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'Partido do mal': cristãos ameaçam freiras por alugar salão a evento do PT

Irmã Neusa da Conceição Vale, presidente da Congregação Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP) - Marco Vinicius Ropelli/UOL
Irmã Neusa da Conceição Vale, presidente da Congregação Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP)
Imagem: Marco Vinicius Ropelli/UOL

Marco Vinicius Ropelli

Colaboração para o TAB, de Santo Anastácio (SP)

17/03/2022 13h43

Ao chegar ao centro de Santo Anastácio (SP), distante 36 km de Presidente Prudente (SP), o olhar logo percorre as construções antigas, as ruas muito largas em comparação ao padrão das cidades vizinhas — várias delas com os mesmos paralelepípedos de outros tempos. O clima interiorano, a calmaria e o silêncio de interior, no meio da tarde, tornam difícil acreditar que a semana está sendo caótica no município com pouco mais de 20 mil habitantes.

Às 13h30 de quarta-feira (16), Ricardo Silva da Cruz, 46, presidente do diretório do PT (Partido dos Trabalhadores) de Santo Anastácio, e Agripino Miguel Costa, 54, vereador pelo mesmo partido, registraram um Boletim de Ocorrência na delegacia de Polícia Civil do município. Era o segundo em pouco mais de sete dias.

Os dois boletins têm origem em áudios que circularam nas redes sociais e se espalharam rapidamente pelos celulares dos anastacianos, todos a respeito da visita de Fernando Haddad, potencial candidato ao governo de São Paulo em 2022 e candidato derrotado na disputa pelo Planalto em 2018. Em Santo Anastácio, Haddad teve 31,57% dos votos para presidente, contra 68,43% de Jair Bolsonaro (PL).

No sábado (12), às 9h, Haddad esteve em Santo Anastácio, precisamente na quadra poliesportiva Padre Jacinto Bianchi, para falar do desenvolvimento econômico e social da região.

Fernando Haddad, em evento do PT realizado na quadra do educandário ligado às freiras da Congregação Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP) - PT/Divulgação - PT/Divulgação
Fernando Haddad, em evento do PT realizado na quadra do educandário ligado às freiras da Congregação Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP)
Imagem: PT/Divulgação
Público acompanha a visita de Fernando Haddad, em evento do PT realizado na quadra do educandário ligado às freiras da Congregação Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP) - PT/Divulgação - PT/Divulgação
Público acompanha a visita de Fernando Haddad
Imagem: PT/Divulgação

A quadra, inaugurada em janeiro, faz parte do Educandário São José, projeto social mantido pelas irmãs da Congregação Filhas de Maria Missionárias. As freiras alugam o espaço para diversos eventos, com intuito de arrecadar fundos. Valor do aluguel: R$ 200. Sem qualquer ligação partidária, as irmãs foram expostas a uma campanha de intimidação que tem dado o tom, Brasil afora, quando o assunto é política.

Antes mesmo de o evento acontecer, grupos de direita da cidade pareciam articular um protesto contra a visita do político petista. Segundo os áudios, enquanto alguns propunham "jogar ovo" e "fazer piseiro", o que não aconteceu, outros destacavam a intenção de um protesto pacífico (ouça abaixo).

A manifestação de fato ocorreu, mas com o devido distanciamento da quadra. O diretório municipal do partido pediu demarcação da área à Polícia Militar e à Prefeitura para evitar confrontos Apesar de alguns manifestantes terem tentado invadir a demarcação, a Polícia conseguiu controlar a situação.

Ameaças e intimidação

"Desde a hora em que começaram a divulgar o evento, até tarde da noite, o telefone tocava toda hora. Às vezes a pessoa se identificava, outras não, mas sempre criticando", conta a irmã Sirlei de Souza Antunes, 57, tesoureira da Congregação e coordenadora do Educandário São José.

Outra irmã, a presidente da Congregação, Neusa da Conceição Vale, 56, afirma que as ligações aparentavam partir de um grupo organizado, visto o estilo do discurso que faziam. "O pessoal ligava e dizia normalmente assim: 'eu sou empresário, sou cristão' — as duas características com que se identificavam eram essas. 'Sempre colaborei com o educandário e agora estou decepcionado que vocês vão receber o partido do mal'."

Irmã Neusa da Conceição Vale entra na igreja do Educandário das Filhas de Maria Missionárias, em Santo Anastácio (SP) - Marco Vinicius Ropelli/UOL - Marco Vinicius Ropelli/UOL
Imagem: Marco Vinicius Ropelli/UOL

Ainda de acordo com Neusa, os telefonemas soavam como ameaça e incluíam intimidações. Diziam que as consequências seriam sérias para as freiras e que os autores dos áudios deixariam de oferecer qualquer tipo de ajuda à instituição, caso o evento não fosse cancelado ou levado para outro local.

