Gincana em SP traz de volta alunos que tinham deixado a escola em 2020
"Passou, passou, passou um avião / e nele estava escrito que o azul é campeão." O pátio da escola estadual Vicente Rao, localizada no bairro de Americanópolis, na zona sul de São Paulo, quase veio abaixo com o grito de guerra e pulos dos adolescentes do time azul. Ao mesmo tempo, representantes das equipes roxa e verde soltaram a voz para fazer a torcida por suas próprias equipes sobressair.
O clima entre eles não era de animosidade. Ao contrário. Parecia que estavam numa festa há muito tempo aguardada. E era, mesmo. Haviam voltado para a escola, mas faltava a comemoração. "Estou achando muito top", vibrou Tamires Firmino, 11, do 6° ano. Cada grupo cumpria sua função. Com tintas e pincéis na mão, davam uma nova cara ao muro na entrada da escola, colorindo-o com um desenho. Na parte dos fundos, outros enchiam a terra vazia dos canteiros com mudas de ervas e verduras.
Às 15h, a diretora Guiomar Costa Franco, 56, pegou o microfone e instruiu todos a se divertirem. Foi prontamente atendida. Os alunos formaram uma imensa fila e foram para a quadra. Era a hora do futebol. Mas as brincadeiras, das quais 434 estudantes participariam até o fim do dia, começaram cedo. Muitas delas conhecidas há gerações, como queimada, cabo de guerra, dança das cadeiras, corrida do saco e corrida do ovo. As mais modernas também não faltaram, como show de talentos, quiz de conhecimentos gerais e "influencer".
Mais do que diversão, o objetivo da gincana era trazer de volta os alunos afastados da escola desde o começo da pandemia. E não foram poucos. Só no ensino médio, 90 abandonaram as aulas, a maioria para trabalhar. Além dos que pertenciam ao grupo de risco da covid-19, houve os que precisavam cuidar dos irmãos e as que foram pegas de surpresa por uma gravidez. Entre os mais novos, 64 não voltaram por motivos parecidos, exceto trabalhar.
A proposta da gincana Jornada X - game que desafia adolescentes e jovens a transformarem suas comunidades - deixou a equipe da escola em dúvida. Logo viram que a ideia era boa. Afinal, muito esforço já tinha sido feito para conter a evasão escolar. Não custava mais um. Além de oferecer refeições aos alunos, um carro de som circulou no bairro no início da pandemia passando informações de como seriam as aulas dali em diante.
A comunicação também era feita por telefone. Quando não conseguiam contato, os funcionários batiam na porta das casas dos estudantes. Havia ainda o desafio de garantir que todos acompanhassem as aulas online, já que alguns não tinham acesso à internet. Para esses, foram distribuídos tablets doados à escola, já configurados com os aplicativos necessários. Em último caso, eles também podiam retirar apostilas na escola.
Professores e coordenadores se dividiam em plantões numa ferramenta digital e em redes sociais como WhastApp, Instagram e Facebook. Surtiu efeito. "Teve um dia em que havia alunos em todas as salas da escola fazendo prova, porque a gente não podia juntá-los. Cinco em cada sala. Eles faziam as provas como se fosse um concurso, num clima de vestibular", lembra Guiomar. O fim da espera pelas aulas presenciais aconteceu em 2021. Mas nem tudo voltou ao que era antes.
Digerindo o recomeço
Ficar tanto tempo em casa deixou marcas nos alunos. Algumas surgiram na pandemia e outras foram aprofundadas no período. "A pandemia veio num momento difícil da minha vida, em que eu estava me recuperando das minhas crises de ansiedade. E a escola era um ponto de refúgio pra mim", relata Andressa Mota Santana, 15, estudante do 1° ano do ensino médio. Ela estranhou a convivência exclusiva com a família. Como sempre foi de guardar tudo para si, a ansiedade pesou ainda mais.
A volta também foi difícil para ela, pois tinha se acostumado a viver em casa. Mas a sensação de libertação que veio em seguida aliviou o sofrimento. Na gincana, enquanto ela se preparava para participar da queimada, era nítida a gratidão por estar de volta. Beatriz Mariano dos Santos, 16, passou por algo parecido. Tinha acabado de sair da depressão. Ficar confinada fez a doença voltar. Tinha perdido o celular em 2019, infectado com vírus.
Por achar que não havia sido cuidadosa e pela situação financeira apertada com a crise sanitária, não teve coragem de pedir outro aos pais. Como não conseguia acompanhar as aulas pelo notebook comprado pela mãe, a escola lhe forneceu um tablet. Depois de passar por várias escolas, sentiu-se acolhida no colégio Vicente Rao e segue melhorando. "Ainda estou lutando contra a depressão. Não faço tratamento, só continuo vivendo. Mas foi um passo grande que dei — levantar da minha cama e vir para a escola."
Semanas antes da gincana, Beatriz passou de sala em sala divulgando o evento. O talento para a liderança será útil no futuro, quando realizar o sonho de ser arqueóloga ou professora de história. Outros alunos se recuperaram mais rápido do isolamento, como Breno Santos Leite, 15, do 1° ano ensino médio. "Quando voltei, senti felicidade porque consegui conviver mais com os meus amigos, e tirei as dúvidas que não conseguia tirar no EAD."
