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'É sempre humilhação': como a população de rua vê projeto de camping em SP

Nos últimos anos, a população de rua dobrou e barracas de camping se tornaram mais comuns na paisagem urbana de São Paulo - André Porto/UOL
Nos últimos anos, a população de rua dobrou e barracas de camping se tornaram mais comuns na paisagem urbana de São Paulo
Imagem: André Porto/UOL

Larissa Linder

Colaboração para o TAB, de São Paulo

20/05/2022 04h01

Era fim de tarde de terça-feira (17) e um vento gelado varria o centro de São Paulo. Fazia 14°C. Nas imediações da praça da Sé, as pessoas em situação de rua comentavam que a temperatura iria cair, e muito. Dali algumas horas, conforme apontava a previsão, a mínima atingiu 7°C.

Apesar do frio, Erik Maia Quintal, 26, vestia uma camiseta polo de manga curta, com calça jeans e tênis. Ele vive nas imediações do Pateo do Collegio, onde divide uma barraca com a companheira desde que ficou desempregado, três meses atrás, e o casal deixou um imóvel de três cômodos alugado em Sapopemba, na zona leste.

Quintal agora trabalha de segurança na Vila Sônia, na zona oeste, das 20h às 4h. Espera poder sair da rua com o novo emprego. "Eles nem imaginam que eu moro aqui", diz, referindo-se aos empregadores. "Vai que a vida tá me dando uma chance de contar minha história e alguém me ajudar?", pondera.

Enquanto uma casa não é realidade, a ambição é conseguir juntar R$ 130 para conseguir uma barraca nova, sem os furos da atual, comprada de segunda mão por R$ 50 com a venda de garrafas de água.

Erik Maia Quintal ao lado de sua barraca, no Pateo do Collegio - André Porto/UOL - André Porto/UOL
'Vai que a vida tá me dando uma chance de contar minha história e alguém me ajudar', diz Erik
Imagem: André Porto/UOL

Longe dali, na Mooca, zona leste, Silvana Rodrigo Macedo da Silva, 43, uma mulher negra e miúda, tomava sol em cima de um cobertor na manhã de segunda-feira (16). Na primeira noite que passou na rua, lembra, não dormiu. "Sentei assim", mostra, enquanto abraça os joelhos. Era 2020 e a pandemia já durava uns meses. O salário de cozinheira em uma pequena empresa de marmitas veganas encolheu quando chegou a covid-19. Por fim, a empresa se foi e, com ela, o emprego.

Sem querer pedir ajuda a familiares ou amigos ("sou muito orgulhosa", justifica), ela decidiu ir dormir sob uma marquise na avenida Vital Brasil. Com ela, apenas uma mochila. Ficaram para trás o filho mais novo, hoje com 12 anos, morando com a irmã, e um conjugado alugado em Osasco pelo qual já não podia pagar.

Silvana não tinha contado a ninguém onde estava morando: uma barraca de camping, próxima do Centro de Acolhida São Martinho e da paróquia onde atua o padre Júlio Lancellotti, conhecido por seu trabalho junto à população de rua há cerca de quatro décadas.

Barraca na Praça da Sé, no centro de São Paulo - André Porto - André Porto
Prefeitura considera montar camping para população de rua de São Paulo
Imagem: André Porto

Ali, onde pode contar com a estrutura com banheiros do centro de acolhimento e os serviços de refeições liderados pelo padre, pareceu um lugar melhor para estar. Ela divide a morada com João Paulo, 24, em situação de rua desde os 16. Ele vende balas para juntar dinheiro para comprar sua própria barraca.

Histórias como as de Erik, Silvana e João Paulo são cada vez mais comuns em São Paulo. Entre 2015 e 2021, a população de rua na cidade dobrou e atingiu o recorde de 31.884 pessoas.

Passaram a fazer parte da paisagem urbana também as barracas de camping, em calçadas, sob marquises ou lonas — o que levou a gestão municipal a desengavetar uma ideia ventilada há alguns anos: um camping para a população de rua, com acesso a chuveiros, banheiro e local para lavar roupas. Quem tenta concretizar o projeto é a ex-vereadora Soninha Francine, atualmente à frente da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania.

Tendas improvisadas no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Tendas improvisadas no bairro de Pinheiros, na zona oeste da capital paulista
Imagem: André Porto/UOL

Chuva, frio e fogo

Para Silvana e João Paulo, a ideia de um camping que agrupasse algumas barracas, com serviços básicos, não parece ser ruim. Uma das vantagens apontadas é a segurança, que eles supõem que haveria, No entanto, reclamam que os albergues municipais que existem hoje não são lugares com boas condições de higiene ou segurança, com roubos frequentes — e que, por isso, preferem permanecer na rua.

"Já tive barraca", diz Renata Leite Gomes, 39, há 15 anos nas ruas. A ideia do camping lhe parece "ridícula". "O pior da rua é a chuva, a barraca não aguenta", conta ela, que vive em uma calçada da Mooca, sob uma lona amarela. Chuva e frio são algumas das reclamações mais frequentes de quem vive em barracas. Para evitar que tudo se molhe, muitos as apoiam em um pallet de madeira e as cobrem com lonas.

"O que eu quero mesmo é ter um quarto e um banheiro", diz. Um banheiro é muito importante, sinaliza — hoje, é improvisado com um balde ou uma sacola. Mas diz que não aceitaria nada de graça. "Se me dessem um lugar, e eu pagasse pela luz e pela água, seria bom."

