que, semanalmente, usam o local para jogar bola. Entre os atletas frequentadores há pessoas de várias regiões de São Paulo e dos arredores, como Suzano, Barueri, São Bernardo do Campo e Santo André. Naquele dia, 10 jogadores compareceram e jogaram até pouco depois do meio-dia, divididos em dois times.
15 km é a distância que separa o estudante Nohan Ferreira, 21, da quadra que, religiosamente, frequenta todos os domingos. É como uma missa. Nohan, que vive na favela de Paraisópolis, é um dos atletas mais novos do time e ficou sabendo dele através de um amigo. Desde novembro passado, não gosta de perder nenhum jogo. "Acordo bem cedo, pego ônibus, desço em Pinheiros, depois pego mais dois metrôs pra chegar aqui", diz.
Tímido, de voz baixa e com a camisa do time argentino Boca Juniors, o estudante da EJA (Educação de Jovens e Adultos) conta que estava sozinho mexendo na internet quando ouviu falar pela primeira vez de homens trans. Na época, tinha 16 anos. "Caraca, eu acho que é isso aí, pensei na época. Me transformei", conta.
Depois de ler bastante, contou à mãe o que sentia. Ela o encaminhou a um atendimento psicológico. O processo de transição começou na sequência.
Nohan fala da solidão de não conhecer ninguém como ele. "Socialmente foi difícil", menciona algumas vezes durante a conversa. Nem todo mundo entendia o processo e isso tornou as coisas mais difíceis, apesar da ajuda da mãe, que nunca deixou de o apoiar.
Nas duas vezes em que falou sobre acolhida, Nohan citou o técnico de turismo Cláudio Raphael Galícia Neto, 49. Com barba amarrada na ponta, sem camisa e diversas tatuagens pelo corpo, o mais velho entre os jogadores é visto com respeito pelo grupo e fala do time com o mesmo sentimento que os colegas.
"Fui muito bem recebido e acolhido. E, apesar do pouco tempo de convivência, já sinto uma energia tão boa que parece que treino com eles há séculos", conta.
Homem de útero
Entre as tatuagens do mestre de obras e capitão do time, Matheus Oliveira, 34, uma que chama atenção de cara é a de um cavalo-marinho no braço. Perguntado sobre, faz questão de explicar que o desenho está ligado a quem ele é. "O cavalo tem útero, ele ajuda na gestação dos filhotes. E nós aqui também. A gente é homem. E tem útero também", diz.
Para o capitão do T-Mosqueteiros, a escolha da quadra coberta e fechada é pela segurança dos atletas e evitar casos de transfobia. "Espaços abertos podem causar conflito. As pessoas não estão acostumadas ao diferente. Um homem cis, por exemplo, pode não gostar de levar 'uma entrada', fazer uma falta e machucar. Por essas e por outras, preferimos o espaço pago", resume.
Em quadra, há homens sem mamas, outros as tiraram. "Há meninos que não fizeram a mastectomia, não têm 'passabilidade' [quando um homem ou uma mulher trans 'passa por' um homem ou mulher cisgênero], e ainda não conhecem bem o corpo. São vários corpos diferentes", emenda Matheus.
A proteção dos atletas não sai de graça. Mensalmente, o time tem de pagar cerca de R$ 750 pelos quatro treinos mensais. Quem não consegue pagar vende rifa de camisetas para bancar o valor que, na divisão entre todos, fica entre R$ 20 e R$ 30. Além desse valor, há necessidade de comprar mais bolas, pois hoje só há duas, além de outros equipamentos esportivos e uniformes.
Outra pessoa na linha de frente é Bernardo Gonzalez, 32, professor e analista de diversidade e inclusão. Junto a outros membros, busca parcerias para o time e iniciativas, públicas e privadas, que possam colaborar na manutenção do time.
"A vulnerabilidade social é uma situação que faz com que os meninos não participem, né? Não tenham interesse em jogar futebol. A gente sabe que, para o cara vir treinar, ele vai gastar aí, pelo menos, uns R$ 20, né? Faz as contas no mês, isso dá uma um valor considerável, né?".
Sindicatos, instituições culturais, prefeituras e federações têm sido procurados para parcerias, mas até agora, o que banca os treinos semanais é o trabalho dos próprios membros. Em novembro, o time foi o vencedor dos Jogos LGBTQIAP+ na categoria futsal trans, torneio promovido pela Prefeitura de São Paulo.
Recém-mastectomizado, o analista fiscal Theodoro Arturo Sousa, 28, mais conhecido como Theo, conversava fora da quadra com amigos. Sem treinar pela recuperação da cirurgia, veio só para rever as pessoas e dar notícias depois de um período afastado. Com risadas e conversas, passou a manhã ali.
Para ele, que estava acompanhado da namorada, da irmã e do cunhado, o time é um momento de respiro, já que fora dali, o desrespeito das pessoas impera, segundo diz. Ser tratado no feminino e comentários transfóbicos fazem parte da rotina dele, e apesar do incômodo que sente, e do tratamento que recebe das pessoas, fala que evita corrigir por receio de ser inconveniente e mal-educado.
"Be brave" é uma expressão em inglês que, na tradução significa "seja corajoso". Atrás da orelha, essa é a frase de uma das tatuagens de Theo. "Na minha vida inteira, tive que ser corajoso em muitas situações. É um incentivo para mim, e para outras pessoas que estão vendo a tatuagem", afirma. "Tenha coragem, basicamente isso."
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