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'Meus olhos até brilham': Copa LGBT de handebol renova sonho de atletas

Terceira edição do Queer Cup aconteceu pela primeira vez em São Paulo - Maria Eduarda Delfino/Divulgação
Terceira edição do Queer Cup aconteceu pela primeira vez em São Paulo
Imagem: Maria Eduarda Delfino/Divulgação

Do TAB, em São Paulo

29/05/2022 04h01

O som do piseiro e o cheiro dos espetinhos de carne pairavam no ar gelado na zona sul de São Paulo na última sexta-feira. O combo sensorial saía de um boteco na Vila Mariana e dava boas-vindas aos competidores do terceiro Queer Cup, competição nacional LGBTIA+ de handebol, o primeiro do gênero sediado na capital paulista.

Diante do público predominantemente masculino, jovem e ruidoso, o proprietário do Bar da Sofrência listava, orgulhoso, os mimos preparados para a ocasião: chope artesanal, churrasqueira móvel e um cantor de forró. "É uma honra receber esse campeonato, eles mudaram a cara do bar", dizia Luciano dos Santos, 39.

Seu boteco mudou de ares quando o primeiro time gay de handebol de São Paulo passou a se encontrar ali após os treinos na região. Anfitrião daquela edição, o Fadas escolheu recepcionar times de outros estados, como o Bharbixas, de Belo Horizonte, e o Lendários, do Rio de Janeiro, à sua maneira.

A calçada rapidamente lotou de atletas profissionais, amadores e outros tantos que estreariam em quadra no fim de semana. Entre piadas, gongação e passos de forró, todos riam alto e se abraçavam. Não faltavam motivos para a animação: o Queer Cup voltava após a pandemia com apoio inédito da CBHb (Confederação Brasileira de Handebol), o que surpreendeu até os veteranos. "É um ganho sem tamanho. Eles tiveram uma cabeça muito aberta. Somente com diversidade você atrai mais atletas para a modalidade se fortalecer", observa o advogado Rogério Dervanoski, 32, criador do campeonato em 2018.

Jogador de futebol no PampaCats, time do Rio Grande do Sul, Dervanoski ajudou a criar o Fadas logo que se mudou para São Paulo, naquele mesmo ano. Fez um anúncio no Instagram, acreditando que levaria meses para reunir os 14 atletas necessários para montar a equipe. "Na primeira semana, o Instagram não deixava mais eu responder as pessoas", lembra.

Pela primeira vez em São Paulo, os mineiros do Bharbixas ocupavam a mesa mais animada - Marcus Oliveira/Divulgação - Marcus Oliveira/Divulgação
Pela primeira vez em São Paulo, os mineiros do Bharbixas ocupavam a mesa mais animada
Imagem: Marcus Oliveira/Divulgação
No boteco habitual dos Fadas, confraternização com os times de outros estados - Marcus Oliveira/Divulgação - Marcus Oliveira/Divulgação
No boteco habitual dos Fadas, confraternização com os times de outros estados
Imagem: Marcus Oliveira/Divulgação

Com um cachecol com as cores da bandeira do orgulho LGBT, ele conta que a onda de times e campeonatos voltados para pessoas gays e lésbicas é recente, iniciado em 2017, na esteira da Champions Ligay e o Gay Prix, eventos gays já tradicionais do futebol e do vôlei, respectivamente.

Para quem vê segregação, ele costuma responder: "A ideia é que o esporte seja totalmente inclusivo, mas esses times servem para mostrar que existe um ambiente protegido", explica. "Por muitos anos fomos excluídos dos esportes que amamos pelo ambiente opressor. É difícil a gente ir ao estádio, onde é permitido xingar de tudo. A gente não se sente bem-vindo."

Pela primeira vez em São Paulo, os mineiros do Bharbixas ocupavam a mesa mais animada, onde se misturavam atletas de alto rendimento de Belo Horizonte e um número grande de estreantes. "Eles viram no Bharbixas uma possibilidade de conforto", explica o jogador Ale Magalhães, recordando um dos últimos jogos do time, na semifinal de uma copa regional. Na quadra, a disputa se deu também com comentários homofóbicos e uma pressão física desmedida do time rival. "Mas todo mundo que está aqui já está calejado, nós saímos dos nossos times onde sofríamos isso sozinhos. Agora, se um fraquejar, o outro vai estar lá pra ajudar. Nós somos muito unidos."

Guilherme Tenfen e Ivo Oliveira se conheceram por causa do esporte, mas nunca haviam se enfrentado - Divulgação - Divulgação
Guilherme Tenfen e Ivo Oliveira se conheceram por causa do esporte, mas nunca haviam se enfrentado
Imagem: Divulgação

Namorados e adversários

O forró só para na hora do sorteio das chaves. Antes, alguns recados das árbitras Bruna e Renata Correa Garcia, gêmeas com larga experiência em partidas profissionais. Algumas regras mudaram, como o número de passes necessários para se configurar jogo passivo (quando se perde posse de bola por demora a rematar à baliza). O aviso gerou um burburinho de trocadilhos e gargalhadas, que só aumentou quando o sorteio revelou o primeiro confronto, entre os times paulistas Fadas e Bulls. "Torta de climão", gritou alguém.

A partida inaugural colocaria em lados opostos um casal de namorados. Guilherme Tenfen e Ivo Oliveira se conheceram por causa do esporte, mas nunca tinham se enfrentado. "A gente sentou e conversou para não levar o estresse de quadra para fora, nem de fora para quadra. A gente fica só na provocação: 'Se fizer gol no meu time, não vai ter nada essa semana'", ameaça Oliveira, 31, jogador do Fadas. Tenfen, do Bulls, indica, sorrindo: "Ele é mais competitivo".

