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A bordo de triciclos, crianças distribuem flores e desbravam centro de SP

Projeto Motoca na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL
Projeto Motoca na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Tereza Novaes

Colaboração para o TAB, de São Paulo

05/06/2022 04h01

É impossível passar pela praça da República, no centro de São Paulo, sem confrontar a face mais triste da maior cidade do Brasil: barracas de camping nos canteiros abrigam pessoas em situação de rua e dependentes químicos com o olhar perdido vagam entre quem aperta o passo para chegar ao trabalho.

Uma pequena revolução, porém, acontece toda vez que crianças de quatro a cinco anos invadem a área a bordo de triciclos. São os alunos da Escola Municipal de Educação Infantil Armando de Arruda Pereira, que fica no meio da praça e atende cerca de 300 crianças. A professora Lívia Arruda, 36, que há 11 leciona ali, foi a pioneira em levar a turma para passear pelo entorno.

No dia em que o TAB acompanhou a atividade, 16 alunos de Lívia saíram pilotando as motocas com o objetivo de distribuir flores para os transeuntes. Há duas semanas, quando a cidade enfrentou a onda de frio mais intensa do outono em quase duas décadas, as crianças também foram à praça de triciclo para oferecer chá quente a quem estava ali. Todas, segundo Lívia, têm autorização prévia dos pais para circular nos arredores da escola. Elas não são obrigadas a nada: a professora pede apenas para que elas sejam gentis e deem "bom dia" para quem cruza com o grupo, o resto são atos espontâneos.

Desta vez, um dos primeiros a ser abordado foi Cláudio Caldeira da Silva, 62, que trabalhou como fiscal de ônibus na extinta CMTC (Companhia Municipal de Transportes Coletivos) e hoje vive em situação de rua. Ele estava sentado num banco próximo à saída da escola.

"Meus netos têm 17, 18 anos hoje. Essas crianças me fizeram lembrar deles. Só posso agradecer por essa atitude, fiquei muito feliz com essa flor", disse, com os olhos marejados. Silva continuou a agradecer durante a entrevista, pela atenção, por ter olhado em seus olhos e ouvido um pouco de sua história. Enquanto isso, a motocada avançava pelos caminhos que contornam os canteiros da praça.

Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Alunos da escola municipal passeiam pela praça e distribuem flores para os transeuntes
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

'A República não vive seus piores dias'

A essa altura, os pequenos já haviam superado a pequena ponte que cruza o laguinho, cuja manutenção está em dia, com direito a chafariz e peixes. Com exceção da grama pisoteada dos canteiros, o restante da praça está bem conservado, coreto pintado de branco e bancos inteiros para sentar. Enquanto as crianças brincavam, uma equipe da prefeitura podava uma árvore, outra pintava a grade que cerca a escola e garis limpavam o chão.

Todos esses trabalhadores, claro, receberam flores das crianças. Os garis inclusive ganharam, no dia deles, comemorado em 16 de maio, uma motocada temática. As crianças fizeram desenhos e procuraram por eles para entregar a homenagem.

O imponente edifício Caetano de Campos, um prédio do século 19 que sedia a Secretaria Estadual de Educação, delimita um dos lados da praça. Atrás dele foi erguida uma estrutura temporária do Vidas no Centro, iniciativa do município que oferece banheiros e serviço de lavanderia para a população vulnerável. A poucos metros, fica um acesso para a estação República do metrô, servida por duas linhas e sempre bastante movimentada.

Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Crianças entregam flores para quem entra e sai do metrô República -- e para quem trabalha nos arredores
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Lívia, que carregava uma bandeja cheia de flores, pediu para as crianças estacionarem as motocas e começou uma distribuição de raminhos para quem entrava e saía do metrô. Foram raras as pessoas que evitaram contato com os alunos, quem ganhava uma flor sorria ou até arriscava sacar o celular para fazer uma foto.

Arriscar é um verbo apropriado para descrever o uso do celular no centro de São Paulo. Há uma sensação de insegurança permanente, conectada à disparada no número de roubos e furtos na cidade. A região central vive ainda um momento de tensão com as recentes tentativas de dispersão da "cracolândia", e suas vias são retratos do aumento exponencial da população de rua. O TAB acompanhou os alunos na manhã de segunda-feira (30) após a Virada Cultural, que registrou arrastões e clima hostil, sobretudo na madrugada de sábado para domingo no Anhangabaú, a 600 metros dali.

