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Líder em demolições, bairro mais antigo de São Paulo desaparece da paisagem

O designer Nelson Amorim manteve a casa em que mora e trabalha, mesmo ilhada por um construção em Pinheiros, zona oeste de São Paulo - Rodrigo Bertolotto/UOL
O designer Nelson Amorim manteve a casa em que mora e trabalha, mesmo ilhada por um construção em Pinheiros, zona oeste de São Paulo Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Rodrigo Bertolotto

Do TAB, em São Paulo

28/02/2022 04h01

As pessoas que voltaram a circular por Pinheiros depois da quarentena encontraram um labirinto de tapumes. Ruas inteiras vieram abaixo. "Tem gente que para aqui na frente e bate palma", conta Nelson Amorim, diante de seu sobrado, cercado de todos os lados por um megaempreendimento.

De tardezinha, ele costumava ganhar da vizinha um bolo feito na hora. Hoje, a única receita seguida por lá é a mistura de cimento, areia, pedra e água que as betoneiras derramam para construir um prédio de 30 andares que tem o seguinte slogan de venda: "o encontro da arte e da arquitetura com o melhor de Pinheiros". Amorim sintetiza a questão: "O que as construtoras vendem é justamente o que estão destruindo".

Pinheiros é considerado o primeiro bairro de São Paulo, junto de São Miguel Paulista. Ambos se formaram a partir de aldeamentos logo após a fundação da cidade, com o estabelecimento de jesuítas e populações indígenas deslocadas até ali.

Essa escolha histórica não é de se estranhar, porque tanto o Pátio do Colégio quanto a beira do rio Pinheiros faziam parte do Peabiru, caminho anterior à chegada dos europeus à América que ia de São Vicente até pelo menos Cusco (Peru), unindo o oceano Atlântico à cordilheira dos Andes e ligando os guaranis aos incas.

Depois, Pinheiros virou arraial de capitania, vila de província, distrito do município, polo comercial da zona oeste paulistana. A chegada do bonde no início do século 20 loteou o que restava de sítios e chácaras da área. A vinda do metrô no século 21 acelerou outra mudança no bairro, mas a rápida e desregrada verticalização está deixando os atuais moradores em pânico.

O som e a fúria

O canteiro de obras que se tornou Pinheiros é algo medido também pelas estatísticas. Entre os 96 distritos paulistanos, Pinheiros foi o líder das demolições entre 2014, ano de criação do atual Plano Diretor da cidade, e 2021 — um total de 1.083 alvarás de destruição no período. Só em 2020, foi cenário de 28% das derrubadas de casas da capital.

O aposentado Guilherme Nogueira, 61, viu 23 residências em seu quarteirão caírem por terra na virada do ano. Ele tinha quatro anos em 1964 quando mudou com os pais para aquela rua que não tinha asfalto, iluminação nem linhas telefônicas. "Os taxistas não queriam entrar aqui por medo de roubo e chamavam de Vila Madaloca", lembra. "Hoje, que temos qualidade de vida, querem nos expulsar."

Nogueira se queixa que as incorporadoras criam atritos entre parentes e vizinhos. "Já tinha falado que não ia vender, mas ligaram para meu irmão para aumentar a proposta. Tem muita família dividida porque os corretores jogam um parente contra o outro. A mesma coisa com os vizinhos. Inventam boatos diferentes de uma rua para outra para criar um clima de assédio e pânico", critica.

demolição de pinheiros - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
Operários saem de canteiro de obras e passam diante de tapume na rua dos Pinheiros, zona Oeste de São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

O incômodo com poeira, trânsito e ruído também ajuda a expulsar os antigos moradores. Tanto é assim que Pinheiros está em terceiro lugar entre os distritos com mais reclamações à Prefeitura de barulho excessivo e em horários inapropriados — só perdeu para Sé e Mooca em 2021. Boa parte do escarcéu vem das construções, com madrugadas sonorizadas com caçambas de entulho sendo retiradas e vigas metálicas sendo descarregadas.

Essa estridência contrasta com o silêncio que ronda quem vendeu sua casa. Uma vizinha de Nogueira, por exemplo, não pôde dar entrevista para o TAB porque havia cláusula de sigilo em seu contrato.

Em outra parte do bairro, cada lado da rua foi vendido para uma empresa diferente, mas sobraram 12 casas que não interessaram às corporações. Uma delas é a da professora aposentada Helena Invernizzi, 83. "Quando toco no assunto, todos os vizinhos desconversam. Não consigo dormir à noite de tanta preocupação, porque não sei o que vai ser da minha vida", desabafa. "Pesadelo é pouco. Pinheiros está acabando." A história de Helena mostra que a verticalização muitas vezes é sinônimo de segregação.

Comércio encolhe

Comércio popular no começo, lojas de móveis no meio e vitrines de instrumentos musicais no final. A rua Teodoro Sampaio é um tradicional ponto varejista da cidade. Mas tamanha é a expansão imobiliária que esses nichos de mercado perderam espaço. Três esquinas do setor moveleiro estão em escombros. Em uma delas, quatro lojas e um centro cultural vão dar lugar a um arranha-céu de luxo.

"São Paulo é o antiexemplo do que deve ser uma cidade. A luz natural foi colocada à venda. Quem paga mais, leva", critica o artista plástico Enio Squeff, que mora e tem seu ateliê em um sobrado perto da Teodoro e deve ficar na sombra do edifício.

