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Festa para 'ficar bruxo': brasileiros fazem baile funk clandestino no Japão

Nascido no Japão, Vinicius Shibata foi a um baile funk pela primeira vez: "A gente só quer isso: curtir o nosso rolê sem incomodar ninguém" - Gilberto Yoshinaga/UOL
Nascido no Japão, Vinicius Shibata foi a um baile funk pela primeira vez: 'A gente só quer isso: curtir o nosso rolê sem incomodar ninguém' Imagem: Gilberto Yoshinaga/UOL

Gilberto Yoshinaga

Colaboração para o TAB, de Okazaki (Japão)

02/05/2022 04h01

Noite de sábado, 30 de abril, segundo dia da Golden Week, um dos principais feriados prolongados do Japão. Nove quilômetros montanha acima, na cidade de Okazaki, na província de Aichi, dezenas de carros fazem fila no acostamento de uma estreita estrada, em direção a um mirante.

Ninguém parece interessado em contemplar a vista panorâmica da cidade, porém. Ali, o objetivo é outro: curtir um baile funk clandestino realizado por brasileiros — ou "fluxo", como definem seus frequentadores, brasileiros e japoneses.

O fenômeno, muito comum nas periferias do Brasil, sobretudo nas quebradas de São Paulo e Rio de Janeiro, começou a ocorrer no Japão há cerca de três anos, uma fórmula que vem dando certo — um local aberto e inabitado é escolhido; um carro com potentes caixas de som dispara os principais hits do funk brasileiro; e, geralmente, cada um leva sua própria bebida (ou outras substâncias que se queira consumir).

Flui aí uma aglomeração de pessoas, em sua maioria jovens, a formar um baile improvisado e passar horas a curtir, dançar, paquerar e "ficar bruxo", como eles dizem — uma gíria que quer dizer ficar alterado devido ao consumo de álcool ou substâncias ilícitas.

Pico secreto

Baile dos Bruxos, aliás, é o nome de uma dessas festas organizadas informalmente por brasileiros no território nipônico. As mais populares estão nas províncias de Aichi e Shizuoka, onde residem cerca de 90 mil dos 211 mil dekasseguis, como são chamados os brasileiros que migram para o outro lado do mundo para trabalhar nas fábricas japonesas. Outras festas famosas são o Fluxo dos Faixas e o Fluxo dos Relíquias.

A data é divulgada com antecedência, via redes sociais, mas o local costuma ser anunciado no próprio dia, para tentar escapar do radar da polícia. Foi assim com a festa realizada no último sábado: o "pico" só foi informado 3 horas antes do evento, programado para começar às 23h.

Amante da cena funk e oriundo de Diadema (SP), Eduardo (nome fictício), 19, foi quem criou um dos fluxos. "É pra falar mal?", ele questionou, ao saber que a reportagem do TAB estaria no baile. Não é por mal, mas Eduardo diz que já perdeu a conta de quantas reportagens retrataram o fenômeno de forma pejorativa. "O funk não é marginalizado só pela sociedade. A mídia também costuma deturpar nosso rolê, associando ele só a tudo o que é ruim."

A caminho do mirante na montanha, pouco antes de o baile começar, outro integrante da equipe organizadora também estava preocupado. "Cara, é quase certeza que a polícia vai baixar por lá. Só peço que você seja sensato quanto a isso", pediu-me Pedro (nome fictício), 28, natural de Guarulhos e há 15 anos instalado no Japão. "O preconceito não é só com o funk, também é de classe social. Quando os playboys de universidade tocam funk alto nos seus carros, por exemplo, a polícia não vai lá esculachar ninguém."

Às 22h36, chegamos ao local do fluxo, o estacionamento do mirante, área do tamanho de uma quadra poliesportiva. A garoa fina de repente cessa, mas o tempo nublado mantém a temperatura na casa de 14°C.

Baile funk no Japão - Gilberto Yoshinaga/UOL - Gilberto Yoshinaga/UOL
A data do baile foi divulgada com antecedência, mas o local só foi anunciado no dia, para driblar o radar da polícia
Imagem: Gilberto Yoshinaga/UOL

'Vizinhos' da montanha

Aos poucos, o público começa a chegar. "Não cobramos entrada porque nosso objetivo é apenas proporcionar a festa. Só pedimos uma colaboração de 300 ienes [equivalentes a R$ 11,50] porque, depois do fluxo, temos muito trabalho para limpar o local e encaminhar o lixo", explica Eduardo, um dos oito organizadores do fluxo. "Já somos mal vistos e não podemos dar motivos para que continuem difamando o funk. É nossa obrigação deixar o local do jeito que o encontramos."

Adolescentes e jovens na casa dos 20 anos compõem o grosso do público, mas alguns aparentam ter mais de 30. Metade possui traços de ascendência japonesa. Apesar do friozinho na primavera japonesa, a maioria das mulheres traja shorts ou minissaias; os homens se alternam entre trajes esportivos e grifes caras, uns ostentam visuais "chavosos", inclusive com riscos nos cortes de cabelo e nas sobrancelhas. Parte do público também exibe piercings, tatuagens e cabelos coloridos ou descoloridos.

