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No frio de SP, estação do metrô vira quarto para pessoas em situação de rua

Ismaida Bertunes busca oportunidades de trabalho e dormiu numa estação de metrô pela primeira vez - Lucas Veloso/UOL
Ismaida Bertunes busca oportunidades de trabalho e dormiu numa estação de metrô pela primeira vez Imagem: Lucas Veloso/UOL

Lucas Veloso

Colaboração para o TAB, de São Paulo

14/06/2022 04h01

A estação Pedro II do metrô, em São Paulo, assistiu a uma tarde de domingo (12) de abraços e beijos entre casais apaixonados. No Dia dos Namorados, gente indo e voltando do trabalho também se espremia nas paradas da estação. Dentro dos vagões barulhentos pela conversa e pelas risadas, o frio não era uma preocupação.

No subsolo da mesma estação, contudo, espalhavam-se colchões pelo chão. Quem vive na rua aguardava sua vez de entrar para fazer do lugar seu quarto por uma noite. Do lado de fora, a temperatura caía rapidamente — chegou a 6ºC durante a madrugada.

TAB passou algumas horas da noite nas instalações do "Noites solidárias", serviço de acolhimento do metrô com capacidade para atender até 100 pessoas, entre 19h e 8h.

A entrada foi liberada perto das 19h. Os usuários do serviço podiam passar livremente por uma cancela ao lado da catraca da estação. Depois de descer alguns lances de escada, na entrada do local, um servidor da secretaria estadual de Desenvolvimento Social os recepcionava e distribuía marmita a quem chegasse, além de um cobertor, uma manta e um copo de água. Em seguida, as pessoas podiam escolher o local onde queriam dormir.

O espaço que lembra um depósito foi dividido em três alas, uma para os homens, onde há a maior quantidade de colchões; outra para mulheres; e a última destinada às famílias. Ali, todos podiam entrar a hora que quisessem com seus animais de estimação. Ao longo da noite, entre os quase 30 usuários, o que reinava era o mais absoluto silêncio e tranquilidade. Ninguém perturbava o sono de ninguém.

Daniel Pousada, poeta repentista de 49 anos, passa a noite na estação Pedro II do metrô - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
Daniel Pousada, poeta repentista de 49 anos, passa a noite na estação Pedro II do metrô
Imagem: Lucas Veloso/UOL

Poesia no frio da noite

O paraibano Daniel Pousada, 49, era dos mais sorridentes. Ele, que se apresentou como poeta repentista, estava vestido com uma blusa azul manchada e bermuda preta nas mesmas condições, e contou que vive na rua há mais de dois anos.

Em cinco minutos, Pousada citou várias vezes a Gramática Normativa Brasileira, documento com as regras da língua portuguesa. Ele não gosta de errar pontos e vírgulas e recorre sempre ao livro quando precisa escrever textos.

Não fosse o abrigo no metrô, o poeta disse que dormiria nos arredores da estação junto com amigos da rua. Logo mudou de assunto e voltou a citar preposições e locuções adverbiais, além de explicar linguagem conotativa e denotativa. "A lua, por exemplo, o que é? Para uns, um astro; para outros, o satélite da Terra. E para um poeta? Pode ser tudo. Isso é a poesia, o que eu sou."

Enquanto falava de poesia, outros entravam no local em busca de abrigo. Assim que achavam um colchão, deitavam-se e se preparavam para dormir. Alguns levavam a refeição ao lado do corpo para comer depois. No domingo da visita do TAB, a marmita de alumínio tinha arroz, feijão, macarrão, carne de porco e torresmo.

Até as 21h, a ala da família só fora ocupada por um casal, o mestre de obras Wellington Batista, 42, e Ismaida Bertunes, 40, que disse ser estudante de direito. Ele foi parar na rua depois de traições e problemas em casa. No caso dela, perder o emprego foi o motivo que a levou a ocupar ruas e calçadas da cidade. Os dois se dizem vítimas da pandemia, pois foram prejudicados pela perda de renda e de emprego.

