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Recife para obra de casas populares por descoberta de cemitério do séc. 16

Josinete Matos, moradora da comunidade do Pilar, aguarda a construção de casas populares prometida pela prefeitura de Recife - Clara Gouvêa/UOL
Josinete Matos, moradora da comunidade do Pilar, aguarda a construção de casas populares prometida pela prefeitura de Recife
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

Jorge Cosme

Colaboração para o TAB, de Recife

05/05/2022 04h01

Ao lado do maior cemitério colonial do país, no centro do Recife, a catadora de recicláveis Josinete Matos pega sua Bíblia de capa vermelha e sai de casa para pregar. Caminha rumo a um descampado onde já se profetizaram bons presságios. Antigas promessas diziam que ali, a essa altura, seria o lar de muitos. Josinete se ajoelha. Nas pregações, muitas feitas de madrugada, pede sempre: "Jesus, veja só essa situação. A gente precisa de moradia digna, Senhor".

A mulher de 54 anos acredita que, por causa das recorrentes orações em voz alta, as pessoas deduzem que lhe falta sanidade, mas isso não a preocupa. "Eu digo assim: 'Deus, o prefeito tem leite quente, chuveiro quente, cama boa para dormir. Dê um sonho a ele mostrando o que o pobre passa aqui, para que ele acorde no outro dia e diga 'vamos correr para deixar esses apartamentos prontos'."

O prédio da Prefeitura do Recife está a cerca de 500 metros do barraco de Josinete, mas ela não sabe com o que o prefeito tem sonhado.

Igreja de Nossa Senhora do Pilar fica em frente à comunidade, em Recife - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Igreja de Nossa Senhora do Pilar fica em frente à comunidade
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

A manhã da catadora começou debaixo de chuva, o que torna sua vida e a dos demais moradores da comunidade do Pilar um pesadelo. Os barracos de madeira têm goteiras e infiltrações. A apertada viela de terra fica cheia de poças. Cruzá-la exige cuidado -- é como pisar em ovos.

Aqueles barracos já deveriam estar desocupados, conforme o projeto urbanístico anunciado em 2009, que previa a entrega de 588 habitações para aquela comunidade até 2012, numa área próxima. Desse total, 192 foram entregues e 256 estão em andamento, embora os moradores afirmem que não estão vendo nem sinal de obra. As demais casas ainda serão iniciadas. O cronograma foi alterado diversas vezes. Uma das razões foi a descoberta de um sítio arqueológico em 2013, durante a construção de um dos prédios habitacionais.

Prédios do conjunto habitacional de Pilar, no centro de Recife, já erguidos e ocupados. A obra foi interrompida devido a um achado arqueológico de grandes proporções - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Prédios do conjunto habitacional de Pilar, já erguidos e ocupados
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

Operação 'para tudo'

A área do sítio totaliza 14,8 km². No entanto, o real tamanho só deverá ser conhecido com a finalização dos trabalhos de escavação. Sob aquelas terras já foram encontrados cerca de 40 mil fragmentos antigos, entre cerâmicas, peças de jogos, tijolo holandês, garrafas de bebidas, perfume, remédio, moedas, bala de canhão, escova de dentes e ossadas. Até o momento, 135 ossadas humanas foram identificadas na área. Em abril, os pesquisadores identificaram, dentro de um caixão, os restos mortais de um bebê -- único corpo guardado nessas condições.

Os indivíduos retirados dos níveis mais baixos -- em torno de dois metros de profundidade -- faleceram entre o final do século 16 e início do século 17 durante a ocupação holandesa, conforme o resultado dos primeiros testes de datação. Algumas evidências (organização enfileirada e predominância do sexo masculino) indicam se tratar de um cemitério militar.

Achados arqueológicos onde seriam construídos os conjuntos habitacionais para os moradores da comunidade do Pilar, em Recife - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Objetos de cerâmica encontrados em sítio arqueológico
Imagem: Clara Gouvêa/UOL
Vaso encontrado em sítio arqueológico do Pilar, no Recife - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Vaso encontrado nas escavações
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

As ossadas mais acima estão dispostas de forma mais imprevisível. Há pessoas de diferentes idades e ambos os sexos. A suspeita é que façam parte de um segundo cemitério do século 19, classificado como natural (que serve à toda comunidade). Os pesquisadores ainda descobriram vestígios do Forte de São Jorge, considerado a maior edificação brasileira do gênero do século 16.

A animação com a qual esses achados foram anunciados pela prefeitura não agrada aos moradores de Pilar. No barraco de um cômodo, sem banheiro, as amigas Bárbara Lopes e Gabriela da Silva cogitam fazer um protesto. A casa é de Bárbara e seus três filhos. Gabriela aluga uma casa em um dos habitacionais já entregues, enquanto o seu não fica pronto.

"Do nada mudou tudo", resume Bárbara, sobre a interrupção da obra. "É difícil viver aqui com três crianças, é muito calor. Não tem saneamento. É muita luta."

"A gente só vai perder com essas descobertas", diz Gabriela. "Eu não coloco muita fé que esses prédios vão sair. Estão investindo
nessa área da arqueologia e a gente vai ganhar o quê?"

A prefeitura do Recife estuda transformar o local das descobertas em um parque arqueológico aberto à visitação. A ideia é rechaçada por Gabriela e também por Priscila da Silva, 32, que diz morar no Pilar "desde a barriga da mãe".

