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'Nenhum desastre é natural': um dia no Cemaden, que monitora chuvas e secas

Pedro Camarinha, especialista em geodinâmica, na Sala de Situação do Cemaden, em São José dos Campos (SP) - Bruno Pimenta/UOL
Pedro Camarinha, especialista em geodinâmica, na Sala de Situação do Cemaden, em São José dos Campos (SP) Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Paula Maria Prado

Colaboração para o TAB, de São José dos Campos (SP)

07/06/2022 04h01

São 12h01. Pedro Camarinha, 36, não desgruda o olho da tela do computador. Os gráficos atualizados com frequência trazem borrões brancos, linhas coloridas e ícones que se misturam ao mapa do Brasil. Especialista em geodinâmica, Camarinha amplia e reduz as imagens, lendo tudo com atenção. Na quinta-feira (2), era dele a responsabilidade de emitir, até as 18h, os alertas de risco de desastres do Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), órgão federal ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações, localizado em São José dos Campos (SP).

O alerta é inserido no sistema logo após ser observado pelos especialistas. Só não tem data certa para ocorrer. "São três níveis de riscos de desastres: moderado, alto e muito alto. Qualquer mudança que ocorra, há um novo informe produzido", diz o especialista. Ao apertar o envelope verdinho no sistema, Camarinha envia o material exclusivamente ao Cenad (Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos e Desastres), órgão responsável por alertar os municípios e as Defesas Civis. A partir daí, só lhe resta torcer para que tudo dê certo.

"Acho que todos nós ficamos um pouco ansiosos. Mas temos de seguir atentos ao monitoramento. As notícias chegam, na maioria das vezes, pelo Twitter, com relatos, vídeos e fotos", conta. Foi o que ocorreu com Recife (PE), cujo primeiro boletim geo-hidrológico alertou para o risco de deslizamentos já no dia 20 de maio. Três dias depois, a cidade se transformaria então no palco do pior desastre do tipo em Pernambuco, com 128 mortos por causa das chuvas.

No canto da Sala de Situação, como é chamado o espaço onde ficam os profissionais do turno, um computador fica 24h ligado em comunicação direta com o Cenad. É o telão, dividido em três partes, que ilumina o ambiente. Pedro falava com a reportagem do TAB em breves intervalos, porque ficava o tempo todo em contato com colegas, monitorando a situação.

Além de Camarinha, de olho no solo, outras três pessoas compunham o time da vez: um meteorologista, um de hidro (atento aos rios e córregos) e um de desastres (que avalia o impacto da chuva nos mil municípios monitorados pelo órgão). É o cruzamento das informações obtidas pelos plantonistas das quatro áreas de conhecimento que informam o que vem por aí. Mas, com parte da equipe em home office, a troca de informações ocorria por WhatsApp.

O monitoramento ocorre 24/7. As 42 pessoas se revezam nos turnos. Em dias com muitas mudanças de cenário, uma placa é colocada na porta da sala, nas cores amarela ou vermelha. A rede de informações avaliada constantemente recebe dados da ANA (Agência Nacional das Águas), do CPRM (Serviço Geológico do Brasil), do Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia) e do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), entre outros.

"Conversamos o tempo todo. É que 50 mm [de chuva] em uma cidade é diferente desse mesmo volume de chuva em outra cidade. Há uma série de fatores que precisam ser observados, como o solo, a vulnerabilidade da população, a proximidade de rios etc. Hoje ainda está tranquilo, só atualizamos a situação dos municípios que estavam com alerta vigente. Mas já aconteceu de enviarmos em um dia cerca de 130 novos alertas", conta Camarinha.

Pedro Camarinha acompanha o monitoramento no Cemaden - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
Pedro Camarinha acompanha o monitoramento no Cemaden
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Vai chover hoje?

Engenheiro civil de formação, Camarinha jamais imaginou que um dia estaria trabalhando com desastres. Durante o doutorado, numa visita ao recém-criado Cemaden, apaixonou-se pela infraestrutura tecnológica disponível na sala que, na ocasião, ficava em Cachoeira Paulista (SP). Lembra que postou uma foto no Instagram com a legenda: "ainda vou trabalhar aqui". O sonho se realizou em 2016.

"Nem sei quantas vezes me perguntam por dia sobre previsão do tempo. Mas imagino que nada se compare a quantidade de vezes que Giovanni responde. Até eu me consulto com ele", ri o engenheiro, falando sobre o colega. O pesquisador e meteorologista Giovanni Dolif é o coordenador geral substituto de Operação e Modelagem. Também é ele que avisa sua filha de 11 anos se é melhor sair de casaco e guarda-chuva.

