Com dívidas e prejuízo, bufês de SP retomam festas adiadas na pandemia
Isalice Amorim Garcia, 62, entrou no ramo dos bufês por acaso. Pediu as contas do trabalho de telefonista quando engravidou, pois o que ganhava não dava para pagar alguém para cuidar da criança. Em casa, aprendeu a fazer doces e salgados vendo programas de culinária na televisão. Um dia, ao abrir uma conta bancária no bairro da Vila Formosa, observou que havia poucas lanchonetes e docerias no local. Passou a levar os quitutes para a agência todas as tardes.
Sem carro, conta que carregava as bandejas nos braços pelo bairro. Agradou tanto que começou a ser indicada por igrejas e salões nas imediações. Quando se deu conta, já estava trabalhando com festas — e lá se vão 30 anos, muitos deles dentro do bufê que construiu, o Tâmisa, na Mooca.
Tudo ia bem até a pandemia. Às vésperas de um casamento, o mundo de Isa desabou. As flores estavam compradas; as bebidas na geladeira, doces e bolo, prontos. Precisou acalmar a noiva, que desatou a chorar. "Dona Isa, pelo amor de Deus! E agora?"
Isa não pensou nas cerca de 160 festas contratadas para 2020 e 2021, pois acreditava que era uma questão de semanas para tudo se normalizar. Enganou-se. As consequências da pandemia vieram a galope para ela e tantos outros.
"Eu estava esperando aquela carteira de clientes pagar, mas todos pararam."
Sem saber como dar conta das despesas, estava decidida a impedir que o trabalho de uma vida fosse por água abaixo. Procurou os clientes antigos, principalmente os do Santander (ex-Banespa, onde havia começado os quitutes) e voltou a vender bolos, doces e salgadinhos. Foi o que lhe deu um respiro.
Em meio ao marca-e-desmarca, a empresária teve de lidar com outro problema: o pânico causado pelo boato de que os bufês estavam fechando em massa. Não era de todo infundado. Ela soube de quatro que quebraram na região e de gente que pagou e ficou sem o evento. "Conheço espaços que pagam R$ 25 ou R$ 30 mil de aluguel. Difícil aguentar."
No sábado (6), o Buffet Tâmisa estava pronto para o casamento da noite. Quem via o salão não imaginava os perrengues que ela tem passado. Não entra dinheiro no caixa do bufê há dois anos, pois as festas que acontecerão até outubro foram pagas em 2019. A situação é ainda mais complicada com o aumento no preço dos alimentos. "O lucro que a gente teria é o que estamos pagando nas mercadorias", lamenta. Na ponta do lápis, o prejuízo encosta nos R$ 700 mil, em valor bruto.
Isalice Garcia precisou demitir cinco funcionários e agora não tem mais nenhum fixo. Como passa o dia preparando doces, bolos e salgados, recebe clientes no bufê à noite. Vive correndo para dar conta de tudo e recebe ajuda da filha, do marido e da irmã. "Lucro só a partir do momento em que eu fechar festa nova", constata. Serão necessários dois anos para cobrir os prejuízos.
Zero a zero
Em outro grau, alguns empresários conseguiram manejar o pior momento da crise. Às 10h do mesmo sábado, os preparativos para um casamento e um bar-mitzvá estão a todo vapor nas duas unidades do Espaço Wood, ambas no bairro do Brooklin, em São Paulo. As donas Anna Zarzur, 40, e sua sobrinha, Manoela Zarzur, 29, se apressam. Além dos eventos nos salões, elas precisam pegar a estrada para cuidar dos detalhes de um aniversário de 41 anos em Itu, no interior paulista.
O ritmo faz parecer ficção o que elas viveram dois anos atrás, quando souberam do decreto proibindo a realização de eventos. Como Anna tinha acabado de voltar da Suíça, onde a paralisação já era realidade, não ficou surpresa. As mensagens não paravam de chegar, mas a primeira coisa que ela fez foi ligar para a mãe de uma debutante, cuja festa aconteceria dias depois, enquanto Manoela tratou de doar a comida comprada. A comemoração foi remarcada para dali 15 dias.
Logo viram que a situação não era passageira. Haviam mudado a data de 53 das 93 festas contratadas, mas, como a pandemia se prolongava, começaram a espaçá-las mais. "A gente queria diminuir o trauma dos clientes, jogando mais para frente, em vez de ficar picando de 15 em 15 dias", conta Manoela. O jeito foi parar as vendas, num primeiro momento, e montar um departamento de crise. Como são sócias de outros empreendimentos e donas dos prédios que abrigam os dois salões, conseguiram atravessar a crise sem tantos sobressaltos.
