Como um carro da Tom Maior transformou o Pequeno Príncipe em cordel

Ferro. Madeira. Isopor. Espuma. Tecido e acabamentos. O carro alegórico "O reencontro com o aviador", último da Tom Maior a desfilar na madrugada de sábado (23) pelo Grupo Especial do carnaval de São Paulo, é uma representação do encontro da literatura de cordel com "O Pequeno Príncipe", clássico francês da literatura de Antoine de Saint-Exupéry. Inspirado na obra cordelista de Josué Limeira e Vladimir Barros "O Pequeno Príncipe em Cordel", o enredo da escola em 2022 foi adaptado pelo diretor de Carnaval Judson Sales e pelo carnavalesco Flávio Campello. No Anhembi, virou "O Pequeno Príncipe no Sertão".
Carros como "O Reencontro", mais engenhosos, são montados dias antes do desfile, na área da dispersão que fica no sambódromo do Anhembi. Chegam prontos e o encaixe é feito em pouco mais de 24h. "O Reencontro" chegou à dispersão do Anhembi em 17 de abril, mas sua concepção começou em março de 2020, junto com o enredo.
Foram mais de 700 metros só de tecido de seis cores. Para cada cor, cerca de 150 metros. E boia de piscina também (tarugo), cerca de 200 cortadas ao meio (400 no total, revestidas com tecido pastilhado ouro).
Faltando pouco mais de um dia para o desfile, Ulisses Ribeiro, 37, é o responsável pelos revestimentos das alegorias, a parte estética que inclui pedrarias, tecidos e montagem de peças. Ele faz ali os ajustes finais. "Foram mais de 50 quilômetros de fios de espelho. Em torno de mil pedrarias e mil metros de galões para acabamento", explica.
Uma costura fora do lugar chama sua atenção. Conserta. Sob o sol a pino, busca uma vassoura após corrigir os detalhes. Ele não para. É um homem negro, simpático e com uma função difícil: materializar a ideia. Nesse caso, dar um final visualmente feliz para uma história mundialmente conhecida.
Por ali estão Josué Limeira, o autor, e Vladimir Barros, ilustrador da adaptação em cordel. Eles observam "Reencontro" já montado com seus 14 metros de altura, 12 metros de largura e cerca de dez toneladas. Limeira, admirado igual menino, é só encantamento. "Essa parte de não abandonar as raízes, sabe?", afirma, enquanto observa trechos do livro reproduzidos em tamanho gigante. Um deles traz a clássica frase "O essencial é invisível aos olhos"m com um "minino" de chapéu sertanejo, braços atrás da cabeça observando o céu e mirando uma rosa, ilustração de Barros com forte influência do movimento armorial.
Um dos desafios foi adaptar personagens, começando pelo aviador, que conduz a narrativa do livro. No desfile, ele virou um caminhoneiro e ganhou o nome de Zé Peri, lembrando Saint-Exupéry, e se encontra com o "Galeguinho", que é o Pequeno Príncipe. Já o rei virou o rei do maracatu e a serpente virou uma cobra-coral.
Sorriso de criança
Quarta escola do Grupo Especial a entrar na passarela do Anhembi, "Reencontro" apareceu perto das 3 da manhã de sábado. Sobre ele, 52 crianças de entre 6 e 12 anos, vestidas como príncipes e princesas de chapéu de couro. A noite do desfile marcou o primeiro encontro delas com o carro. A coreógrafa Flavia Spicciati, 30, comandava tudo com mão de ferro. "Só faz o que a tia mandar", dizia.
A subida no "Reencontro" foi um procedimento delicado, por meio de um elevador, acompanhado por bombeiros. Todas as crianças fazem parte da Ala Tom do Futuro. "Ficaram alucinadas quando viram, então o grupo de apoio quadruplicou os cuidados. Na concentração eu ia incentivando, mas é tenso? Eu sei que ficam deslumbrados. É o olhar de uma criança."
No plano superior do carro, um carrossel de aviões gira ao lado de componentes vestidas de Bailarinas-Rosa. Nas laterais do carro, diversos livros abertos trazem reproduções idênticas de páginas do livro "O Pequeno Príncipe em Cordel". Os livros são lidos por crianças que se debruçam sobre ele. Ao centro do carro, no plano alto, uma escultura celebra o reencontro do aviador com o Pequeno Príncipe. Tanto essa escultura quanto aquela das crianças que lêem os livros nas laterais são revestidas por um tecido impresso que traz trechos da obra original.
Emily, uma das crianças mais animadas durante o desfile, fazia sua estreia no Anhembi. Algumas ali, banguelas, trocando os dentes de leite, batiam no peito com orgulho e cresciam ao escutar o trecho do samba que diz "nosso futuro está no sorriso da criança". Personificando, quem sabe, o futuro do samba.
Rainha da bateria, Pamela Gomes chega coberta por mais de 50 mil cristais. Está há nove anos no posto que foi ocupado pela tia, Andrea Gomes, atual madrinha da bateria. Coisa de família. A bateria vem com integrantes vestindo vermelho, roxo, azul, verde e amarelo. O tecido é o mesmo usado no revestimento do carro "Reencontro". Juntos, formam uma espécie de arco-íris numa sequência de cores. Na segunda metade do desfile, após o recuo e com a bateria na frente do carro, a leitura do todo faz sentido.
'Adultos são esquisitos'
O apego ao poder, a vaidade, a avareza, as regras sem sentido, o conhecimento raso do mundo. "O Pequeno Príncipe" é uma reflexão sobre enxergar o mundo com os olhos de uma criança, mas também uma crítica à inocência perdida. É sobre muitas coisas. E uma das frases mais repetidas no livro — "os adultos são mesmo muito esquisitos" — ganhou uma transição no samba da Tom Maior. "Esse mundo de mistérios / Não me faz compreender / Que tem rico de dinheiro que é tão pobre de valor".
O clássico de Antoine de Saint-Exupéry ganhou um final diferente no carro Reencontro — uma conclusão alegre, pra cima. No centro, a dupla que teve a ideia de cordelizar clássicos da literatura infantil canta que "um chamego é bom demais". Afinal, é Carnaval depois de dois anos na Terra, o sétimo planeta da epopeia do "minino". E o cenário perfeito para um reencontro, um abraço para selar o caminho de um final feliz. Como diz a letra, ainda é tempo de esperança.
Reencontro e despedida
O carro está na dispersão, aguardando o resultado que sai na terça-feira (26). Se a escola ficar entre as cinco primeiras colocadas, volta a desfilar no próximo sábado. Só depois disso começa o desmonte.
Boa parte volta para o barracão da Tom Maior, servindo de base para os adereços do próximo ano. Outros carros serão doados ou vendidos para escolas menores. É o eterno recomeço do Carnaval sobre o qual sonham sambistas, passistas e carnavalescos, feito crianças.
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