"Costumo ter na ponta da língua a previsão do tempo justamente porque sei que as pessoas vão me perguntar", responde Dolif, que está no Cemaden desde 2014 e afirma gostar de fenômenos naturais desde criança. "Eu queria saber, por exemplo, como é feita a neve. E o deslumbramento com a natureza fez com que eu me formasse em meteorologia. Ao longo dos anos, fui entendendo a aplicação social desse conhecimento."

Giovanni Dolif, coordenador geral de Operação e Modelagem do Cemaden - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
Giovanni Dolif, coordenador geral de Operação e Modelagem do Cemaden
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

Acostumado a produzir boletins — antes do Cemaden, ele foi do Cptec (Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos), onde era responsável por alguns dos alertas meteorológicos —, Dolif sabe que o papel de todos ali é minimizar a possibilidade de desastres. "Não temos como controlar a natureza. Nós gostaríamos que não houvesse nenhuma ocorrência, claro. Mas, sem o alerta que emitimos, os desastres poderiam ser ainda piores, com mais vítimas. Hoje, por exemplo, em alguns pontos já temos dados da umidade do solo em seis diferentes níveis. Dependendo da quantidade de chuva, reconhecemos o risco de deslizamento com mais precisão."

Olhar humano

Criado em julho de 2011, logo após as chuvas que vitimaram 152 pessoas na região serrana do Rio de Janeiro (RJ), o Cemaden foi viabilizado em seis meses, já de olho nas chuvas de verão de 2012. No início eram 56 municípios monitorados. Hoje são 1.038, considerados prioritários.

A estratégia para redução de riscos no país é composta por quatro pilares: conhecimento de riscos e monitoramento (feito pelo Cemaden), comunicação (capacidade de emitir alerta); preparação e resposta (feita pelas Defesas Civis), e conhecimento e percepção de riscos.

"Vale ressaltar que desastre não acontece só por causa da chuva, mas também pela seca. São impactos não só em vidas humanas, mas também na economia. Por isso, desde 2012, também monitoramos a seca", lembra a coordenadora de relações institucionais e diretora substituta Regina Alvalá, uma das fundadoras do Cemaden. Matemática por paixão e engenheira cartográfica por insistência de seu pai, ela encontrou no centro sua maior vocação: unir a ciência dura ao trabalho social.

Osvaldo Moraes, diretor do Cemaden - Bruno Pimenta/UOL - Bruno Pimenta/UOL
Osvaldo Moraes, diretor do Cemaden
Imagem: Bruno Pimenta/UOL

"Comecei em matemática, mas meu pai não me convenceu a mudar de curso. Hoje falo que ele foi um visionário", diverte-se ela, que acabou se especializando em meteorologia. "Eu tinha o desejo de ver o resultado daquilo que eu faço chegando à sociedade. Quando comecei a me interessar por desastres, isso ficou claro. Tanto que eu poderia ter me aposentado em 2014 e não penso em parar", conta ela, que sabe a história da instituição na ponta de língua.

Fora da Sala de Situação, o salão agrega pesquisadores de diversas áreas. São sociólogos, geógrafos, meteorologistas, hidrólogos e geodinâmicos. Junto deles estão os bolsistas, que os apoiam nas pesquisas. Adiante há os especialistas em relações institucionais, e os de tecnologia da informação. "Desastre é o impacto de um evento extremo, ele combina ciências duras e sociais. E a disposição das mesas é a forma que encontramos de fazer com que todos conversem, troquem informações e se apoiem nas pesquisas", afirmou Osvaldo Moraes, diretor do Cemaden.

Com sete anos de casa, Moraes conta que, em 30 anos de casamento, morou com a esposa durante apenas 1,5 ano. "Ela mora em Santa Maria [RS], eu moro aqui em São José. Quando passo a semana em casa, pergunto: 'será que se a gente morar junto vamos acabar nos separando?", ri ele, que também já podia ter se aposentado. "Nem me imagino em casa sem fazer nada. Amo o que faço."

Moraes aponta as falhas do sistema de gestão de risco. "Nenhum desastre é natural. É uma construção do ser humano. Ele é a combinação de uma ameaça da natureza, da qual não temos controle, com a ameaça social, que poderíamos trabalhar. Parece bobagem, mas é algo que pode mudar o entendimento de como podemos trabalhar a questão", disse ele, que é físico de formação.

"As pessoas falam 'o Cemaden emitiu o alerta com dois dias de antecedência, dá tempo da cidade se organizar'. E eu te pergunto: o que oito, nove pessoas da Defesa Civil vão fazer diante de uma população de 600 mil pessoas em risco, caso de Recife, por exemplo? As pessoas precisam de ajuda, de políticas públicas de longo prazo", afirmou.

Para ele, a percepção de risco também é importante. "Se tiver que deixar sua casa, para onde você iria? Quais documentos levaria contigo? Quem precisaria avisar sobre o que está acontecendo? As pessoas não têm culpa de morar em área de risco. Muitas vezes, não entendem o risco que correm."