"Nós escutamos todos os telefonemas, não recusamos nenhum. Respondemos assim: 'estamos respaldadas! A princípio nós seguimos Jesus Cristo. Ele acolheu a todos independente de credo, de religião, de partido. Então, nosso princípio é acolher todo mundo'", enfatiza Neusa.

As irmãs mantiveram-se firmes no objetivo de angariar fundos para ajudar na missão de "educar para a vida", o evento ocorreu como estava previsto. Dois dias depois, na segunda-feira (14), áudios ofensivos com mais ameaças passaram a circular entre os moradores.

"Vou fazer uma visita para essas irmãs. Se elas confirmarem que são petistas e comunistas, vou mandar tudo tomar no c*, essas p***** ai", diz um homem, em um dos áudios. Como resposta, outro homem diz que, de fato, não podem deixar barato. "Petista nós temos que matar, pisar no pescoço, até o bicho fungar."

Os áudios abaixo foram detalhados no segundo B.O.:

Segundo o delegado Wanderlei Campioni, todos os áudios serão transcritos e analisados para se chegar aos autores e concluir se existem injúrias e ameaças de fato. Parte deles já foram identificados e todos, inclusive as vítimas, serão intimados para depor.

"A depender da autoria e da materialidade, será feito o termo circunstanciado e encaminhado ao juízo da comarca. Os autores podem ser processados por crime contra a honra, ameaça e incitação ao crime", pontua Campioni.

Entrada da cidade de Santo Anastácio, no oeste paulista - Marco Vinicius Ropelli/UOL - Marco Vinicius Ropelli/UOL
Entrada da cidade de Santo Anastácio, no oeste paulista
Imagem: Marco Vinicius Ropelli/UOL

A fé e suas faces

Santo Anastácio é uma cidade cujo centro, diferente dos demais municípios que margeiam a ferrovia Alta Sorocabana, foi planejado. Pretendia-se que fosse a capital regional, título que, devido a circunstâncias de desenvolvimento, ficou com Presidente Prudente.
Isso explica, por exemplo, as ruas largas e um planejamento urbano interessante: em uma das extremidades da rua principal está a Estação Ferroviária, um dos locais mais importantes da cidade no tempo da expansão para o interior (entre os séculos 19 e 20); na outra extremidade está a paróquia da cidade, dedicada ao santo que dá nome ao município.

A importância da igreja católica na região é grande, mas não por causa do prédio. As irmãs do Educandário São José, ao reiterarem a forma com que os intimidadores se apresentavam — "empresários e cristãos" — apontam, com certa tristeza, a desvirtuação dos valores do cristianismo por grupos "fanáticos".

"Eu entendo que o nosso ser cristão deveria ter o diferencial de acolher. Eu posso ter uma diferença com você tremenda em tudo, mas a partir do momento que falo que você está excluído da minha vida, do meu espaço, não estou mais te considerando meu irmão" destaca Neusa.

A irmã enfatiza, ainda, que se entristece com o fato de esses atos partirem de pessoas que professam a mesma fé que ela. "Isso está levando o cristianismo a um prejuízo que a gente não sabe a dimensão. As pessoas se julgam santas porque são religiosas, participam da celebração, vão à igreja todo dia, têm grupos de oração, e se dão o direito de julgar que o outro é o diabo, ou de falar que o outro vai para o inferno, que o outro é inimigo."

Igrejinha do educandário, em Santo Anastácio (SP) - Marco Vinicius Ropelli/UOL - Marco Vinicius Ropelli/UOL
Igrejinha do educandário
Imagem: Marco Vinicius Ropelli/UOL

A Congregação está em Santo Anastácio desde 1952. Há 50 anos, as irmãs administram um educandário que oferece, atualmente, o serviço de convivência e fortalecimento de vínculos para 200 crianças de 6 a 15 anos em situação de vulnerabilidade social, além de oficinas para 50 adolescentes de 15 a 17 anos e um projeto para atendimento a mulheres, o "Momento Esperançar".

Em sua edificação imensa, parquinho infantil, quadra, campo de areia, piscinas, capela e igreja continuam no mesmo ritmo. Questionadas se têm medo, Neusa e Sirlei afirmaram que não. Fizeram questão de convidar os autores das ameaças a visitar o educandário. "Nossa Senhora é o nosso exemplo, o nosso modelo de mulher evangelizadora."

Em relação a tomar medidas legais, informam que estão discutindo o assunto com o advogado da Congregação Filhas de Maria Missionária, e que a decisão ainda não foi tomada. O silêncio de Santo Anastácio, contudo, já não é mais o mesmo.