O custo mais alto era o da mão de obra. Ainda assim, não dispensaram nem reduziram salários. Elas contrataram cerca de 20 pessoas que trabalhavam em bufês que fecharam, como o França, ou que foram demitidas. "Era gente boa que estava no mercado. Tínhamos o plano de ampliar a empresa para a parte de eventos externos. Era um plano para 4 anos, que acabou acontecendo em 4 meses", relata Anna.
Para evitar prejuízo, colocaram em prática sugestões dos funcionários e passaram a oferecer serviço de delivery em condomínios de luxo. Abriram a agenda para eventos a partir de 2022 e fizeram investimentos. Passaram a crise sem lucro, mas também sem dívida. Em outubro de 2020, reabriram o salão que já existia antes da pandemia e estrearam a unidade da avenida Chucri Zaidan, onde as empresárias receberam a reportagem do TAB.
"Quando dava meio-dia, o bufê inteiro parava para ver o que o [João] Doria ia falar. Parecia Copa do Mundo", lembra Anna. Em fevereiro de 2021 veio a autorização definitiva. Desde então, a agenda permanece cheia. Os funcionários continuam usando máscara e não vão parar tão cedo. Apenas sete festas foram canceladas na pandemia — por morte, separação dos casais ou mudança de endereço. As demais seguem esperando sua vez.
Sonhos que não voltam
Sem conseguir esperar a festa de um ano no Espaço Pipoca, no Tatuapé, crianças correm de um lado para outro enquanto funcionários preparam o local. A movimentação é acompanhada de perto pela proprietária Cristiane Giansante, 47, e seu marido Fernando Giansante, 49. Pouco antes de a celebração começar, o casal conta ao TAB como sobreviveu tanto tempo com as portas fechadas.
A experiência de ambos ajudou. Antes, Cristiane teve um bufê infantil em Curitiba. Fernando, por sua vez, fez um planejamento financeiro que resistisse a possíveis intempéries. Mantiveram a tranquilidade, mesmo com a chegada da pandemia. Pensaram que na pior das hipóteses ela devia durar seis meses. Nesse caso, o bufê, inaugurado em 2018, sairia ileso. Quando a crise chegou, ele tinha menos de dois anos de funcionamento. Era a hora de o investimento começar a dar retorno.
Foi um golpe duro porque o bufê era novo e estava começando a ser conhecido. Cerca de 40 festas contratadas para 2020 ficaram em suspenso. O casal reembolsou os clientes que cancelaram os eventos, conseguiu um desconto em torno de 40% no aluguel, acertou tudo com os fornecedores e separou dinheiro para o pagamento dos funcionários e despesas, que incluía a manutenção dos brinquedos. E Cristiane foi para casa.
Ela passava no bufê uma vez por semana para ver se estava tudo em ordem, mas sofria com as incertezas. "Fiquei bem abalada. Chegou um dia que falei: não vou mais lá. Se não voltar até dezembro, não tem como a gente ficar só injetando dinheiro", recorda-se.
Houve momentos em que até Fernando, que é mais pragmático, desanimou. "O mais difícil foi não saber até onde ia. Não tinha um limitador, um fim do horizonte, que seria o fim da pandemia", descreve o administrador de empresas.
Cristiane e Fernando ficavam sabendo de outros salões vendidos com desconto, cujos novos proprietários se responsabilizariam pela realização das festas. Eles não tinham queimado o caixa por necessidade econômica, mas estavam no limite. Além das preocupações, Cristiane convivia com a frustração dos pais. "A festa de 1 ano é um evento para a mãe. É como um casamento." Não são raros os casos em que estão sendo substituídas por aniversários de 3 anos.
O Espaço Pipoca tem 18 meses para voltar ao patamar financeiro de antes da pandemia. "No período, tivemos um prejuízo de R$ 300 mil. Tiramos dinheiro do bolso para manter o bufê", declara Fernando. As festas voltaram um pouco vazias porque os convidados temiam o vírus. Hoje, esse receio não existe mais. O que veio para ficar foi uma mudança no comportamento dos clientes. Antes eles pagavam o evento com seis meses de antecedência. Agora muitos fecham contrato um mês antes. Combinada à crise, a vida ganhou urgência e cautela redobradas.
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