Paula Lavigne leva Caetano ao Congresso contra 'Pacote da Destruição'
Do Salão Negro do Congresso Nacional, que recebe esse nome em função do escuro granito que lhe orna o piso, avista-se ao longe, na Esplanada dos Ministérios, um palco ladeado por bonecos infláveis representando capivaras e tartarugas. No interior do salão, dezenas de jornalistas aguardam a chegada de um personagem insuspeito que iria até ali para fazer política: Caetano Veloso.
Nas cadeiras dispostas em frente ao semicírculo onde se realizaria a audiência com o senador Rodrigo Pacheco (PSD), presidente do Congresso, os artistas começavam a chegar: Lázaro Ramos, Alessandra Negrini, Seu Jorge, os deputados federais Alessandro Molon (PSB) e Ivan Valente (PSOL), Maria Gadu, Nando Reis, Duda Beat e muitos outros.
Eles estavam ali como agitadores do "Ato pela Terra", convocado por Caetano para pedir a suspensão da votação dos projetos de lei que os ambientalistas têm chamado de "Pacote da Destruição".
Entre as propostas, há uma que flexibiliza a punição aos posseiros de terras e florestas públicas, apelidado de "PL da Grilagem"; a liberação de agrotóxicos proibidos em outros países, alguns considerados cancerígenos, e que recebeu a alcunha de "Pacote do Veneno"; e a permissão para implantar empreendimentos de grande impacto em territórios tradicionais, o que facilitaria a mineração em terras indígenas, uma das ambições do governo Bolsonaro.
Ela organiza o movimento
Assim que saiu do elevador, Caetano, de terno e gravata, acompanhado de sua companheira e empresária Paula Lavigne, foi tietado por políticos e famosos. Jornalistas imploravam por uma foto. Ele posou ao lado da atriz Christiane Torloni, que vestia uma pulseira indígena de miçangas e erguia uma plaquinha que dizia: "Sem Amazônia não tem Brasil".
A ânsia por fotografias, que tomou até funcionários do Senado, atrasou a solenidade em meia hora. Lavigne, que é quem orientava o Carnaval em torno de Caetano, circulando com papéis à mão e dando recados ao músico e ao senador Randolfe Rodrigues (Rede), articulador do ato no Senado, foi a primeira a falar.
Mas foi breve: "não sou de falar, sou de fazer", disse, agradecendo a presença dos artistas que se dispuseram a ir, mesmo se expondo a críticas. "Somos atacados diariamente pela milícia digital", afirmou ela, em referência à rede de disseminação de fake news investigada pelo Supremo Tribunal Federal.
De máscara, chegou a vez de Caetano ler sua carta ao Congresso.
"Nós dois, particularmente, temos motivos de sobra para estarmos preocupados com o meio ambiente", disse, dirigindo-se a Pacheco, lembrando-o das chuvas que recentemente assolaram a Bahia, o Rio de Janeiro e Minas Gerais, terra do presidente do Senado.
"Fui aceito como o porta-voz desse grupo por ser o mais velho", gracejou humildemente Caetano, que numa dicção tranquila e infalível que arrancou lágrimas discretas de Lavigne, arrematou: "muitos artistas que não se veem agindo por uma motivação explicitamente política se reconhecem na causa ambiental. Ouso dizer que isso se deve à natureza abrangente e mesmo sublime da questão ecológica. Nela, os artistas veem a busca de harmonia, a decisão sobre o sentido do humano no mundo, a luz da salvação. Os poemas, quadros, estátuas, filmes, romances, sinfonias e canções não tratam de outra coisa".
A fala foi enfaticamente aplaudida, sobretudo por Daniela Mercury, que declarou: "o presidente do meu país é Caetano Veloso!". Em seguida, a atarefada Lavigne interpelou Pacheco: alguém o chamava ao telefone. Era Chico Buarque.
Em um viva-voz pouco audível, Chico reiterou os pedidos ao senador, ressaltando os perigos reunidos nos projetos de lei, e terminou pressionando-o de leve: "tenho certeza que o senhor vai impedir a aprovação de projetos dessa natureza".
Fazendo valer a fama que persegue os mineiros, Pacheco prometeu "encontrar equilíbrio" entre as demandas ambientalistas e as do agronegócio, assegurou que "não haverá açodamento para votá-los em plenário" e que procederá com "cautela e cadência no trâmite legislativo". Assim como a fala, os aplausos foram bastante comedidos.
Lavigne sussurrou novamente ao ouvido de Caetano, que dessa vez a entregou: "ela pediu para eu tirar a máscara". Ele prontamente obedeceu, divertindo o público, e puxou o refrão de "Terra", faixa do disco "Muito", lançado em 1978. "Por mais distante / o errante navegante / quem jamais te esqueceria?".