Outras ruas temáticas estão sofrendo. A Paes Leme, especializada em ferragens, está pontilhada de prédios, o que obrigou os lojistas do segmento a se espalharem pelas vias perpendiculares. Já a Pedroso de Moraes, que chegou a concentrar oito sebos de livros em um quarteirão, hoje está cheia de lojas desmoronadas — só um livreiro sobrou com as portas abertas atualmente.

Por todo o bairro, desaparecem chaveiros e sapateiros e pipocam franquias internacionais e restaurantes gourmetizados para os novos frequentadores. Pressionadas pelo tumulto geral, casas antigas fecharam, como a Vinheria Percussi, com 36 anos de história. "Não há a menor possibilidade de atender no meio de uma obra desse porte. Restaurante, como já diz o nome, é onde a pessoa se restaura. Como o cliente iria recuperar sua saúde no meio de tanto pó?", pergunta-se Silvia Percussi, que fechou as portas no dia 31 de dezembro, vendeu o imóvel, deve reabrir em outra rua do bairro e atende por ora em esquema de delivery.

Já o Café Kez deve encerrar suas atividades em Pinheiros nas próximas semanas. Aberto em 2017, aproveitou o boom de movimento após a inauguração da estação Fradique Coutinho do metrô. "Nem vou mais lá porque dá um sentimento ruim. O bairro está muito detonado. Lutei até o final, mas foi muito estressante. Fiz reformas porque o proprietário prometeu renovar a locação. Mas o dinheiro falou mais alto", desabafa Alan Niski.

Pela legislação, Niski teria preferência de compra, mas o dono do local fez uma permuta com a incorporadora, o que elimina essa cláusula. O lote vai se juntar ao quarteirão inteiro que caiu para dar lugar a torres envidraçadas.

Sobrados e sombras

Estirada na entrada da ruazinha, a mensagem da faixa é direta: "Não tirem nosso céu e nosso sol". A vila construída em 1939 resiste graças à união dos moradores. O oásis verde no meio do paliteiro de cimento atrai a vizinhança, que passeia com os cachorros e faz piquenique ali. As maritacas invadem uma palmeira no fim de tarde e às vezes aparece um sagui.

"Nosso projeto era viver em um lugar humano e arborizado, não em Hong Kong", resume Marjorie Imai, uma das moradoras. De sua janela dá para ver Nélia Brandão cuidando do jardim, que se estende pela calçada e casa adentro. "Quando cheguei aqui em 1992 a rua era bem árida. Todo mundo viu como fica bonito e fizeram igual. A rua valorizou mais ainda", diz a jardineira aposentada.

demolições em pinheiros - Rodrigo Bertolotto/UOL - Rodrigo Bertolotto/UOL
O restaurador austríaco Thomas Brixa trabalha embaixo de andaimes de prédio colado e ao som de marretadas em Pinheiros, em São Paulo
Imagem: Rodrigo Bertolotto/UOL

Coordenadora do movimento Pró Pinheiros, Rosanne Brancatelli conta que a pressão do grupo funciona principalmente com as construtoras que estão na Bolsa de Valores porque elas ficam preocupadas com o selo ESG, uma garantia de governança social e ambiental para os acionistas. "Já quem tem capital fechado não está nem aí. Como não há regulamento, as empresas ficam sempre em vantagem. As autoridades do Executivo e Legislativo deveriam ouvir os anseios dos cidadãos e não apenas do mercado imobiliário", afirma Rosanne, que guiou a reportagem do TAB pelo bairro.

A pandemia acabou virando um dos fatores de verticalização de Pinheiros, porque lojistas viram seus faturamentos desaparecerem, e moradores perderam renda e ficarem mais suscetíveis à venda. "O comércio que resistiu à quarentena depois não conseguiu se manter porque seu entorno foi todo destruído e teria que aguentar mais dois anos de obras. Desse jeito, o bairro descolado vai perdendo seu espírito", afirma Vanessa Rego, presidente do Coletivo Pinheiros, associação de comerciantes locais criada em 2016.

A argumentação para a verticalização da área era adensar a população perto dos corredores de metrô e ônibus. A ideia inicial era levantar prédios populares e sem garagem. As construtoras preferiram construir edifícios de luxo, com metragem grande e duas vagas de carro por apartamento.

demolições em Pinheiros - Rosanne Brancatelli/Movimento Pró Pinheiros - Rosanne Brancatelli/Movimento Pró Pinheiros
Imagem de sobrado na rua Alves Guimarães, em Pinheiros, que tem parte de sua estrutura embaixo de andaimes da construção do prédio ao lado
Imagem: Rosanne Brancatelli/Movimento Pró Pinheiros

A rua Alves Guimarães vive o extremo disso: são 10 torres levantadas ao mesmo tempo, perto da estação Oscar Freire. A voracidade é tão alta que há constantemente paralisações sindicais pela falta de direitos e atrasos no pagamento dos operários, que precisam deitar na calçada para descansar na hora do almoço.

Ali o restaurador austríaco Thomas Brixa escolheu em 1996 um sobrado de fundo para montar seu ateliê. Hoje, seu trabalho é embaixo de andaimes. De tão colada à torre vizinha que está sendo erguida, eles cobrem o corredor de acesso e o próprio telhado da casa. "É barulho o dia inteiro, mas seria maior o transtorno se tivesse que sair daqui", conforma-se Brixa.

Na parte de baixo do sobrado mora a família Bruno, que construiu em 1950 a casa. O patriarca, seu Apparicio, negou-se a vender o terreno. Um dia, enquanto caíam as casas vizinhas, o senhor de 90 anos tropeçou e bateu a cabeça. Dias depois acabou morrendo em consequência das feridas internas.