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Política de zero casos na China provoca êxodo em massa de estrangeiros

Agente de saúde paramentado observa a barreira de isolamento numa área residencial de Xangai, nesta quarta-feira (25). A região continua em lockdown - Aly Song/Reuters
Agente de saúde paramentado observa a barreira de isolamento numa área residencial de Xangai, nesta quarta-feira (25). A região continua em lockdown
Imagem: Aly Song/Reuters

Carla Viveiros

Colaboração para o TAB, de Xian (China)

26/05/2022 04h01

As duras medidas da política de "covid zero" na China foram capazes de controlar a situação pandêmica de um país de mais de um bilhão de habitantes. Testagem em massa ininterrupta, fronteiras fechadas e lockdowns abruptos, sem prazo para acabar, conseguiram domar a covid-19 no país. Mas, se no resto do mundo a sensação é de abertura gradual e irrestrita das atividades, a China prossegue em sua política implacável.

Xangai é o centro econômico e a vitrine cultural da China. Ser xanganês traz um peso social enorme e até conta pontos na hora de se buscar um pretendente. Mesmo assim, a cidade de 26 milhões de habitantes encarou mais de um mês de lockdown severo, com diversas remoções para quarentenas centralizadas (quando você é retirado da sua casa para centros de quarentena, sejam eles hotéis ou, em sua maioria, ginásios ou estádios adaptados).

Esse foi o caso do publicitário português João Leal Pereira, 32, que mora na China há seis anos. Em uma testagem em massa, seu exame deu positivo. Após o resultado, ele foi encaminhado para um centro de quarentena, onde ficou por 8 dias. O publicitário conta que o local tinha mais de 600 pessoas contaminadas e não havia separação física entre os recém-chegados e os já em recuperação.

Pereira não podia tirar a máscara e viveu sob luzes acesas na maior parte do tempo. Ainda assim se considera sortudo, pois o martírio acabou depois de pouco mais de uma semana, quando recebeu dois resultados negativos seguidos. "Algumas pessoas estavam lá havia mais de 18 dias, mesmo sendo assintomáticos", relata o publicitário, que tomou a decisão de deixar o país após essa experiência.

Xangai é a cidade chinesa que mais recebe expatriados. Por isso, o último lockdown levantou um assunto que já estava em ebulição por todo o país: a debandada de estrangeiros por causa da política de zero casos.

O publicitário português João Leal Pereira, em Xangai, em 2021 - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
O publicitário português João Leal Pereira, em Xangai, em 2021
Imagem: Arquivo Pessoal

Em 18 de março, That's Shanghai, uma revista local, divulgou os resultados de uma pesquisa online. Cerca de 85% dos estrangeiros residentes da cidade estavam "repensando seu futuro na China" por causa dos constantes lockdowns. A pesquisa também indicou que 48% dos entrevistados planejavam deixar a China no próximo ano. Cerca de 88% dos que responderam ao questionário moravam na China havia mais de três anos.

A paulistana Caroline Terenci, 33, que trabalha com moda e sustentabilidade, mora em Xangai há quatro anos e não tinha planos de ir embora da China tão cedo, mas, depois de um lockdown de 48 dias, tudo mudou. "Meu sentimento, que era de segurança e estabilidade, se tornou o oposto após o lockdown", afirma. Terenci só podia sair do apartamento para fazer os testes exigidos pelo governo, ou buscar encomendas de comida na entrada do prédio.

Ruas de Xangai vazias após 48 dias de lockdown - Caroline Terenci/Arquivo Pessoal - Caroline Terenci/Arquivo Pessoal
Ruas de Xangai vazias, após 48 dias de lockdown
Imagem: Caroline Terenci/Arquivo Pessoal

As medidas recentes contribuíram para essa decisão. "Já faz mais de 2 anos que não vejo minha família. Eu tinha esperança de as fronteiras se abrirem em breve, mas, depois desse caos, percebi que não vai acontecer tão cedo. Resolvi ir embora."

Aqui ninguém passa

O êxodo de estrangeiros da China se iniciou com o fechamento das fronteiras por tempo indeterminado desde março de 2020, sem previsão de abertura. É possível entrar no país se a pessoa tiver um visto de residência ativo, seja de trabalho ou familiar. Além do visto, é preciso passar por um processo de testagem e quarentena — dependendo do destino final, o isolamento pode durar de 14 a 28 dias.

A emissão de qualquer visto novo está suspensa para a China. Essa é uma questão séria para estudantes internacionais, com ou sem bolsa de estudos, que até agora estão assistindo às aulas online.

Nas poucas vezes em que o governo flexibilizou minimamente a entrada de estrangeiros no país, o número de casos aumentou logo em seguida. Nessas levas, muitos estrangeiros que ficaram "trancados" para fora do país tiveram a chance de voltar, mas agora estão indo embora de vez.

Esse foi o caso de Marina Stuart, 34, que se mudou com o marido para China há 7 anos e meio, após ele ter recebido uma proposta de trabalho. O casal tem dois filhos, ambos nascidos em território chinês.