Aprender à distância também foi uma pedra no sapato de alunos, como Allisson Pedro de Oliveira Silva, 17. "Em casa tudo tirava meu foco. Só respondia às questões que chegavam pelo aplicativo. O que não entendia, procurava na internet", conta o aluno do 2° ano do ensino médio. Agora que tudo passou, ele intensificou os estudos para tirar uma nota boa no Enem. Quer ser cirurgião.
Karen Kimberly Dourado de Souza, 17, do 3° ano do ensino médio, também ficou perdida com as aulas online, mas conseguiu manter os estudos em dia. Hoje corre a passos largos em direção ao futuro. Além de estudar e trabalhar como vendedora em uma loja no bairro do Jabaquara, faz um curso para ser militar. Sua meta é entrar no exército ou no Corpo de Bombeiros. Mas na hora da gincana, só quer saber de aproveitar. "Aqui é tudo uma brincadeira pra todo mundo sair feliz, dar uma relaxada. Isso é muito bom."
Brincadeira séria
Jogador de vôlei até os 26 anos e arquiteto, Edgard Gouveia Júnior, 57, acumula anos de experiência em movimentos sociais em favelas, no trabalho com quilombolas e indígenas. Mas ficou conhecido mesmo como game designer. É um inventor de jogos para multidões. No começo da crise sanitária, a evasão escolar e os problemas emocionais dos alunos chamaram sua atenção. Soube que muitos estavam pensando em desistir de estudar. Então teve a ideia da gincana e quis espalhá-la por todo o Brasil.
Viu logo que não seria fácil montar equipe e estrutura digital de grande envergadura, chamar a atenção das secretarias dos governos e oferecer a elas um projeto de custo acessível e fácil contratação. Com um detalhe que deixou muita gente com o pé atrás: os alunos seriam os protagonistas. "Os jovens estavam cheios de energia represada, não podendo sair de casa. Eles seriam os heróis dessa história toda. Iam buscar os amigos para a sala de aula. Ninguém tinha pensado nisso", lembra.
A ideia do santista era misturar a tecnologia que lhes é familiar com brincadeiras antigas que fizeram parte da infância dos pais e avós e que são fortes na comunidade. "Melhoramos juntos, rimos, ajudamos uns aos outros, descobrimos mais de nós mesmos e sobre os outros. Brincar de pega-pega e esconde-esconde desenvolve habilidades que a gente precisa para a vida", ele acredita. Até agora, cerca de 30 mil alunos de 42 escolas participaram da iniciativa, em Caruaru (PE), São Paulo e Porto Seguro (BA).
Quando todos vencem
O jogo tinha um clima de mistério. Na primeira missão, a diretoria da escola elegeu de 3 a 5 Mestres do Game entre os professores mais queridos pelos estudantes. Em seguida, cada Mestre escolhia seu Agente X, mirando estudantes populares, capazes de mobilizar seus colegas, e o Agente X formava uma Liga de até 5 estudantes. Na última etapa, cada Liga X criava uma Tribo X com o maior número de pessoas que conseguisse alistar entre alunos, alunos evadidos e adultos da comunidade do entorno da escola (familiares, vizinhança, comerciantes, lideranças da comunidade).
A gincana se desenrolava sob os olhares atentos dos professores e de pais em Americanópolis. Luciene Beatriz Lourenço, 51, fez questão de acompanhar as duas filhas. Moradora do bairro há 40 anos, ela passou por maus bocados no começo da pandemia. O marido teve um infarto e passou um bom tempo na UTI. Para cuidar dele, teve que descuidar da rotina de estudos online das meninas. Nunca as deixa sair sozinhas. "Tudo é válido para a juventude. Eles precisam ter entretenimento, interagir entre si e ser mais amigos. Porque às vezes brigam, mas depois voltam. Acompanhando de perto, é válido", refletiu a dona de casa.
Em vez de desentendimentos, nasciam novas amizades na gincana. Como a que Laís Andrade, 14, do 9° ano do ensino fundamental, fez com uma garota do 8° ano. Ao lado de outra amiga, a dupla participou do concurso de desenho. "Desenhei a terra repartida em duas: o lado bom e o mau. A Terra é um lugar bom. A gente é que estraga. Se ela já está mal, imagine daqui pra frente. Talvez só piore porque as pessoas não pensam no mundo onde a gente vive", refletiu.
Uma garota, contudo, destoava da alegria coletiva. Samara Siqueira Neri, 16, já não tinha frequentado as aulas no segundo semestre do ano passado. Depois que a mãe faleceu de AVC e infarto, no começo do ano, ela perdeu completamente a vontade de estudar. Foi convencida por uma professora a vir para a gincana. "Vim assistir e deu vontade de voltar. Ver os meus amigos me deu um conforto, eles estão me dando uma força. Quero voltar e não parar mais", afirmou.
Guiomar estava contente. "Para muitos dos nossos alunos, a escola é o último recurso para transformar a vida. Ela vai dando oportunidades para eles. A gente está inserida num bairro que não tem nem praça para um encontro de fim de semana. O espaço deles é a escola. Então, quanto mais agradável for esse espaço, com mais condições de aprendizado e oportunidades, os principais beneficiados são eles", resumiu a diretora. No fim do dia, a tribo azul foi a vencedora, mas as outras duas foram para casa igualmente satisfeitas, e com vontade de voltar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.