À capela, todo o Salão Negro acompanhou Caetano, e até o ponderado Pacheco admitiu: "Foi um dos mais belos atos da história dessa casa".
Festival de música
Na Esplanada, era a vez de uma multidão colorida, com leve predominância do vermelho, aguardar Caetano. As barracas de comida, os muitos vendedores ambulantes, os banheiros químicos e os camarins dos artistas mais lembravam a estrutura de um festival de música que um protesto político nos moldes convencionais.
E a intenção era essa mesma, conta Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, um dos organizadores do "Ato pela Terra".
Ele lembra que não é de hoje o engajamento dos artistas com as questões ambientais. Há mais de dez anos ele se reúnem periodicamente, em jantares na casa de Caetano e Lavigne, para se informar, junto de ambientalistas como ele, sobre as votações no Congresso que podem impactar no desmatamento, nas causas indígenas e outros temas afins.
Nos últimos meses, as discussões giravam em torno de como agitar novamente as pessoas para fazer frente aos retrocessos ambientais defendidos por Bolsonaro.
"A pandemia limitou muito os encontros presenciais, mas agora chegamos a uma situação-limite. O Congresso está passando tudo, não existe sequer debate, é um verdadeiro absurdo", diz Astrini.
Bela Gil, frequentadora esporádica das reuniões de Lavigne, assegura que o verso de "Não vou deixar", faixa do disco que Caetano lançou em 2021, que diz "o menino me ouviu e já comentou / o vovô tá nervoso, o vovô", não é mera figura poética. "Pra esse ato especificamente, para a surpresa de todos e da Paula inclusive, ele se mostrou com muita vontade de participar e de fazer esse movimento, então ele realmente está nervoso com a situação atual do nosso país", conta.
Foi então que surgiu a ideia de fazer um show dirigido ao Congresso, aproveitando a ocasião para levar as reivindicações de cunho ambiental às instituições dispostas ao diálogo — o Senado e o STF, pois também com a ministra do Supremo, Carmen Lucia, os representantes do ato se reuniram. Com adesões de peso, a visibilidade às causas ambientais seria ampla e certeira na mídia e nas redes virtuais, o que poderia estimular os congressistas a pensarem duas vezes sobre suas ações, sobretudo em ano eleitoral.
As 230 organizações de movimentos sociais que engrossaram o ato — como o MST, a UNE, a Coalizão Negra por Direitos, o MTST, a CUT e o Greenpeace — demonstraram o acerto da estratégia.
A maioria dos presentes era jovem. Uns estendiam cangas no gramado, outros dançavam ao ritmo dos tambores indígenas, muitos ciclistas e skatistas compareceram e havia mesmo quem praticasse ioga. As crianças que chegavam com os pais recebiam fantasias de abelhinhas, numa alusão a um dos efeitos danosos dos agrotóxicos, que eliminam os insetos polinizadores nas plantações.
Vários brasilienses passeavam com cães, o que deve ter alegrado Luisa Mell, que, no palco, discursou: "Vamos deixar esses malucos meterem a mão na nossa comida só pra ganhar mais dinheiro?!", levando o público ao delírio. Depois dela, o ator Lázaro Ramos puxou um "Fora, Bolsonaro!", sendo acompanhando em uníssono pelos manifestantes.
Finda a tarde, Caetano ainda não se mostrara. Alguns manifestantes tentavam flagrar os artistas pelas frestas da estrutura metálica que servia de camarim, chamando a atenção dos seguranças do evento, que os mandavam circular.
João Gabriel, 17, não estava assim tão ansioso, pois não saíra de Samambaia, cidade satélite de Brasília onde mora, especificamente para ver Caetano. "Curto as músicas, mas não sou tão fã", esclarece. As questões ambientais, também, ele acompanha só de longe. O que fora então fazer ali? "Protestar contra o Bolsonaro. A cidade precisa de mais atos como esse", avalia.
Depois da espera, Caetano, menos formal e vestido com uma blusa com estampa de margaridas, enfim subiu ao palco. Os artistas se espremeram em um canto da estrutura, para ver de camarote a apresentação, e Lavigne seguiu circulando de um lado para o outro, resolvendo coisas. O baiano emendou "Força Estranha", "Gente" e "Tigresa". "Cajuína" contou com a participação de Letícia Sabatella, e "Podres Poderes" e "Vaca Profana", com a de Maria Gadu.
E, novamente, Caetano falou — o que, conforme costumava dizer Glauber Rocha, ele faz tão bem quanto cantar. "O Brasil tem alma, o Brasil tem mente, o Brasil tem corpo e ele resiste. Muito obrigado por terem vindo", agradeceu ele, ao público extasiado.
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