Em 2020, a família ficou sete meses sem poder retornar para casa, morando em apartamentos alugados por temporada na Europa, onde fica a sede da empresa onde o marido de Marina trabalha. Em outubro daquele ano, eles conseguiram voltar à China, mas logo em seguida as fronteiras se fecharam de novo.

Aquela foi a maior e última flexibilização na entrada de estrangeiros desde o início da pandemia no país. A família cresceu com o nascimento de mais um filho, e todos os planos de suporte nesse momento tão delicado foram frustrados. Ainda assim, Marina Stuart e o marido persistiram na China.

As coisas pioraram quando sua filha de quatro anos começou a ter dificuldade de receber atendimento médico. Se um dos sintomas do paciente for febre, ele precisa ser testado para covid-19 antes mesmo de dar entrada no hospital.

Em um dado episódio, o marido de Stuart ficou cinco horas com a criança em um corredor de pronto-socorro, aguardando sair o resultado do teste de antígeno para covid-19. Mesmo com quadro de pneumonia, ela não podia ser internada sem a confirmação do outro diagnóstico. Ali, os planos de partir no final de 2022 começaram a ser traçados.

A exaustão de Stuart e sua família atingiu o limite quando casos de pais e crianças separados por causa de contaminação de covid-19 mobilizaram a opinião pública. Vídeos de crianças sendo tiradas dos braços dos pais tomaram a internet, criando comoção e desespero em pais estrangeiros.

"Quando começaram a testagem em massa na cidade em que morávamos [Ningbo] e a escola da minha filha foi fechada por causa de um contato próximo, decidimos antecipar nossa saída. Fui embora com meus dois filhos na mesma semana."

Agente de saúde corta o cabelo de um morador na calçada, no distrito de Jing'an, em Xangai - Jector Retamal/Reuters - Jector Retamal/Reuters
Agente de saúde corta o cabelo de um morador na calçada, no distrito de Jing'an, em Xangai
Imagem: Jector Retamal/Reuters

Clima pesado

Outra família que passou por algo semelhante e decidiu ir embora foi a de Karina Sayuri, 40. A dona de casa também teve um bebê durante a pandemia e passou por um pré-natal tenso — embora vivesse em Ningbo, ela decidiu fazer o pré-natal em Xangai.

A ida ao médico trazia uma tensão extra, já que Sayuri tinha de viajar para fazer o acompanhamento. Outro detalhe começou a causar estranhamento: a reação de chineses ao verem uma família estrangeira circulando. Sayuri passou a ser evitada nos elevadores, e as crianças do condomínio corriam de sua filha mais velha, enquanto ela brincava no parquinho.

"Mesmo com a maioria da população vacinada, os controles estão cada vez mais rígidos. Não corremos risco de pegar covid-19, mas o resto parece que pouco importa. (...) A gente achou melhor ir embora antes que eles criem regras mais rígidas e fique cada vez mais difícil para estrangeiros viverem aqui", diz Karina.

Ninguém sabe quais serão as consequências das longas quarentenas. Cidades inteiras foram fechadas por causa de alguns poucos casos. Testagens em massa se tornaram parte da rotina, mas o impacto do lockdown é o mais desgastante, emocional e financeiramente.

A dona de casa Karina Sayuri, que decidiu ir embora da China com a família por causa da política de zero casos do país - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
A dona de casa Karina Sayuri, que decidiu ir embora da China com a família por causa da política de zero casos do país
Imagem: Arquivo Pessoal

Alguns estrangeiros contam com o apoio de seus empregadores, mas não todos, até porque muitas indústrias estão sofrendo com o abre e fecha. Apesar de a China ter uma estrutura logística extensa, moderna e rápida, quando uma cidade fecha, o abastecimento fica comprometido.

Leila Navarro, 45, sentiu essa mudança durante a quarentena de 54 dias que passou recentemente na cidade de Changchun. "A política de zero casos nos afetou de diversas formas. A mais recente foi a competição pela comida e o aumento abusivo de preços."

Por que a China insiste em continuar com medidas tão restritivas? Segundo Ma Xiaowei, chefe da Saúde do país (que equivale ao cargo de ministro da Saúde), o tamanho da população é o que norteia as decisões em relação ao controle pandêmico. "Se abandonarmos os esforços para a prevenção e relaxarmos as medidas, o sistema de saúde chinês ficará sobrecarregado e a saúde de um grande número de pessoas com doenças pré-existentes, idosos, crianças e mulheres grávidas estará em risco", declarou Ma em março.

O diretor da OMS (Organização Mundial de Saúde), Tedros Adhanom, sempre elogiou e apoiou as medidas chinesas de combate à pandemia, mas recentemente declarou que uma flexibilização é necessária e que a continuação dessas práticas é insustentável.

Todos os entrevistados ouvidos pela reportagem são unânimes em afirmar que não havia planos de ir embora da China antes da pandemia. Esse último levante de casos, capitaneado pela variante ômicron, fez com que a qualidade de vida, a aventura, a conveniência de se morar aqui se tornassem pequenas diante de tanta insegurança e restrição causados pela política de zero casos. "O êxodo de estrangeiros já era previsto. Não sentimos mais vontade de estar aqui desde 2020", diz Navarro.