Um carro de som superequipado retumba o repertório com os funks mais populares do Brasil — cujos graves potentes, ao longo da noite, fizeram disparar os alarmes de carros pelo menos 10 vezes. Rapidamente, cada grupo que chega toma para si um pedaço do estacionamento, como fazem banhistas em uma praia. Para demarcar território, instalam cadeiras de lona portáteis, caixas térmicas recheadas de bebidas e pequenas mesas com garrafas de destilados e narguilés. Forma-se o fluxo.

Pouco depois da meia-noite, quando cerca de 100 pessoas já curtiam a festa, uma viatura policial chega e, rapidamente, a música é interrompida. Os oficiais alegam que "vizinhos" reclamaram do barulho, algo impensável em um espaço ermo, no meio da mata, afastado por quilômetros de qualquer área habitada. Eles pedem para algumas pessoas se retirarem do local, mas, ante desobediência unânime, desistem e resolvem ir embora, 18 minutos depois. O funk volta a ecoar pela montanha.

Às 2h30, mais de 300 pessoas se aglomeram no baile, virou muvuca. Os organizadores autorizam cerca de 20 carros no local, além de algumas motos, que insistiam em "dar o grau", fazendo barulho com suas aceleradas. Outros mais de 60 carros se enfileiram por quase 500 metros de acostamento estrada vicinal abaixo.

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Mais de 300 pessoas se reuniram no baile no estacionamento de um mirante, com clima de festa na praia
Imagem: Gilberto Yoshinaga/UOL

Até o amanhecer

No fluxo, energéticos e garrafas de bebida alcoólica passam de mão em mão por todos os cantos, incluindo jovens, a olho, que dificilmente atingiram a maioridade. No Japão, o consumo de álcool e tabaco só é considerado legal a partir dos 20 anos. Vez ou outra, o ar também é tomado por cheiro de maconha, algo repreendido de forma bastante severa pela lei japonesa.

"No Brasil, há álcool e drogas em shows de qualquer gênero musical, raves e grandes festivais de música. Mas só quando a festa é de funk se dá ênfase a isso", reclama Aline Yukari, 22. "Não temos responsabilidade pelo que o público consome, já que não incentivamos nada. Só mantemos a ordem com relação a comportamento, evitando situações de desrespeito ou possíveis brigas", defende-se Eduardo.

Aline levou à festa sua amiga japonesa Miyuki Sato, 21. "É a segunda vez que venho a um fluxo. Adoro a cultura brasileira e a música funk, que faz o corpo dançar sozinho", conta. Ela diz que não entende as letras das músicas. "Mas minha amiga me traduziu algumas", afirma, antes de esconder um sorriso constrangido com uma das mãos.

Mas nem todo mundo dança nesse baile. Ao som de funk, muitos bebiam e conversavam com amigos como se estivessem na areia da praia, sentados. Um grupo até montou uma mesa de truco durante a festa. Entretanto, o clima praiano pesou diversas vezes quando o TAB tentou entrevistar as pessoas. "Pensamos que você fosse um policial a paisana, sei lá", justificou uma delas.

A festa se estendeu até o amanhecer. "É minha primeira vez no fluxo e gostei muito. Quero voltar mais vezes", diz à luz das 5h20 Vinicius Shibata, 18, nascido e criado no Japão. Ele conta que esteve no Brasil há alguns meses, mas, na ausência de alguém que o acompanhasse, não se sentiu seguro para ir a um fluxo por lá. "Olha isso aqui, tivemos que vir para o meio da montanha só para poder ter o nosso lazer. A gente só quer isso: curtir o nosso rolê sem incomodar ninguém", diz.

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No Japão, o fluxo ocorre em estacionamentos, com destilados e energéticos (cada um leva a própria bebida)
Imagem: Gilberto Yoshinaga/UOL

Deixa fluir

Com a pandemia mais controlada e mais de 80% da população vacinada, a ideia agora é levar o fluxo para um ambiente fechado, "para não ter importunação da polícia", diz Eduardo. Se possível, convidando artistas do Brasil. "O funk brasileiro já vem ganhando o mundo e precisa fincar essas estacas também no Japão."

O antropólogo brasileiro Hermano Vianna se surpreendeu com a existência de bailes no Japão. Na década de 1980, toda música dos paredões era importada no Brasil e, quando os bailes cariocas começaram a produzir seus sons, a polícia fechou as principais festas.

"Tudo indicava que aquilo iria permanecer um fenômeno confinado nas favelas do Rio. Não foi o que aconteceu. A força do pancadão é enorme, flui para todos os lados. Hoje, três décadas depois, virou música nacional (há funk paulistano, mineiro, bregafunk pernambucano e assim por diante). Surpresa enorme agora: os fluxos se internacionalizam. A comunidade brasileira no Japão está na vanguarda, mesmo 'clandestina'", diz Vianna, um dos principais intelectuais a estudar a cultura do funk.

"Tudo ganha um novo sentido do outro lado do mundo. Tomara que os fluxos japoneses inventem logo seu próprio funk, com tamborzão de taikô. Deixa fluir!", conclui.

Baile funk no Japão - Gilberto Yoshinaga/UOL - Gilberto Yoshinaga/UOL
Desconfiados, muitos não quiseram conversar com o TAB. 'Pensamos que você fosse um policial à paisana'
Imagem: Gilberto Yoshinaga/UOL