"Não vai ser bom. Se já não estão fazendo nossas casas agora, imagina quando tiver esse parque. Os defuntos estão com mais prioridade que os vivos."

A bioarqueóloga Cláudia Cunha, que investiga o sítio arqueológico no Pilar, no Recife Antigo - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
A bioarqueóloga Claudia Cunha, que investiga o sítio arqueológico no Pilar
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

As relíquias de Pilar

Tapumes de metal separam a viela de barracos do Pilar do parque arqueológico onde as relíquias estão sendo encontradas. A poucos metros dali, Claudia Cunha trabalha na escavação de um esqueleto sem cabeça. A bioarqueóloga e professora da UFPI (Universidade Federal do Piauí) integra a equipe do Núcleo de Ensinos e Pesquisas Arqueológicas da UFRPE (Universidade Federal Rural de Pernambuco), contratada pela prefeitura para a pesquisa. As manifestações da comunidade não passam incólumes à pesquisadora.

"Cada esqueleto que a gente recupera é um livro. O cemitério todo é uma biblioteca", explica. A bioarqueologia é a área responsável por estudar restos humanos, como esqueletos e dentes. A partir desse material, busca-se reconstruir do indivíduo sua identidade, história de vida e características biológicas. "A gente estuda os mortos porque quer informações sobre os vivos."

Apesar de haver um fascínio com o cemitério militar e os mortos de origem holandesa, muitos dos vestígios encontrados são de pessoas daquela localidade, podendo até se tratar de ancestrais de quem ainda vive no Pilar. "Ninguém merece ser apagado do mundo como se não existisse, mas a história oficial só conta a vida dos famosos, dos ricos, dos poderosos. Minha função é recolher a história de quem não teve vez, de pessoas como as do Pilar. Sobre elas ninguém vai escrever nada, porque não são políticos, não são poderosos."

A pesquisadora Cláudia Cunha e o arqueólogo Rodrigo Ibson, no sítio arqueológico de Recife - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Claudia Cunha e o arqueólogo Rodrigo Ibson trabalham no sítio arqueológico
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

Segundo a especialista, os trabalhos de sua equipe podem, inclusive, oferecer ferramentas para as reivindicações da população. "Estudando o passado a gente acha solução para o presente. Problemas como desnutrição e saneamento básico, por exemplo: essas coisas se refletem na saúde das pessoas de hoje e de ontem."

Parte do terreno -- o descampado em que a catadora de recicláveis vai orar e que vira uma lagoa barrenta em dias de chuva -- já está liberado pela equipe de arqueologia. "O fato de a gente estar recolhendo os restos humanos de duas quadras não impede que a prefeitura vá construindo nas quadras que estão liberadas. Tem uma grande área ali. Não temos nada a ver com a interrupção."

Em nota, a prefeitura informou que a urbanização do Pilar é prioridade. Desde o início da urbanização da comunidade já foram investidos cerca de R$ 20 milhões na construção de 192 unidades habitacionais, além de uma praça, uma creche-escola, uma escola e uma "Upinha" (UPA menor para atendimentos de baixa complexidade). Outros R$ 3 milhões foram investidos nos estudos arqueológicos.

Vendinha na comunidade do Pilar, no centro de Recife - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Vendinha na comunidade do Pilar, mantida a cadeado
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

De acordo com a prefeitura, as obras das 256 unidades habitacionais em andamento foram iniciadas há 60 dias, têm prazo de 24 meses para conclusão e estão em fase de fundação. "Já os serviços de construção das 140 unidades restantes dependem do encerramento de estudos arqueológicos para serem iniciadas", diz o texto.

Devido aos achados, o projeto passará por adaptações. Ao todo, 70 moradias que seriam construídas onde foram encontradas as bases do Forte de São Jorge precisarão ser realocadas para outra área já escolhida, dentro do complexo.

O gerente de obras da Autarquia de Urbanização do Recife, Cláudio Melo, procurou a reportagem para afirmar que a obra na área alagada está em andamento e que a ausência de pessoas trabalhando no local se deve ao fato de se tratar de uma etapa não braçal. "Está chegando material, só que esse período de chuva, de inverno, complica a captação de areia", argumentou.

Área alagada em frente à comunidade do Pilar. Ao fundo, a estrutura do futuro Moinho Recife Business & Life, complexo hoteleiro erguido em dois anos - Clara Gouvêa/UOL - Clara Gouvêa/UOL
Área alagada em frente à comunidade do Pilar. Ao fundo, a estrutura do futuro Moinho Recife Business & Life, complexo hoteleiro erguido em dois anos
Imagem: Clara Gouvêa/UOL

Próximo à Igreja de Nossa Senhora do Pilar e dos blocos residenciais já entregues, Marcelo da Silva tem um pequeno comércio. De lá ele enxerga uma obra ao lado da comunidade. O Moinho Recife Business & Life vai contar com 112 apartamentos residenciais, hotel, além de lojas e cobertura com praça elevada, mirante e telhado verde. As obras tiveram início em agosto de 2020.

"O rico tem dois anos para subir os prédios. A gente está há 10 anos esperando", lamenta. "O que nós temos é um buraco que enche de água e fica arriscado a pegar dengue e outras doenças. Parece que a intenção é tirar o pobre daqui."