Apesar de todos os pesares, "a República não vive seus piores dias", palavras de um policial que trabalha no centro há 20 anos, seis apenas na praça. O semblante sério e tenso do PM se descontraiu à medida que ele falava das crianças e do desenho que ganhou em um outro passeio que elas fizeram por ali.

No princípio, o temor da violência contribuía para que os colegas de Lívia ficassem receosos em sair da escola, mas ela conseguiu mostrar que todos, os alunos, os professores e quem passa (ou vive) na praça, só têm a ganhar com a convivência. Agora, outras turmas também exploram os arredores da escola.

A professora Livia Arruda, da EMEI Armando de Arruda Pereira, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato UOL - Reinaldo Canato UOL
A professora Livia Arruda, da EMEI Armando de Arruda Pereira, no centro de São Paulo
Imagem: Reinaldo Canato UOL

Aprendizado nos arredores

Antes de ganhar as ruas, os alunos são treinados para usar o triciclo. "É até melhor sair de motoca porque eles ficam responsáveis por aquilo e também têm de pedalar. A criança fica ativa, não passiva, levada por um adulto. A pé é muito mais fácil de eles se dispersarem, conversando com um amigo, por exemplo", explicou a professora.

Nos passeios, ela é acompanhada por mais um adulto, no mínimo. Também há um estandarte do projeto, o "Motoca na Praça", e os pequenos vestem colete de identificação com o nome da escola bem visível. As distâncias aumentam conforme a confiança e as condições meteorológicas.

Os triciclos foram comprados pela escola e há um modelo para cadeirantes, no formato de uma Kombi. Os alunos com deficiência não ficam de fora das atividades — na turma de Livia, há um menino com síndrome de Down.

Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
Imagem: Reinaldo Canato/UOL
Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
As crianças são gentis e dão 'bom dia' para todos que cruzam com o grupo, em pé de igualdade
Imagem: Reinaldo Canato/UOL

Quando teve a ideia de sair de motoca com as crianças, a professora, que reside no centro, pensou não só em desenvolver a autonomia, mas também na oportunidade de eles conhecerem um pouco melhor a cidade. Isso porque há muitos filhos de imigrantes na escola — latino-americanos, de Venezuela, Bolívia e Cuba, e africanos, de Guiné, Gana, Nigéria, entre outros países. Ao todo, há alunos de 12 nacionalidades diferentes na escola.

"Há muitas crianças que moram no centro e que nunca estiveram nesses lugares. Estamos perto de tudo, do Sesc 24 de Maio, da Biblioteca Mário de Andrade e do Centro Cultural Banco do Brasil", lista. Lívia vai pessoalmente a esses lugares pedir autorização para levar os pequenos e conta que, em mais de uma ocasião, conseguiu que a instituição abrisse exceções, dada a idade do grupo, para recebê-los. Estão agora agendadas visitas à galeria Pivô, no edifício Copan, e ao Teatro Municipal.

Disponível no Netflix, o reality show "Crescidinhos" alcançou sucesso internacional ao mostrar crianças japonesas, entre dois e cinco anos, realizando pela primeira vez uma tarefa sozinha na rua, como comprar alimentos ou levar roupas na lavanderia. É uma espécie de ritual de passagem e quem assiste ao programa imagina que isso só pode acontecer num país seguro como o Japão.

Ao ver as crianças pedalando na República, ainda que em grupo e acompanhadas de adultos, a impressão pode mudar. Mesmo as crianças pequenas são capazes de ter alguma autonomia, de compreender e seguir regras básicas de convivência e deslocamento pela cidade e, acima de tudo, podem despertar os melhores sentimentos nas pessoas, o que pode contribuir para criar um ambiente mais leve e amoroso, mais igual. "Elas veem todo mundo como gente; os adultos, às vezes, esquecem disso", aponta a professora Lívia. "É um grande aprendizado."

População de rua recebe flores do Projeto Motocas na Praça, da EMEI Armando de Arruda Pereira, na praça da República, no centro de São Paulo - Reinaldo Canato/UOL - Reinaldo Canato/UOL
'Elas [as crianças] veem todo mundo como gente; os adultos, às vezes, esquecem disso', diz a professora
Imagem: Reinaldo Canato/UOL