Algumas mulheres prestavam atenção aos recados agarradas ao copo de cerveja. Embora o Fadas esteja montado um time feminino de handebol para bissexuais e lésbicas — e ampliando o chamado para atletas trans, ainda raras no esporte —, o time por ora entra em campo com elenco misto. "Gostaria de jogar em um time feminino, mas devo confessar, para o meu ego, defender a bola de um homem é muito maravilhoso", ri a goleira Luciana Bortoletto, 31. "O cara vem com sangue nos olhos pensando: 'É mulher'. A gente sente."

Luciana Bortoletto, goleira do Fadas - Marcus Oliveira/Divulgação - Marcus Oliveira/Divulgação
Imagem: Marcus Oliveira/Divulgação
Luciana Bortoletto, goleira do Fadas - Divulgação - Divulgação
Luciana Bortoletto, goleira do Fadas
Imagem: Divulgação

O handebol é sua paixão desde a infância em São Roque, no interior de São Paulo. Quando jovem, esteve a um passo de entrar num time federado, mas desistiu por falta de investimento e incentivo. Retomou o sonho quando descobriu o Fadas. "É incrível sentir que se pertence a um espaço para jogar o que você ama e não ser julgado por ser afeminado ou mais masculina. É maravilhoso", diz.

Percepções e histórias parecidas se repetem ali pelas mesas. "Você imagina quanto atleta bom parou de jogar por preconceito, que nunca conseguiu sequer se desenvolver. Muitas pessoas que estão aqui não jogam handebol desde a escola", observa Dervanoski.

Sonhos interrompidos

Foi também através da escola que o meia-direita Bruno Costa, 28, tomou gosto por futebol e handebol. Numa dessas partidas, chamou atenção de olheiros do time de São José dos Campos, a 110 km de São Paulo. Tinha 14 anos quando integrou o time juvenil da sua cidade. Na época, assumiu a homossexualidade publicamente para a família e os amigos de quadra. Os atletas sempre o apoiaram, o problema, diz ele, era a comissão técnica.

"Eles queriam barrar meu jeito, se a gente brincasse com alguém eles achavam ruim e assim fomos sendo deixados de lado", conta. Nunca subiu para a categoria Junior. Soube, anos depois, que o técnico à época comentava que Costa tinha tudo pra tudo certo, "se não ficasse com viadice". "Tinha o sonho de fazer parte da seleção, eu sabia que tinha condições. Aquilo me machucou." Ao conhecer o Fadas, Costa trouxe junto mais três amigos do interior. "É aqui que a gente tem que ficar", disse aos colegas.

O campeonato aconteceu no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa do Ibirapuera - Divulgação - Divulgação
O campeonato aconteceu no Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa (COTP) do Ibirapuera
Imagem: Divulgação
Bruno Costa, do Fadas (primeiro à direita): meia-direita e coreógrafo do time - Divulgação - Divulgação
Bruno Costa, do Fadas (primeiro à direita): meia direita e coreógrafo do time
Imagem: Divulgação

Afastado da muvuca no bar, ele está na esquina da rua, ensaiando a coreografia que o time vai apresentar antes do primeiro jogo — uma tradição da Queer Cup. "Quando eu ia imaginar fazer uma coreografia dessa na quadra?", observa, ao som de Gloria Groove e Luísa Sonza.

A noite de boas-vindas não iria muito longe, já que o foco ali para todos era o rendimento no sábado. Ale Magalhães repetia a decisão da sua equipe: "Meia-noite e meia todo mundo em casa, temos um compromisso com quem nos apoiou."

Entre o gol e a coreô

O campeonato começou às 8h da manhã no COTP (Centro Olímpico de Treinamento e Pesquisa) do Ibirapuera, com torcida, gritos de incentivo e sem sinal de ressaca.

Na abertura, uma mensagem de Thiagus Petrus, jogador da seleção brasileira, atualmente no Barcelona, empolgou os times. Da Espanha, o atleta fez questão de gravar um vídeo para a Queer Cup. "Como pra maioria de vocês, o handebol é minha vida. Para vocês, que tiveram muito mais problemas que eu, ter essa competição totalmente livre de preconceitos é sensacional", diz, prometendo em breve treinar junto com os times.

Para aquecer: jogadores do Lendários apresentam coreografia de hits do pop - Divulgação - Divulgação
Para aquecer: jogadores do Lendários apresentam coreografia de hits do pop
Imagem: Divulgação
Bruno Costa (ao centro meio) coordena coreografia do Fadas - Divulgação - Divulgação
Bruno Costa (ao centro) coordena coreografia do Fadas
Imagem: Divulgação

Em seguida, os jogadores do Fadas e do Lendários apresentaram um mashup com hits do pop. Já os Bhabrixas, conhecidos por abrir o espacate com a mesma agilidade dos passes, optaram por ler um manifesto sobre a importância para a comunidade LGBTQIA+, especialmente em cidades distantes das capitais.

Hoje, aos 28, Bruno Costa ainda mora em São José e, quando não está em São Paulo, treina em sua cidade. "Meus olhos até brilham, muita coisa mudou lá, os jogadores hoje estão sendo o que eles querem ser", diz, com um sorriso, dois dias antes de se consagrar campeão da Queer Cup com o Fadas.

Após 14 jogos em dois dias, coube ao time anfitrião e pioneiro colher os louros da festa. Ao meia-direita, de quebra, um resultado que o faz voltar a sonhar em jogar profissionalmente. "Algo reacendeu depois que eu vim jogar aqui", diz Costa com um sorriso.