Wellington Batista e Ismaida Bertunes vivem na rua e buscam o emprego que perderam durante a pandemia - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
Wellington Batista e Ismaida Bertunes buscam um emprego para recuperar a renda que perderam durante a pandemia
Imagem: Lucas Veloso/UOL

A dupla se conheceu na rua, mais ou menos em julho de 2021. Bertunes estava apreensiva. Anda desconfiada de uma gravidez. Não fosse o abrigo, ela afirmou que passaria a noite na rua, apesar das dores que sentia e do incômodo aparente em seu rosto. "Quero ficar perto dela e cuidar, mas como faz? A gente não consegue emprego, não pode pagar um lugar. Como vou dar dignidade e uma vida confortável para o meu filho?", disse Batista.

Enquanto o companheiro falava, a mulher o observava com atenção. O choro nessa hora se intensificou. Acostumada a trabalhar, ela já exerceu diversas funções em bancos, de operadora de telemarketing a bancária.

No meio da conversa, os dois também contaram que estão processando um dos abrigos onde ficaram, pois, segundo eles, o tratamento não foi adequado. O casal citou ter sido roubado por um dos funcionários da instituição, em fevereiro.

A fala que Batista mais repetiu, durante os cerca de 50 minutos de conversa com o TAB, diz respeito à sensação que tinha de abandono e repulsa. Ele contou que já jogou futebol nas categorias de base do Mogi-Mirim e do Flamengo, mas admitiu que não leva jeito. "Se eu fosse bom, teria ido para a seleção", admitiu, rindo. Hoje, seu sonho é ter uma rotina como qualquer outra pessoa. "Quero levantar cedo, fritar um ovo, pegar o 'busão' e ir trabalhar. Voltar no fim da tarde do mesmo jeito, deitar, cuidar do que falta e dormir pro dia seguinte."

Batista contou estar disposto a trabalhar, mas a sociedade não confia nos albergados, pessoas acolhidas pelos serviços públicos e de caridade. "Me dá uma vassoura e uma pá para ver o que eu faço, mas nem todo mundo nos ajuda ou quer a gente. E assim eu fico."

O ajudante de obras Flávio de Oliveira está há oito meses vivendo nas ruas de São Paulo - Lucas Veloso/UOL - Lucas Veloso/UOL
O ajudante de obras Flávio de Oliveira está há oito meses vivendo nas ruas de São Paulo
Imagem: Lucas Veloso/UOL

Criança na rua

"À espera de um milagre." Foi assim que o paranaense Flávio de Oliveira, 34, definiu a vida que leva hoje. Deitado perto de um elevador, o ajudante de obras afirmou que dorme pelas ruas de São Paulo há oito meses e que já viu de tudo na cidade. Uma das coisas que mais o impressionou foi a quantidade de crianças desabrigadas, número que ele próprio afirma ter aumentado com a pandemia. "Como elas estão nas ruas? Ficam o dia pedindo, depois voltam, ficam ali, dormem e fazem tudo ali. Crianças." Em Curitiba, onde também vivia em situação de rua, não lembra ter visto crianças dormindo ao relento.

Para ele, o futuro dos menores provavelmente será o crime, pois têm de se virar na vida desde cedo, sem amparo e cuidado de ninguém. "Eles não estudam. Como vão ter futuro?"

Em geral, Oliveira dorme na região do Pátio do Colégio. Lá não há estrutura e o sono é improvisado. "Tem dias que a gente dorme no chão. Quando muito é em cima de cobertor entregue pela Prefeitura". Segundo ele, a manta "é fraca", protege pouco do frio e nem serve de colchão.

Por um problema no nervo ciático, Flávio sempre procura um albergue para dormir. Ele reclamou dos abrigos públicos, onde, em suas palavras, nem todos os funcionários estão dispostos a ajudar.

Uma vez foi expulso de uma unidade, depois que reclamou de uma pessoa que dormia na parte de baixo do beliche. "O cara estava sem droga. Ficou a noite toda se mexendo e tremendo. Fiquei sem dormir por duas semanas. Pedi para ficar em outro lugar e me expulsaram." Naquela noite, enfim, teria uma noite de sono melhor.