Marcela Correia dos Santos, 32, viu seu barraco desabar por volta de 3h de uma madrugada fria de 2020, levado por uma enxurrada. Teve tempo apenas de acordar em meio à gritaria da rua e salvar o RG. A lembrança da primeira noite na rua, no Anhangabaú, faz seus olhos marejarem. "Chorei muito, não conseguia dormir, vi o dia clarear. Tinha medo que 'tacassem' fogo na gente, na lona", lembra.

Marcela Correia dos Santos, na sua barraca, no bairro de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Marcela saiu do centro e se instalou em uma barraca em uma rua arborizada de Pinheiros
Imagem: André Porto/UOL

O camping, considera ela, poderia ser uma boa ideia se garantir mais segurança. Mas Marcela preferiria conseguir juntar dinheiro para comprar um barraco, acrescenta. "Fomos visitar uma favela outro dia, e estavam pedindo de R$ 5.000 a R$ 10 mil por um barraco. Falei que vivo na rua, não tenho como ter esse dinheiro, e baixaram para R$ 2.500. Mas mesmo assim é muito."

Hoje ela vive em uma barraca em uma rua calma e arborizada de Pinheiros, na zona oeste. Ao lado há outra tenda, onde vive Pilar dos Santos Junior, 30. Elas se conheceram na praça da República e ficaram amigas. As moradas de ambas são protegidas por lonas plásticas pretas para abrigá-las da chuva e do frio.

Desde que saiu do centro e se instalou em Pinheiros, Pilar conta que conseguiu se manter longe das drogas. Há mais tranquilidade, mas ela e a amiga dependem de serviços como doações de alimentos e locais de acolhimento que estão concentrados na região central. Assim, coisas aparentemente simples como tomar um banho exigem uma viagem de ônibus até a República.

"É sempre uma humilhação, porque precisamos pedir carona, e nem todo motorista [de ônibus] dá", lamenta Pilar. Há um centro de acolhida a poucos metros dali, na rua Cardeal Arcoverde, mas Marcela e Pilar, mulheres trans, não tiveram boas experiências por lá: dizem que se sentiram desrespeitadas no banheiro. Elas também tiveram a oportunidade de se instalar em um albergue para a população trans, mas preferiram não ir -- ambas têm companheiros e não quiseram deixá-los para trás.

Pilar dos Santos, na sua tenda improvisada em uma rua de Pinheiros - Antônio Porto/UOL - Antônio Porto/UOL
Pilar dos Santos, na sua tenda improvisada em uma rua de Pinheiros
Imagem: Antônio Porto/UOL

'É o máximo que SP consegue oferecer?'

A ideia de abrigar a população de rua em campings organizados pela gestão municipal dividiu opiniões inclusive nos movimentos sociais. Trata-se de um assunto "delicado", diz a vereadora Erika Hilton, 29, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara de Vereadores de São Paulo.

"Durante o momento mais grave da pandemia, parte do movimento pensou que talvez essa ideia, com uma forma de autogerenciamento, num caráter emergencial, pudesse dar conta das famílias desabrigadas", explica. "Agora, num momento em que se consegue pensar melhor, essa ideia tem sido refutada."

Refutada, diz Erika, devido ao caráter higienista da proposta, podendo simplesmente varrer a população de rua do centro (onde há acesso a refeições e outros serviços) e deixá-la sob "vigilância" noutras áreas. "Pode haver uma criminalização das barracas que não sejam nesse camping", acrescenta.

Hoje já é frequente que barracas de pessoas em situação de rua sejam recolhidas pela prefeitura. Silvana, por exemplo, já está na quarta barraca — as anteriores foram levadas embora. "Levam tudo que a gente conseguiu juntar, só deixam tirar o documento", relata. Isso se o morador estiver junto à barraca, conta Marcela. "Se não, nem documento sobra."

Janaína Xavier, integrante do Comitê PopRua - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Janaína Xavier, integrante do Comitê PopRua, vive em um prédio ocupado na avenida Rio Branco, no centro
Imagem: André Porto/UOL

"A prefeitura pegou as barracas e triturou todas", relata o padre Júlio Lancellotti, 73. "Na cidade mais rica do Brasil, o que se tem para oferecer para a população de rua é camping? É o máximo que São Paulo consegue oferecer para as pessoas que estão na miséria?", questiona. "Se você ficar sem casa, vai querer morar numa barraca num camping da prefeitura? Então por que o pobre tem que querer?"

Janaina Xavier, 43, integrante do Comitê Intersetorial da PopRua (Política Municipal da População em Situação de Rua), também vive o drama de quem não tem onde morar. Desde o início da pandemia, ela está com os filhos em um prédio ocupado na avenida Rio Branco, ao lado de muitas famílias que não puderam mais pagar aluguel nos últimos anos.

"Para quem dorme ao relento, debaixo de chuva e de sol, a pessoa pode até aceitar uma proposta dessa [do camping], mas quem está na luta por moradia, não", diz. "Se eu estivesse na rua, não ia querer ficar numa barraca. Dividir o banheiro com um monte de pessoas? E pra trocar de roupa?", pergunta.

Até agora, não se sabe como, onde e quantos campings seriam organizados na cidade — procurada pelo TAB para detalhar a proposta, Soninha Francine, da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania, não deu entrevista por motivos de agenda. A Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, por sua vez, informou que serão instaladas dez tendas com acesso a serviços "sempre que [a] temperatura atingir 13ºC ou um índice menor". Ali, as pessoas teriam acesso a cobertores e sopas, além de vacinas contra covid-19 e influenza. Não podem, porém, morar.